18.7.23

O que é que aconteceu com o acordo de cereais do mar Negro?

João Ruela Ribeiro e João Pedro Pincha, in Público


Ao fim de quase um ano em que foram exportados 32 milhões de toneladas de cereais e outros produtos, o acordo entre a Rússia e a Ucrânia mediado pela Turquia e a ONU expirou por vontade de Moscovo.

O cargueiro de bandeira turca TQ Samsun partiu de Odessa no domingo com 23.500 toneladas de milho e 15.300 toneladas de colza com destino aos Países Baixos. Foi o último a zarpar de um porto ucraniano antes de a Rússia anunciar, esta segunda-feira, que se vai retirar do acordo para a exportação de cereais.


Em que é que consistia o acordo?


O acordo regula o transporte marítimo de cereais através dos portos de Odessa, Chornomorsk e Pivdenni, localizados em regiões do mar Negro sob controlo ucraniano. Foi estabelecido um corredor humanitário acordado entre as partes que subscreveram o acordo que permitiu que os navios pudessem sair em segurança dos portos ucranianos até Istambul. Todas as embarcações são sujeitas a inspecções num porto turco por uma equipa composta por elementos ucranianos, russos, turcos e designados pela ONU.

Qual é o ponto de situação do acordo até agora?

Desde que a Iniciativa de Cereais do mar Negro foi posta em marcha, a 1 de Agosto do ano passado, por acordo entre a Ucrânia, a Rússia, a Turquia e a ONU, mais de 32 milhões de toneladas de cereais e outros produtos agrícolas foram exportadas a partir de quatro portos ucranianos.


O milho e o trigo foram os principais bens despachados, mas a bordo das centenas de navios também seguiram derivados de girassol, cevada e grãos de soja, entre outros. O mês com mais exportações foi Outubro de 2022 – mais de quatro milhões de toneladas – e Julho de 2023 destaca-se por ser o mês com menor volume de carga – não chega às 300 mil toneladas. Isto acontece porque a produção agrícola ucraniana tem sido fortemente afectada nos últimos meses pelos combates em grande parte das regiões mais férteis.


Kiev também diz que a queda recente nas exportações se deve à grande morosidade das operações de inspecção dos navios que chegam aos portos ucranianos por parte das autoridades russas, que geralmente suspeitam de que possam também estar a transportar armas clandestinamente. O jornal especializado em comércio marítimo, Lloyds List, descrevia recentemente a acumulação de filas de mais de cem navios à entrada do mar Negro à espera das inspecções.


Que países mais receberam cereais?

A China, a Espanha e a Turquia destacam-se como os três principais destinos das exportações feitas até agora, mas isso não quer dizer que sejam o destino final dos cereais. Na lista global de países, o primeiro que o Banco Mundial classifica como de “médio-baixos rendimentos” é o Egipto, que foi o destino para cerca de 1,5 milhões de toneladas de cereais.


Entre os países de “baixos rendimentos”, que receberam cereais, sobretudo graças ao fretamento de navios pelo Programa Alimentar Mundial (PAM), contam-se a Etiópia, o Iémen e o Afeganistão. Juntos receberam 545 mil toneladas de alimentos. No ano passado, metade do trigo adquirido pelo PAM veio da Ucrânia.

Que efeito teve o acordo no mercado alimentar global?

Não é só a exportação directa de cereais que ajuda os países mais pobres, tem dito o secretário-geral da ONU, mas também o efeito que o acordo teve no mercado alimentar global, fazendo baixar os preços de vários bens. Em Maio do ano passado, os preços dos cereais nos mercados internacionais atingiram um valor recorde e, apesar de permanecerem acima do preço praticado antes do início da invasão, o acordo de exportação através do mar Negro permitiu que não voltassem a disparar.

Por que é que a Rússia decidiu suspender?

Esta não foi a primeira vez que a Rússia suspendeu a sua participação no acordo. Em Outubro, na sequência de um ataque contra a frota naval no mar Negro, Moscovo abandonou o acordo, mas após negociações organizadas pela Turquia e pela ONU, o entendimento foi retomado. Desta vez, a natureza do impasse é diferente.

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Até ao fim da semana passada, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alimentava a expectativa de que a Rússia pudesse vir a aceitar uma proposta alternativa da União Europeia em permitir que uma instituição subsidiária do Rosselkhozbank pudesse servir como ponto de contacto com o SWIFT. Mas o regime de Vladimir Putin manteve as suas exigências.

E agora?

Para muitos analistas, o acordo já estava morto na prática, ainda antes de ter expirado o prazo para a sua renovação. Por isso, tanto a Rússia como a Ucrânia têm estado em conversações separadas com a Turquia para encontrar uma alternativa para escoar os cereais e os outros produtos agrícolas pelo mar Negro. Uma possibilidade, embora remota, é de que seja a Marinha turca a escoltar os navios comerciais entre os portos ucranianos e turcos.
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Também tem sido levantada a hipótese de que os cereais possam ser canalizados por Constanta, um porto romeno que é o mais próximo da Ucrânia, e depois utilizar o rio Danúbio. No entanto, as autoridades romenas alertam para a reduzida capacidade do seu porto face à quantidade de produtos que a Ucrânia costuma escoar.

No final da semana passada, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, disse ter estado em conversações com o Governo turco para procurar uma alternativa para que os cereais russos possam chegar aos seus compradores sem necessidade de um novo acordo.

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