14.9.23

46. Palavra da semana: ginásio

Bruno Vieira Amaral Escritor, opinião, in Expresso


Ginásio ou a crónica de uma rendição tardia aos benefícios do exercício físico, embora mantendo reservas quanto ao bom juízo dos praticantes


Ao contrário de companheiros de geração que, ainda não tinham acabado o secundário, e, em alguns casos, duvido que o tenham concluído, descobriram os benefícios do ginásio, sempre resisti a inscrever-me nesses templos malsãos, embora reconhecendo os inequívocos efeitos das horas que ali passavam porque não é a ler Camus ou Dostoievski que se conseguem bíceps hercúleos e gémeos de trinco teutónico como os que exibiam para meu grande espanto e inveja.


Para sossego de consciência e defesa da minha preguiça, desenvolvi um intricado sistema filosófico não tanto contra a prática desportiva em si – que, em geral, considero benéfica desde que não implique grandes esforços, transpiração abundante e urros marciais – mas contra a obrigação de ser eu a incorrer em tais práticas – e só o verbo “incorrer” já me acelera as pulsações e me dá dor de burro.

De uma célebre citação, talvez apócrifa, de Winston Churchill – segundo a qual única ginástica que fizera em toda a vida fora a de segurar as pegas dos caixões de amigos que ao exercício físico tinham devotado horas irrecuperáveis – à diatribe contra o desportista, um libelo que Mario Vargas Llosa atribui ao seu brilhante personagem Dom Rigoberto, tudo me servia para me blindar aos apelos ínvios da vaidade para que me pusesse a correr numa passadeira mecânica ou para que me submetesse, de livre vontade e ainda por cima pagando, ao ordálio de levantar pesos sem uma utilidade discernível, fazer sessões de abdominais em grupo ou – ignomínia das ignomínias – obedecer às ordens de agachamento de um enlouquecido professor de ginástica – ou personal trainer – que se julga prestes a destruir Cartago.

Como Dom Rigoberto, e por razões semelhantes, também eu tinha dificuldade em detetar alguma virtude na máxima “mente sã em corpo são” porque o que nos nossos dias se entende por mente sã não me parece muito desejável e até ligeiramente desumano e quando aliado a um corpo capaz de olímpicas proezas gera monstros cujos sacrifícios e feitos posso admirar, à distância, mas nos quais vislumbro uma sombra de psicopatia e pobreza espiritual que não só não invejo como deploro. Uma mente sem vícios, triunfante, é o cemitério da imaginação.

Então, ao entrar na quinta década de vida, fatalmente, pus pela primeira vez os pés num ginásio, depois de um breve período em que corri como nunca até a preguiça me ter atirado de novo para os braços do sofá. Todos os meus preconceitos e temores acerca do ambiente de ginásio se confirmaram: todos os dias temo tombar de exaustão ou de vergonha ou de ambos quando pedalo dois minutos no nível 16 da bicicleta estática e todos os dias receio que àquele rapaz de metro e meio lhe rebente a veia do pescoço quando, a exemplo da formiga que carrega cem vezes o seu peso, também ele vence a inércia e a gravidade com esgares perturbadores de halterofilista turco obstipado.

Apesar da atmosfera gregária, do esforço sobre cujo sentido diariamente me interrogo e da disciplina que me imponho, contrariando a minha natureza e a filosofia defensiva atrás da qual me muralhei durante anos, já me habituei a esta nova rotina de que tenho colhido benefícios que, por pudor e boa educação, não irei detalhar. Tudo isto ainda me parece um pouco ridículo e nada me incomoda mais do que imaginar-me o alvo do desdém de Dom Rigoberto. Para que o opróbrio não seja total, resisto a tornar-me apóstolo do exercício físico e do ginásio com a fúria dos convertidos tardios. Mas que lá vou à missa no templo do corpo, não tenho como negar.