Alexandra Campos, in Público
No início, foi a corrida às vacinas contra a covid-19. Agora, há milhões de doses de sobra e muitas foram já para o lixo. Comissão Europeia está a tentar renegociar contratos com as farmacêuticas.
Quando as vacinas contra a covid-19 surgiram, em Dezembro de 2020, chegavam aos países a conta-gotas, foram racionadas e muito disputadas, numa autêntica “corrida” a nível internacional. Com a normalização da situação epidemiológica e o crescente desinteresse na vacinação de reforço, os países confrontam-se hoje com o problema inverso: não sabem o que fazer aos milhões de doses de vacinas que encomendaram no pico da crise pandémica e às que vão sobrando e têm prazos de validade curtos. Muitas doses já foram para o lixo e a Comissão Europeia está agora a tentar renegociar contratos com as farmacêuticas.
Portugal não é excepção. Até ao final do ano passado, teve de destruir "aproximadamente 3,5 milhões de doses" de vacinas e que foram adquiridas através do processo de compra centralizada conduzido pela Comissão Europeia, revela o Ministério da Saúde. É “uma taxa de inutilização de 8,5%”, contabiliza, sublinhando que representa, mesmo assim, uma das “menores taxas de inutilização a nível europeu”, graças à "conjugação da grande adesão dos portugueses à vacinação" e "uma eficaz e responsável gestão do aprovisionamento".
Os contratos com as farmacêuticas são confidenciais e os valores não são revelados, mas são muitos os milhões de euros que estão a ser desperdiçados e muitos mais os que podem vir a ser desperdiçados no futuro. Num breve balanço feito a pedido do PÚBLICO, o Ministério da Saúde não contabiliza a despesa com a aquisição de vacinas até ao momento. Adianta apenas que, entre 2020 e este ano, Portugal celebrou 14 contratos com seis fornecedores de vacinas e que foram entregues cerca de 40 milhões de um total de 61,7 milhões de doses encomendadas e adquiridas para o período até 2023.
Deste total, especifica, foram já utilizadas cerca de 28,5 milhões de doses, enquanto aproximadamente 8,1 milhões foram doadas e mais de 2,6 milhões foram revendidas a outros países.
Em teoria, portanto, Portugal deveria receber este ano mais de 20 milhões de doses de vacinas contra a covid-19. Mas espera-se que seja possível reduzir a quantidade e alargar os prazos de entrega das vacinas. Lembrando que há “um processo em curso” de renegociação na União Europeia, o ministério diz que “não é possível adiantar o número de entregas para 2023”.
“A Comissão Europeia, em representação dos Estados-membros da União Europeia, está a conduzir o processo de renegociação de um contrato assinado em 2021, no sentido de o ajustar às actuais circunstâncias epidemiológicas e estratégias de vacinação de cada Estado-membro, flexibilizando-se as quantidades e compromissos de entrega”, explica, em resposta escrita.
À semelhança do que está a acontecer em todo o mundo, desde que a campanha de vacinação arrancou, a adesão — que em Portugal é uma das mais elevadas do mundo — foi esfriando à medida que a situação se ia normalizando.
A campanha do segundo reforço (a quarta dose para a maior parte das pessoas) a nível nacional ficou longe das médias das anteriores. Até 23 de Abril (últimos dados da monitorização divulgada pela Direcção-Geral da Saúde), estavam vacinados 79% dos idosos a partir dos 80 anos (contra 97% no primeiro reforço). Mas na faixa etária entre os 50 e os 59 anos, a diferença era bem maior (45% de vacinados, contra 87% no primeiro reforço). Actualmente, vacinam-se muito poucas pessoas — na semana entre 17 e 23 de Abril, foram administradas apenas 1310 doses de reforço, um ritmo de 187 por dia.
Reduzir entregas e alargar prazos
Portugal aguarda, assim, o desfecho do processo de renegociação dos contratos com as farmacêuticas que a Comissão Europeia está a conduzir desde há algum tempo para atenuar o problema das doses em excesso, agora que o pior já passou e a Organização Mundial da Saúde já declarou o fim da covid-19 como uma emergência sanitária global.
Em Março passado, numa resposta ao Parlamento Europeu, a comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, assegurava, citada pelo El País, que a Comissão estava a trabalhar com os Estados-membros e a indústria farmacêutica para encontrar “uma solução para o desequilíbrio entre a procura e a oferta” de vacinas. “Já se aprovaram várias alterações ao acordo de compra com a BioNTech-Pfizer para podermos cobrir parcialmente as necessidades dos Estados-membros. Não obstante, a Equipa Conjunta de Negociação continua a negociar uma redução das doses a entregar em 2023.”
Segundo o jornal Financial Times, que cita fontes ligadas a este processo, o acordo passa por alargar até 2026 as entregas que estavam encomendadas e se previa chegassem até ao final deste ano. Mas isso não chega para resolver o problema de todas as doses que já foram adquiridas e que correm agora o risco de ultrapassar o prazo de validade.
Enquanto as negociações decorrem, milhões de doses das vacinas vão ultrapassando os prazos de validade. Em Janeiro, a Alemanha contabilizava que seriam 36,6 milhões de doses cujos prazos estavam a expirar, e a Áustria revelou que quase 18 milhões de doses da vacina chegaram ao fim da validade e não foram usadas
Vários países têm estado a fazer pressão para que estas negociações acelerem. Com a Polónia na liderança, um grupo de países — que inclui a Bulgária, a Hungria e a Lituânia — reclama maior transparência neste processo e defende que a Pfizer e outras farmacêuticas devem aceitar renegociar as condições dos contratos e facilitar o cancelamento de encomendas, lembrando que as circunstâncias são hoje completamente diferentes. O maior contrato da UE é o que foi assinado com a Pfizer/BioNTech. Firmado no pico da pandemia, o acordo determina que a UE compre 500 milhões de doses este ano, numa altura em que as taxas de vacinação diminuíram substancialmente e a pandemia entrou numa fase endémica.
Enquanto as negociações decorrem, milhões de doses das vacinas vão ultrapassando os prazos de validade. Em Janeiro, a Alemanha contabilizava que seriam 36,6 milhões de doses cujos prazos estavam a expirar, e a Áustria revelou que quase 18 milhões de doses da vacina chegaram ao fim da validade e não foram usadas.
“Apesar de a situação epidémica estar estabilizada em toda a Europa, a Pfizer continua a planear entregar centenas de milhões de vacinas à Europa. Isto carece totalmente de sentido do ponto de vista da saúde pública, já que a maior parte destas será destruída devido ao limitado prazo de validade e à reduzida procura”, argumenta o ministro polaco da Saúde, Adam Niedzielski, numa carta aberta aos accionistas da Pfizer e que foi divulgada na última semana.
Na carta, o ministro sublinha que a Polónia recusa liminarmente a possibilidade — também adiantada pelo Financial Times — de que Bruxelas acorde com a Pfizer a entrega de 70 milhões de doses anuais até 2026, com a condição de os países pagarem metade do preço da vacina por cada dose cancelada.
Isso “não é justo”, defende o ministro da Saúde polaco, destacando que estão em causa vacinas que ainda nem sequer foram produzidas. Frontalmente contra esta “taxa de cancelamento” das encomendas, o ministro pede à Pfizer que apresente “propostas realistas que respondam à situação que [hoje é] completamente diferente na Europa”. “Em vez de mostrar solidariedade, a empresa quer obter ainda mais dinheiro de fundos alocados por Estados-membros da UE que tinham como objectivo a protecção da saúde pública”, critica.