5.3.20

“Há cada vez mais desigualdade no Porto. Não se pode viver aqui”

Mariana Correia Pinto, in Público on-line

Na ilha do Beco do Paço, o anúncio do fim dos contratos instalou o medo. Senhorio vai realojar dois inquilinos, os restantes ficam por sua conta. Câmara do Porto não garante casas no imediato e todos recusam ir para albergues. E agora? “Vou para a rua dormir e pedir… é o que me resta”
26 de Fevereiro de 2020, 7:18

O silêncio de Mamadou Samba é ensurdecedor. Empurra a porta vermelha de entrada na sua ilha e caminha lentamente pelo longo e estreito corredor, entre electrodomésticos velhos, malas vazias, móveis, sacos, bacias, cobertores, vasos pouco floridos. Caminha alheio à conversa acesa entre os vizinhos, como se ignorasse um filme demasiados vezes repetido na TV. Os contratos de arrendamento de quem ainda ali habita foram cessados. O prazo dado pelo senhorio já passou. Mas, sem alternativa à vista e numa angústia crescente, resistem à saída. Mamadou Samba, boina preta e olhar deserto, permanece introspectivo. Passa pelos vizinhos, abre a porta de casa, puxa uma cadeira para o corredor. A sua imagem, sentado e de cigarro na mão, é a metáfora perfeita do fim. Numa revolta taciturna, desorientada e já sem forças. “Está tudo igual”, acaba por dizer, minutos depois.
“Tudo igual” é sinónimo de interrogação profunda quanto ao tempo por vir. A dias do último Natal, quando o PÚBLICO ali entrou pela primeira vez e a notícia indesejada trazida pelo senhorio causava inquietação, as palavras já lhe faltavam. “Querem tirar a gente à toa”, contava, desnorteado, enquanto exibia a sua “casa-bunker”: Metros quadrados contados na palma de uma mão, cozinha a que não se pode chamar cozinha, sem casa de banho, colchão no chão e paredes enegrecidas pela humidade. Mamadou Samba chegou há 11 anos ao Beco do Paço, pequena artéria portuense sem saída nem honras de toponímia para lá da designação do lugar. Cobravam-lhe 125 euros mensais por aquele pedaço de casa que não é casa, “é um buraco”, a poucos passos do Hospital de Santo António. Paga água, luz, medicação, faz as refeições num albergue na Praça da República. Sobra pouco para lá da promessa de resistir: “Não saio, daqui não saio.”

É uma frase repetida por quase todos. Não por teimosia ou capricho, mas por um sentimento de atropelo e ausência de opções. Ana Sousa fora a primeira a dar por estranhos no corredor da ilha, apressando-se a chamar o companheiro. “Ele fala melhor”, justifica-se. António Santos tem frases assertivas e 51 anos de uma vida nunca em linha recta. Há meses diagnosticaram-lhe duas hérnias na coluna e indicaram-lhe o caminho do bloco operatório. O patrão mostrou-lhe o caminho da rua. Sem emprego nas obras nem direito a subsídio de desemprego, sobrevive com o Rendimento Social de Inserção (RSI): menos de 200 euros que não lhe permitem itinerário algum.

Ana Sousa vem de telemóvel na mão para mostrar a impossibilidade matemática da sobrevivência. Todos os dias procuram um tecto novo, antevendo o momento em que a polícia invada a ilha e os obrigue a sair. Arrendar uma casa no Porto é pura utopia para o casal, ambos com RSI — “Pedem 600, 800, 1000 euros...” — e mesmo uma simples cama revela-se uma busca inglória. “Quartos para casal são 375”, responderam-lhe por sms quando tentou saber mais sobre um anúncio online. “260 euros”, lê-se noutra mensagem, com o aviso pronto de seguida: “só para solteiros.”

No início de Janeiro, António Santos entregou os papéis de pedido de casa na empresa municipal de habitação do Porto, consciente da ausência de direitos na sua ilha por não ter um contrato há anos suficientes. A lei só obriga o senhorio, que o PÚBLICO não conseguiu contactar, a realojar dois inquilinos e é para eles que tem procurado alternativa. Para António, a resposta do município chegaria um mês depois: a candidatura não atingia a “pontuação mínima para a qualificação e atribuição de uma habitação em regime de arrendamento apoiado”. Jurando ter apenas o RSI como rendimento e explicando ter feito o pedido apenas para ele porque a companheira estava, naquela altura, ausente, aponta a frase na carta e questiona: “Será que não tenho direito por não ter dinheiro? Ou acham que tenho a mais?”

Quem não cumpre a matriz do regulamento da Domus Social é geralmente convidado pela autarquia a fazer uma candidatura ao Porto Solidário, projecto municipal de apoio ao pagamento da renda ou empréstimo bancário que aumentará a sua dotação para dois milhões e prevê auxiliar 1000 famílias na nova edição. “Mandaram-me procurar uma casa que depois apoiavam. E onde estão as casas?!”

