27.4.15

Violência doméstica e desigualdade social

David Roque, in Público on-line

Uma sociedade desigual, de baixos salários, desemprego, falta de oportunidades é também mais desconfiada, mais doente, mais ansiosa e mais violenta.

Que a Humanidade é sapiens e demens, já o dizia o título do meu livro de Psicologia do secundário, que é o mesmo que dizer que cada pessoa pode ser, até em paralelo, sábia e demente. As tendências para a violência física fazem parte do nosso património genético ancestral e parecem ser mais acentuadas nos homens que nas mulheres. Dito isto, convém não reduzir a pessoa unicamente à sua biologia, porque frequentemente ela pode ser condicionante mas raramente é determinante. Nós somos seres culturais e temos essa capacidade fantástica de nos moldarmos a nós mesmos.

Vem isto a propósito das notícias de violência doméstica divulgadas pelos media, que fazem parecer que o fenómeno explodiu recentemente. Não, apenas se tornou menos tolerável a agressão exercida no seio familiar, que antes era considerado assunto menor. Contudo, chegados a este momento, é necessário escolher o caminho a trilhar pela nossa sociedade, pelo conjunto de homens e mulheres sapiens que são este país. Uma primeira hipótese é usar da nossa demência justiceira para penalizar fortemente todos os agressores, nomeadamente quase retirando-lhes os direitos de cidadania que lhes são devidos, como acontece nalgumas propostas acerca dos pedófilos. Uma segunda hipótese é, para além desse justo repúdio moral, encontrar soluções sociais para diminuir as ocorrências.

Prevenir é a palavra-chave. Vocábulo que não é utilizado pelos partidos do poder, porque traz exigências profundíssimas de alteração do nosso modelo social. É certo e dito por inúmeros estudos que a desigualdade social potencia a violência, em todas as suas formas, e a verdade é que Portugal continua um dos países mais desiguais do mundo desenvolvido, quase no mesmo patamar que os Estados Unidos. A desigualdade não tem relação direta com a riqueza de um país, mas sim como é distribuído aquilo que existe, para que cada pessoa se sinta justiçada e possa estabelecer relações de confiança com os outros.

Uma sociedade desigual, de baixos salários, desemprego, falta de oportunidades é também mais desconfiada, mais doente, mais ansiosa e mais violenta. Ao contrário do que dizem os governos mais liberais, a competição e empreendedorismo não traz mais felicidade que a cooperação e solidariedade. Nesta sociedade de prémios para os ricos e migalhas para todos os outros ninguém se sente seguro e aqueles que já são por natureza mais suscetíveis mentalmente, serão os primeiros a descarrilar. Não é de estranhar que boa percentagem dos homicídios e violência doméstica ocorram num panorama de desemprego e de baixa autoestima social.

Entregar a resolução dos problemas a instituições financeiras é dar preferência às entidades predatórias em vez de privilegiar os direitos humanos. Veja-se o caso da Grécia, onde um problema financeiro se transformou num grave problema humano e socia, sobretudo depois da intervenção da “troika”. Um relatório recente sobre o Banco Mundial constatava isso mesmo, a compreensão que aquela organização faz do progresso é de financiamento de projetos lucrativos mesmo que sejam levados a cabo por estruturas ou governos que violam os direitos humanos.

A constatação de como o modelo social desequilibrado propicia os acontecimentos não retira a responsabilidade aos atos individuais de cada um, mas deve dar que pensar a todos nós, porque sabemos que o justicialismo violento gera violência e uma sociedade demente, enquanto a justiça universal e equilibrada cria concórdia e estabelece um maior desenvolvimento humano. Para contrapor a componente demens dos nossos genes deveremos invocar os genes sapiens, para que a paixão não caia na patologia mas sim na criatividade e descoberta.