9.5.23

Proxenetismo regressa ao Tribunal Constitucional. Lucrar não é crime, dizem juízes

ANA Henriques, in Público


Quando se pensava que os conselheiros tinham decidido de uma vez por todas a questão do lenocínio, situação sofre uma reviravolta.


Depois de ter decidido, há menos de dois anos, que o proxenetismo deve continuar a ser crime, o Tribunal Constitucional abriu no mês passado caminho para a despenalização desta prática. Quatro dos 13 juízes do Palácio Ratton, entre eles o seu novo vice-presidente, consideram que “a decisão de uma pessoa se prostituir pode constituir uma expressão plena da sua liberdade sexual”. E defendem ser inconstitucional punir com cadeia quem lucra com a prostituição alheia praticada de livre vontade.

Em causa está a associação recorrente entre proxenetismo e violação da liberdade sexual: a lei presume que quem vende o corpo o faz sob alguma forma de coacção, razão pela qual a melhor forma de evitar esse risco é punir à partida quem gere este tipo de negócio — independentemente de esta actividade ser ou não exercida de forma livre e esclarecida. Nem sempre foi assim: a redacção legal do crime que existia até 1998 fazia depender a condenação dos proxenetas de ficar provado estarem a explorar situações de abandono ou necessidade económica das suas vítimas.

O caso sobre o qual os conselheiros do Constitucional agora se pronunciaram diz respeito a um bar de alterne com quartos no primeiro andar que funcionava numa localidade do concelho de Valpaços em 2016, e que foi alvo de uma rusga do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. As dez mulheres que trabalhavam no Dancing Show explicariam mais tarde, no Tribunal de Vila Real, que ganhavam à comissão pelas bebidas que os clientes pediam. Quanto aos serviços sexuais, custavam 40 euros cada, dez dos quais revertiam para o casal que geria a casa.

Apesar de nesta altura, no Verão de 2022, o plenário do Tribunal Constitucional já se ter pronunciado pela manutenção do crime no Código Penal — com cinco dos conselheiros a votarem porém vencidos —, a juíza de Vila Real encarregada de analisar o caso recusou-se a condenar o casal, tendo invocado na sua sentença a posição de um antigo presidente do Palácio Ratton, Costa Andrade, segundo o qual incriminar proxenetas que não violaram a liberdade sexual de ninguém constitui “um exercício de moralismo atávico”, impensável numa sociedade secularizada e democrática.

“A incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que, sendo adultas, esclarecidas e livres devem poder escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da ‘virtude’ como do ‘pecado’”, defendeu o jurista.

É impossível dizer neste momento se o crime irá deixar de existir. Caso surjam mais duas decisões de inconstitucionalidade no Palácio Ratton, o plenário terá de se reunir para apreciar outra vez o assunto


Porém, até hoje esta sempre foi uma posição minoritária no Constitucional. E quando em 2021 os juízes decidiram, em plenário, que iam manter em vigor o crime de lenocínio mesmo nos casos em que não se verificava coacção de nenhum tipo, não era expectável que, menos de dois anos depois, os conselheiros que na altura votaram vencidos tentassem inflectir a posição do tribunal.

O que agora sucedeu é aliás considerado inédito, uma vez que a estabilidade jurisprudencial costuma ser um princípio caro aos magistrados. Ciente desse facto, o relator do mais recente acórdão sobre o assunto, Lino Ribeiro, deixa uma explicação no texto que redigiu, e contra o qual votou o então presidente do Constitucional, entretanto substituído por ter terminado o mandato.


Alega Lino Ribeiro que, por um lado, vários dos juízes que se pronunciaram a favor da punição do proxenetismo em 2021 já se foram embora do Palácio Ratton; e, por outro, que não estando os tribunais de primeira instância a seguir todos o entendimento do Constitucional — não são obrigados a fazê-lo —, se chegou a uma situação de “jurisprudência com força suficientemente mitigada” que dá legitimidade a estes quatro conselheiros para contrariarem aquilo que o plenário decidiu há menos de dois anos.

É impossível dizer neste momento se o crime irá deixar de existir. Caso surjam mais duas decisões de inconstitucionalidade no Palácio Ratton, o plenário terá de se reunir para apreciar outra vez o assunto. E se a posição dos juízes mais antigos é conhecida, o mesmo não sucede com a dos três novos conselheiros que tomaram posse há menos de um mês.

A advogada de um dos arguidos do processo, Alexandra Vagaroso, mostra-se satisfeita: “Afinal, só subiam ao andar de cima as mulheres que queriam fazê-lo. Ninguém era obrigado.”

Também para a penalista Inês Ferreira Leite, esta recente deliberação do Constitucional é positiva — muito embora entenda ser necessária uma nova redacção do Código Penal que, mantendo incólume a liberdade dos trabalhadores sexuais, permita penalizar métodos de coacção e constrangimento como a retirada de documentação às vítimas ou a sua obrigação de permanecerem no local de trabalho noite e dia, sem poderem sair. E que impeça que a repartição de lucros seja desigual.

“Em casos como o de Valpaços, não há razão para o Estado intervir”, considera, chamando a atenção para a necessidade de regulamentar este tipo de actividade.

“A Juventude Socialista tem uma proposta nesse sentido inspirada no modelo neo-zelandês em que só é permitido gerir esta actividade a quem também a pratique. É uma boa opção”, diz.

Num artigo que escreveu em 2011, já Inês Ferreira Leite dava conta das especificidades da prostituição: “Tratando-se do exercício de uma actividade económica que se prende com uma das esferas mais sensíveis da intimidade humana e que mais consequências pode ter ao nível do saudável desenvolvimento da personalidade e de uma plena integração na sociedade, não será absurdo que o Estado tenha o dever de promover — activamente, positivamente — a garantia de que a decisão de se prostituir é tomada livremente e com toda a autonomia."