Que lugar têm os miúdos surdos nas nossas escolas? Não nos precipitemos. A resposta é tudo menos simples. Integrar os miúdos surdos num sistema educativo é um empreendimento laborioso, muitíssimo debatido e que acende justas veemências por todo o mundo educativo.
Estudos recentes que demonstram que os alunos surdos em escolas de regime normal têm revelado piores resultados, escolares e sociais, quando comparados com os alunos surdos em escolas especiais, são abertamente contestados por enérgicas razões de teor político que não são destituídas de sentido.
Acomodar, por elementar bom senso técnico, alunos surdos em escolas de surdos produz, na prática, um artificialismo segregador que agride aqueloutro bom senso técnico que protesta que não divorciemos crianças umas das outras.
Uma realidade diminuída
A resposta do Estado português a esta problemática foi a constituição das redes de escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos (EREBAS), uma solução que se tem revelado auspiciosa, mas também difícil de implementar. Vive-se numa espécie de realidade diminuída. Pais ouvintes de crianças surdas têm de deslocar os seus filhos para a escola de referência mais próxima da sua residência e nem sempre isso é lhes é prático ou possível, o que atira muitos jovens para escolas sem esse apoio.
Há falta de informação dos pais, há disparidade na aplicação das leis, problemas de monitorização de práticas; há dificuldades de transportes, demoras na colocação de professores e intérpretes, impedindo uma indispensável proximidade e preparação dos seus meninos e meninas. Temos especialistas que não conseguem a continuidade pedagógica que se exige no acompanhamento dos miúdos.
A constelação de problemas é, de facto, formidável. Portugal tem feito um caminho, sim, mas a passos ainda curtos. Temos mais para dar. Conseguimos fazer melhor do que isto.
O estigma impostor
Aquilo que faz com que os alunos surdos não apresentem melhor integração e resultados escolares mais proeminentes é não falarem a mesma língua que os seus colegas e os seus professores. Nada mais.
O estigma que se lhes cola é real mas, as mais das vezes, nasce de uma impostura. A criança adquire dificuldades poderosas porque não as soubemos travar à partida. Miúdos que não foram acompanhados desde a infância perdem imensas oportunidades de integração social e de desenvolvimento intelectual. Esse pecado original vai gradualmente acumulando à sua deficiência uma plêiade de outras problemáticas. Na verdade, não há outra razão para sentir a necessidade de aplicar currículos alternativos ou adaptações curriculares às crianças surdas, senão esta decisiva ausência de acompanhamento profissional desde o momento em que é diagnosticada a deficiência. Pagamos mais tarde o dobro do que não investimos mais cedo.
O rastreio auditivo, precoce, das nossas crianças é uma questão de integridade médica e de precisão educativa.
A Praça da Alegria e a Físico-Química
Aquilo que as impede de chegarem onde qualquer criança pode e deve chegar é a falta de uma língua comum. As escolas públicas e privadas têm toda a oportunidade de se tornarem espaços realistas de inclusão para os seus alunos com surdez.
O caminho é o de ir tornando as escolas portuguesas, públicas e privadas, crescentemente fluentes em língua gestual portuguesa junto dos professores e dos alunos.
Será compreensível que as televisões portuguesas, públicas e privadas, estejam obrigadas à presença constante de audiodescrição, legendagem ou interpretação por língua gestual portuguesa e que as crianças nas escolas possam estar arredadas do que representa um legítimo direito constitucional que lhes assiste?
Será que o Bom dia Portugal, a Praça da Alegria ou o Jornal da Tarde são mais relevantes do que a História, a Biologia ou a Físico-Química?
Cumpre, neste domínio, reconhecer que as televisões têm ido muito mais longe do que a lei lhes exige, ampliando o número de horas de programação traduzida e proporcionando programas emitidos em direto, pela internet, em duplo ecrã e com intérprete em grande plano, à escolha do espectador.
A Polícia de Segurança Pública portuguesa faz formação, pioneira em toda a Europa, de língua gestual portuguesa para os seus agentes. As câmaras municipais cada vez mais a utilizam nas suas cerimónias oficiais, transmissões de reuniões de executivo e assembleias municipais.
2023: o primeiro manual escolar com Língua Gestual
Como se justifica que apenas no ano de 2023 tenha surgido pela primeira vez no mercado português um manual escolar que introduz a tradução em língua gestual portuguesa? Disponibilizar conteúdos escolares pensados para atender a todos é uma medida constitucional, e não uma cortesia educativa. Seja qual for a deficiência.
Alunos surdos não são um nicho de mercado. São miúdos que não ouvem. É inaceitável que não tenham os mesmos suportes que lhes dêem as mesmas oportunidades que têm os seus colegas de turma. Inclusão não é um modismo ou um conceito amável. Inclusão é muito mais do que um dever cívico ou ético. Não é aceitável que se ache que os manuais escolares não têm de servir a todos. De resto, a sua crescente digitalização deve integrar cada vez mais estes suportes de comunicação gestual. Inclusão é um exercício prático de elementar cuidado e brio profissional. Só se percebe que a comunidade de surdos não é um nicho de mercado quando um filho nosso não ouve.
A terceira língua oficial portuguesa
Novos formatos de comunicação em realidade aumentada farão em breve enorme diferença na vida destes miúdos. As possibilidades trazidas com a inteligência artificial são infinitas. É preciso apoiar estas investigações aplicadas. Orçamento? Não é fácil encontrar um contribuinte que discorde que esta é uma boa maneira de aplicar os seus impostos, sob a forma de incentivos públicos. O caminho percorrido pelos técnicos e docentes nas escolas de referência é louvável, e inspirador até, mas temos de dar passos mais determinados.
A formação inicial e contínua de professores em língua gestual portuguesa tem de tornar-se uma realidade. A língua gestual portuguesa é uma das três línguas oficiais de Portugal, utilizada por cerca de 30 mil portugueses. Ela tem de estar presente nas escolas.
Como se explica que, apesar de existir uma rede de formação superior de docentes de língua gestual – aplauso sonoro ao trabalho dos Politécnicos portugueses - não exista ainda uma presença destes profissionais em cada escola portuguesa, seja para a instrução e tradução para alunos, seja para a formação contínua de pessoal docente e não docente?
O gesto e a palavra
Rousseau, Beethoven, Goya, Edison e Graham Bell, são surdos famosos cujas biografias aí estão para provar como existe vida para lá da audição e existe vida para lá, também, da língua gestual. Mas ela aí está, oficializada e estabelecida, pronta a oferecer cultura e ciência para todos. Saibamos explorar o que temos feito para chegar mais longe. Agrupamentos e escolas de referência, equipas de docentes e intérpretes, politécnicos e universidades, editoras escolares, canais televisivos, promotores de espetáculos, poder local e central já têm muito que mostrar, todos trabalham diariamente para chegar mais longe. Reconheçamos que há muito mais caminho para andar do que aquele que já andámos.
Escutemo-nos e aprendamos. É aí que reside a soberania dos pequenos gestos.