6.9.23

Inês tem uma deficiência e lugar reservado para o carro à porta de casa, mas descobriu pela polícia que o lugar deixou de ser só seu

Marta Gonçalves, in Expresso


Inês de Castro mora em Lisboa, desloca-se em cadeira de rodas e desde que conduz que tem lugar reservado à porta de casa, sinalizado com o sinal vertical de estacionamento para pessoas com mobilidade reduzida e, por baixo, o número do seu dístico de estacionamento. Recentemente, as coisas mudaram e qualquer pessoa com mobilidade reduzida pode usar o lugar que ela pediu. Autarquia assegura que está a tentar resolver a situação. Mais de metade dos lugares para pessoas com mobilidade reduzida (67%) estão atribuídos a pessoas específicas, no entanto, essa atribuição é irrelevante


rua onde mora Inês de Castro, em Benfica, tem apenas um sentido. A entrada para a sua casa fica mais ou menos a meio e, mesmo junto à porta, o lugar reservado para pessoas com mobilidade condicionada que pediu à Câmara Municipal de Lisboa para reservar deixou de ser apenas seu - um direito que pode ser exercido por qualquer pessoa com deficiência. Inês, que se desloca em cadeira de rodas, tem um sistema instalado no carro para assistir a tirar e a pôr a cadeira de rodas precisa especificamente daquele lugar. “A minha vida mudou a 27 de maio”, conta ao Expresso Inês, de 55 anos.

O lugar que lhe foi atribuído, com o número do seu dístico, deixou de ser apenas seu. “Até então, se alguém estivesse estacionado no meu lugar, ligava à polícia, vinham, multavam e rebocavam.” Naquele dia, nem multaram, nem rebocaram, argumentaram que era uma nova norma e que a sinalização com o número do dístico de Inês era inválida.



“Essa foi a primeira vez que aconteceu e entrei em pânico porque, de repente, afetou-me de facto muito”, diz. “Já aconteceu mais duas vezes, sempre com a mesma pessoa. O argumento é que o lugar é universal para todas as pessoas com mobilidade reduzida e por isso qualquer pessoa com mobilidade reduzida pode utilizar. Até então, sempre que tinha alguém no meu lugar, chamava a polícia, demorava mais hora, menos uma hora - nunca é muito rápido -, mas lá se fazia e eu ia para a casa. Agora como é que vou para casa? Se estiver sozinha, durmo no carro. O meu problema é este: como é garanto que vou para casa, que tenho lugar, que tiro a minha cadeira do carro?”, questiona.

A alteração no modo de atuação da polícia, neste caso da Polícia Municipal, prende-se com o facto do sinal com o número do dístico não estar previsto no Código da Estrada e ir contra a convenções assinadas por Portugal, explica a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ASNR), em resposta ao Expresso.

“O Estado Português, enquanto parte contratante da Convenção de Viena sobre a Circulação (CVSCR) comprometeu-se a proceder de modo a que seja proibido ‘apor num sinal, no respetivo suporte ou em qualquer outra instalação que sirva para regular a circulação o que quer que seja que não se relacione com a finalidade desse sinal ou instalação’”, sublinha a ASNR.

Ou seja, aquela segunda placa com o número do dístico não é válida no entender da ASNR e qualquer pessoa com dístico de mobilidade reduzida pode estacionar nos lugares para pessoas com mobilidade reduzida, esteja este ou não atribuído a alguém em particular.

Atualmente, a autarquia assegura que há por toda a cidade 2171 lugares para pessoas com mobilidade condicionada; 1461 destes foram atribuídos a pessoas em concreto (o que representa cerca de 67%).

“O atual executivo camarário está a preparar ações com vista a sensibilizar as autoridades competentes a equacionar a alteração da legislação em vigor, de modo a que o lugar de estacionamento para pessoa condicionada na sua mobilidade possa ser de uso exclusivo”, diz ao Expresso a Câmara, acrescentando que continua a reservar o “lugar de estacionamento para pessoa condicionada na sua mobilidade, a pedido do interessado”. Caso este não esteja disponível, a autarquia sublinha que as estas pessoas “podem estacionar em lugares não reservados, beneficiando sempre de isenção de tarifa de estacionamento”.
PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO

Logo após a primeira vez em que a polícia nada fez para remover o carro que ocupava o lugar que lhe era atribuído, Inês de Castro inscreveu-se numa reunião camarária pública, onde expôs a sua situação. Em resposta, e antes de passar a palavra ao vice-presidente da CML, Carlos Moedas disse desconhecer “completamente” que algo assim estava a acontecer. Filipe Anacoreta Correia, por sua vez, argumentou que a interpretação da Convenção é “discutível e questionável”, dando a garantia que a autarquia ia “tentar advogar”.

A ASNR, além da Convenção de Viena, suporta ainda a medida na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). “Foram adotadas políticas de discriminação positiva dos cidadãos portadores de deficiências que, pelas suas limitações e incapacidades, veem a integração na sociedade e no mercado de trabalho mais penosa e dificultada que os restantes cidadãos. Assim, sendo o princípio da não discriminação uma concretização do princípio da igualdade, devem todos os cidadãos com deficiência beneficiar de medidas concretas tendentes a favorecer a sua integração social e profissional”, pode ler-se na resposta enviada ao Expresso, reforçando que “não se considera justificável a criação da possibilidade da atribuição de um lugar de estacionamento que beneficie um determinado cidadão portador de deficiência” em “detrimento dos demais portadores de deficiência”.

No entanto, de acordo com Regulamento Geral de Estacionamento e Paragem na Via Pública da CML, o pedido para a reserva de lugar deve ser feito mediante a apresentação de uma série de documentos. Cada cidadão tem o direito de fazer este pedido para junto do local de residência ou/e de trabalho, pode ler-se. “Eu pedi aquele lugar, se alguém se lembra de estacionar ali sempre e não pedir um lugar para si, eu estou bem tramada”, vinca Inês de Castro, não tendo qualquer possibilidade de pedir mais lugares junto a sua casa.

Em situações limite, defende ainda a ANSR, cabe à autarquia “o introduzir alterações nos aspetos construtivos da via” para permitir a capacidade de mobilidade de determinada pessoa. “Considera-se que se torna premente a tomada de medidas apropriadas por parte das autarquias locais, nomeadamente no que diz respeito ao ordenamento do estacionamento de veículos e à criação de um maior número de lugares, na via pública, para o estacionamento de veículos que transportem pessoas com deficiência, titulares de cartão de estacionamento, sendo com tais medidas que se garante a igualdade de facto entre pessoas com deficiência.”