André Rodrigues , Catarina Santos, in RRConsumo de droga alarma turistas e moradores no centro histórico. Toxicodependentes queixam-se de falta de respostas. Nova lei entra em vigor no domingo.
"Há algo que se passa na nossa vida que faz com que procuremos qualquer coisa para nos refugiarmos". A frase é de uma mulher de 39 anos a que vamos chamar de Sofia. Consome droga desde 2017.
"Perante a sociedade, ficamos uns meros ressacas, um lixo, os restos mortais", lamenta esta mulher, natural de Vila do Conde, mas que se fixou no Porto, depois de se ter divorciado e de ter conhecido outro companheiro que já consumia droga.
"Quando comecei o relacionamento, eu não sabia que ele consumia", diz. Mas, mesmo depois de saber, decidiu ficar. "Foi a minha estupidez que me fez experimentar".
Quando se consome pela primeira vez, depois já não é só mais uma vez. É mais uma e mais outra. Dias passam a semanas, semanas a meses, meses a anos. A primeira vez torna-se de uma vez para sempre.
Também foi assim com o homem de 48 anos que vamos tratar por Paulo — e que soma já mais de metade da vida entre consumos de heroína e cocaína. Com uma particularidade: a droga sempre existiu na vida dele. Primeiro, começou por traficar. Paulo foi atrás da mãe e do irmão.
Durante muito tempo, enquanto vendia, diz que nunca lhe passou pela cabeça experimentar. Até ao dia em que um pacto entre sete colegas traficantes lhe mudou a vida. "Comecei por fumar na prata. Foi uma desgraça", reconhece. "Eu entrei em casa e vi amigos meus, que também vendiam, a consumir e fechei logo a porta, porque não queria acreditar no que estava a ver".
Dos sete naquele quarto, um morreu por overdose, quatro conseguiram sair. Sobraram dois. Paulo é um deles e continua agarrado. "Não compensa nada... a gente desgraça-se".
Confessa que conseguiu largar a droga "por diversas vezes". Sempre que passou pela cadeia. Paulo perdeu a conta às vezes que foi preso. "Foi por furto e até por coisas piores... Fiz muitas asneiras na minha vida... Quando era novo, eu era um terror".
Hoje, garante que não é assim. "Quando voltei à droga, prometi a mim mesmo que nunca mais voltaria a bater à porta da minha mãe, por amor a eles". Foi há cinco anos. Se olhar para o passado, Paulo diz que não sente remorsos por ter andado a vender droga a quem o procurava: "É a mesma coisa que ir a um café, ninguém o obriga a ir lá... Você vai, pede o que quer, consome, paga e vai-se embora. Com a droga é a mesma coisa. Ninguém obrigava as pessoas a vir ter comigo".
Respostas estão "demasiado estereotipadas"
O consumo e tráfico de droga não se faz apenas em torno da sala de consumo vigiado da Pasteleira, por onde Sodia e Paulo mais circulam. Está de volta, e em força, à zona da Sé, em pleno centro histórico do Porto. Em duas décadas, a repressão policial, que desmantelou sucessivos bairros que funcionavam como mercados de droga, não acabou com o problema. O tráfico simplesmente mudou de lugar. Com ele, também os consumidores.
Nas vésperas da entrada em vigor da nova lei da droga, que descriminaliza a posse de droga para 10 dias de consumo, a Renascença foi ao terreno perceber como é que toxicodependentes, assistentes e quem circula no Porto lidam com a constante migração da droga.
Falar de toxicodependência é, desde logo, falar de saúde mental. "É a base de todo o problema", refere Cláudia Ribeiro, fundadora da Trata-me Por Tu, uma associação de voluntários que faz intervenção junto da população toxicodependente nos bairros problemáticos do Porto. "A verdade é que há muito poucas respostas de saúde mental na comunidade. Era necessário um acompanhamento diário que não existe, sobretudo junto desta franja da população", acrescenta.
Cláudia lamenta que "as respostas a este problema sejam demasiado estereotipadas”, desenhadas como se toxicodependentes e população em situação de sem-abrigo fossem um corpo uniforme. Diz que “são pensadas para os utentes perfeitos... e as pessoas não são perfeitas".
Outro dos entraves é o preconceito, a falta de confiança na recuperação de quem vive dependente da droga. Da experiência de vários anos no terreno, Cláudia Ribeiro firmou a ideia de que "a sociedade não está preparada para lidar com este problema". "Normalmente, as pessoas dizem 'eles não querem nada, não querem ajuda de ninguém'. Não é verdade. Eles cumprem, mas precisam de ser motivados".