António Santos pediu casa na Domus Social, mas não teve direito
A diferença entre rendas e rendimentos é crescente. O aviso é de académicos e foi comprovado recentemente por uma equipa de investigadores da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, que relatam uma frequente incapacidade de famílias com rendimentos médios de aceder a um apartamento dito mediano. Para quem fica abaixo desses, o drama agrava-se. Isso mesmo está dito na Estratégia Local de Habitação, elaborada pelo próprio município para concorrer ao Programa de Apoio ao Acesso à Habitação - 1.º Direito. Analisando o segundo quintil, correspondente a rendimentos mais baixos, revelaram a quase completa incapacidade dessas pessoas para aceder ao mercado: só numa tipologia T0 é possível pagar, em todas as freguesias do Porto, uma renda definida pela ONU e pelo 1º Direito como comportável (aquela que não compromete a satisfação de outras necessidades básicas).

No Porto, a habitação social é a finta mais comum ao problema: 30 mil pessoas vivem em bairros camarários e cerca de 1000 já tiveram direito a uma casa, mas aguardam por ela numa lista de espera com tempo estimado de três anos. O número não mostra todo o universo carente de um tecto, como revelou a própria autarquia num estudo de 2017 realizado a pedido do Governo, apontando para o dobro a quantidade de famílias em “privação severa de habitação”. Para alguns, o caminho parece barrado nas duas vias: numa, um mercado privado escasso ou com preços inacessíveis, noutra uma resposta social incapaz de abraçar todos. Sobram, depois, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, que terá cerca de mil casas no Porto, e respostas de emergência social recusadas por muitos: dormir em albergues ou pensões é, para eles, uma não-solução. A habitação, direito constitucional, deve ser garantida, em primeiro lugar, pelo Governo, têm repetido o executivo de Rui Moreira e a oposição. Mas, na ilha do Carregal, na freguesia do centro histórico, a Constituição não passa da porta.

No fio da navalha
António Santos chega-se à casa da vizinha do lado. “Oh Sãozinha, anda cá fora!” Maria da Conceição abriga-se no número cinco da ilha por caridade. Ser dependente do tio António Moura Pinto — um dos dois inquilinos que serão realojados pelo senhorio, pela idade e por terem contratos antigos — nunca esteve nos seus planos. Trabalha há mais de vinte anos a fazer limpezas num colégio privado do Porto onde a mensalidade mais baixa não anda muito longe do salário mínimo e a máxima lhe daria condições de uma vida folgada. Maria da Conceição deixou de conseguir pagar os 300 euros do quarto a que chamava casa, na Ribeira, quando uma cirurgia à mão esquerda a forçou a ficar de baixa. Agora, nem esse rendimento tem.

A pernoitar entre as paredes do tecto da filha e a minúscula casa do tio, onde a cama é curta para o seu tamanho, diz ter perdido a chegada de uma carta registada com convocatória para a junta médica. Faltou, perdeu direitos. Maria da Conceição tem 66 anos, entregou os papéis para a reforma, mas pondera todos os dias voltar ao colégio, contra indicação médica e apesar da falta de força. Na bacia pousada no corredor pode ilustrar a sua incapacidade: “Pus ali a roupinha de molho e agora nem consigo torcê-la. Esta minha mão está muito mal...”

Como o vizinho, também ela pediu uma habitação camarária em Janeiro. O processo está em análise, mas, conhecendo o desfecho do caso de António Santos, teme o pior. “E se não tiver casa?”, pergunta sem aguardar réplica. O descrédito na democracia cresce e o medo da mudança instala-se. Maria da Conceição orgulha-se da nova cidade, bonita e cobiçada, mas questiona a utilidade da sua beleza se não a poder viver também. “É tudo para turista ver”, reclama, falando dos preços das habitações e dos “hostels por todo o lado.”. O regulamento para o Alojamento Local está a ser redigido há quase um ano pela câmara, que determinou a suspensão temporária de novos registos no centro histórico e na freguesia do Bonfim, onde o número de AL é já superior ao de habitações, até à sua conclusão. No estudo-base para a elaboração do regulamento, sobressaíam dados agridoces. A reabilitação urbana no Porto fez-se graças ao turismo, quis sublinhar o executivo. Mas a expulsão de moradores por causa desse mesmo motor económico foi significativa — 57% dos AL haviam ocupado casas onde morava gente —, apontaram outras forças políticas.

Na ilha, a discussão afasta-se de dados, mas recheia-se de realidade. E da impressão de uma vida sentenciada: sem pilares, de pobreza entranhada, às vezes geracional, mas nunca voluntária. “Vou para a rua viver e pedir… é o que resta”, acrescenta Maria da Conceição como se respondesse, com receio, à sua pergunta anterior. “Ninguém quer viver assim, mas aqui chegámos...” Ao lado, António Santos acena de cabeça baixa e resume a sua dor: “Há cada vez mais desigualdade no Porto. Não se pode viver aqui.”