Caso contrário, "vão desistir deles próprios, vão achar que não são dignos de receber qualquer tipo de ajuda... e essa é a última coisa que pode acontecer"
Turistas queixam-se. "Estão ali a injetar-se à frente de toda a gente"
As tensões com a vizinhança são notórias. Acontecem na Pasteleira, no Cerco, na Sé ou em qualquer outra zona da cidade onde haja tráfico e consumo de droga.
Desde 2001, as sucessivas intervenções policiais nos bairros que funcionavam como mercados de droga acabaram por fazer o problema migrar constantemente: Bairro de São João de Deus, Cerco do Porto, Lagarteiro, Aleixo, Pasteleira.
E, agora, a Sé. Outra vez a Sé, onde o problema nunca deixou de existir. A diferença é que o crescimento da cidade, à boleia do turismo - que vive, sobretudo, no centro histórico -, tornou o problema desconfortável aos olhos de quem passa pela Rua Mouzinho da Silveira, ou ao lado do Mercado de São Sebastião, ou nas ruas que serpenteiam a zona entre a Sé e a Ribeira do Porto.
Leonel Ribeiro, empresário de alojamento local na zona da Sé, reconhece que tudo isto "está a chatear mais pessoas do que se fosse na Pasteleira". "Tenho a perfeita noção de que muita gente vai dizer que só agora é que nos lembramos que isto é um problema", acrescenta.
Leonel tem imóveis na Rua dos Pelames, "onde há filas para comprar droga", e mesmo ao lado do Mercado de São Sebastião, "onde as pessoas não têm problema nenhum em estarem ali a injetar-se à frente de toda a gente". É o pior dos cenários para quem tem um negócio que depende totalmente da atividade turística da cidade.
"Tenho clientes que, quando chegam ao local e veem pessoas a consumir ali mesmo à porta do prédio, preferem ir embora e procurar outro alojamento local, por vezes às 22 horas... Ali é que não querem ficar". E o problema é ainda mais evidente quando os casais viajam com os filhos pequenos. "Tanto assim é, que o nosso sistema de reservas já não permite crianças".
Como em qualquer atividade turística, o 'passa a palavra' nas plataformas mais utilizadas pelos viajantes é fundamental. "Infelizmente, temos muitas críticas de pessoas que dizem que a cidade é bonita, que os apartamentos são ótimos, mas que há muita droga e muita insegurança", lamenta.
Nuno Cruz, presidente da União de Freguesias do Centro Histórico do Porto, partilha esta preocupação: "o problema aumentou para o dobro", diz, quando questionado sobre as atividades da droga.
No primeiro semestre deste ano, a ação da PSP no combate ao tráfico resultou em 225 detenções na zona da Pasteleira, 38 no bairro da Sé e 49 na área do bairro do Cerco. Já quanto à criminalidade praticada pelos consumidores de droga, o Comando Metropolitano da PSP do Porto explica que "estão a decorrer inquéritos judiciais, que foram participados junto das autoridades judiciárias".
No caso particular da Sé, a nota enviada à Renascença é ainda mais omissa. Nela pode ler-se que aquela zona da cidade "tem recebido por parte da PSP uma atenção particular no que respeita à segurança". Sem números disponíveis, resta a perceção de quem lá vive.
"Eu sou desta zona da cidade e lembro-me do tempo em que era criança e vi o problema da droga instalar-se aqui, nas décadas de 1970 e 80, quando era novidade. Vi muita gente a desgraçar-se. Mas, infelizmente, 40 anos depois, parece que estamos pior", assinala o presidente da União de Freguesias do Centro Histórico.
Como resolver o problema?
"O Estado abandonou-nos", remata o autarca do Centro Histórico que considera prioritária a adoção de medidas para erradicar o consumo daquela zona da cidade. "Se formos às escolas explicar às crianças de 14 ou 15 anos o que é a droga, provavelmente vamos começar a contribuir para uma redução da população toxicodependente. Reduzindo a população toxicodependente, estaremos a matar o negócio aos traficantes", defende Nuno Cruz.
Cláudia Ribeiro, da ‘Trata-me por Tu, completa a ideia: “Eu percebo que a presença de consumidores incomode”, mas “falta perceber o lado de quem consome, falta perceber o lado das respostas que não existem. E, atualmente, o poder político só está a ajudar a denegrir mais esta situação".
ara o diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD), a solução passa por "políticas balanceadas de redução da procura e redução da oferta".
Em declarações à Renascença, João Goulão pede "respostas de saúde, de habitação e de emprego suficientemente sólidas para a população toxicodependente para motivá-las para uma mudança de estilo de vida".
Já sobre o sentimento de segurança das populações, relacionado com o tráfico de droga e com a criminalidade associada, o diretor-geral do SICAD reconhece que as intervenções policiais foram "menos bem conseguidas", mas entende que é necessário "facultar à comunidade envolvente um sentimento de segurança que, neste momento, está comprometido".