11.9.23

Licenciados estão a sair e a triplicar o salário lá fora

TEXTO RAQUEL ALBUQUERQUE INFOGRAFIA SOFIA MIGUEL ROSA, in Expresso


Emigração qualificada está a crescer mais depressa e há países nórdicos com recorde de entradas de portugueses. Peso da casa nos baixos salários está a expulsar jovens do país e ameaça trazer uma nova vaga de emigração nos próximos anos


Rafael acabou o curso de Engenharia Aeroespacial no Instituto Superior Técnico (IST) e começou a trabalhar numa empresa do sector aeronáutico com um contrato de um ano através do IEFP. Quando acabou, demoraram tanto tempo a decidir se o contratavam que o jovem, então com 25 anos e sem muitas alternativas na sua área, mudou-se para uma empresa de engenharia mecânica. Pagavam-lhe €1200 líquidos e gastava €400 por um quarto, numa casa dividida com dois amigos, um deles a dormir na sala. Todos os dias trabalhava com colegas europeus que, para fazerem o mesmo que ele, recebiam bem melhor e tinham mais dias de férias. Percebeu que era irracional continuar cá e, no verão de 2021, aceitou uma proposta para receber quase o triplo do salário e fazer em França o que fazia em Portugal. Só nos últimos dois anos viu chegar à sua empresa uma dezena de portugueses. Agora, depois de pagar a renda de €1000 da casa onde vive sozinho, a 35 minutos do centro de Paris, sobram-lhe €2000 para as restantes despesas, que já nem sequer são assim tão mais caras do que em Lisboa.


O rumo de Bernardo Silva, aos 34 anos, foi semelhante. Emigrou em julho de 2022 para trabalhar no IKEA, nos Países Baixos. Estudou Engenharia Civil em Lisboa, trabalhou dois anos em São Paulo (Brasil), mais tarde especializou-se em gestão e distribuição logística, trabalhou na área que queria em Portugal, mas, dez anos depois de concluir o curso, percebeu que estava a ganhar menos do que quando esteve no Brasil, ainda recém-licenciado. Foi o que o levou a sair novamente: agora é gestor de produto, tem a seu cargo 25 programadores e vive em Amesterdão, onde já comprou casa. “Recebi uma proposta que me pagava três vezes mais do que eu estava a receber. Um ano de trabalho cá são três em Portugal.”


“Um ano de trabalho nos Países Baixos são três em Portugal”, diz Bernardo, que emigrou aos 34 anos


São assim as histórias de muitos outros jovens qualificados que têm saído do país nos últimos anos, empurrados pelo crescente peso que as rendas e as prestações da casa ao banco têm nos seus salários, que pouco vão além dos €1000 líquidos. Luciana Alegre, 32 anos, designer, mudou-se para Oslo e saltou de €1200 para €4500, o mesmo que recebe o namorado, também português, e que trabalha como informático. Compraram casa em Oslo e, depois de pagar a prestação ao banco e as despesas, sobram-lhe €2700, ou seja, 60% do salário. Também Emanuel Lopes e Filipa Sousa mudaram-se em 2022 de Almada para Berna, na Suíça. Trabalham em biotecnologia e passaram de um salário de menos de €30 mil brutos por ano para mais de €110 mil cada um. A renda do T3 de 200 m2 com jardim no centro da cidade custa-lhes €3500, cerca de 22% do que ganham. Depois de pagarem outras despesas e a creche do Viriato, de 2 anos, que ainda nasceu em Portugal, sobra-lhes cinco vezes mais dinheiro do que antes.


“Há sinais de um pequeno aumento da emigração em 2022, face a 2021. Não será muito acentuado porque desceram as entradas no Reino Unido. Mas vemos um grande aumento para novos destinos, sobretudo do Norte da Europa, mesmo que mais reduzidos em número absoluto”, diz Rui Pena Pires, coordenador do Observatório da Emigração. “A ver pela alteração dos destinos, a emigração qualificada dá sinais de estar a crescer mais do que a não qualificada, mas não é possível dizer se os qualificados são já a maioria dos que saem.”

Em 2022, a emigração para os Países Baixos já superou a do Luxemburgo. Dinamarca, Finlândia e Suécia também nunca tinham recebido tantos portugueses, a Islândia teve um recorde de 20 anos, enquanto na Áustria e Noruega o número de entradas só tinha sido mais alto em 2013. O recente aumento da ida para países nórdicos aconteceu já depois do ‘Brexit’ — e da quebra da emigração para o Reino Unido, que caiu para metade em 2022 —, o que parece indiciar uma ‘substituição’ de destinos.

“Se há dois anos dizia que a emigração ia estagnar, agora digo que vai subir”, frisa Rui Pena Pires

Recentemente, os dados do Inquérito ao Emprego, divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), apontaram para uma perda de 128 mil licenciados num ano, número que alguns especialistas atribuem à emigração. Contudo, nem em 2013, no pico da crise durante a troika, as estimativas de emigração qualificada e não-qualificada superaram as 120 mil saídas. Rui Pena Pires alerta para questões metodológicas da amostra do INE, tal como João Cerejeira, economista e professor na Universidade do Minho, que considera “absurdo” esse número. “Temos cerca de 40 mil recém-licenciados por ano, portanto teriam saído do país mais de três vezes esse valor.” Numa nota divulgada no inquérito, o INE também indicou que os resultados “não permitem tirar conclusões diretas” sobre fluxos migratórios.

Mesmo que não tenham emigrado 128 mil licenciados num ano, a saída de qualificados está a acentuar-se. “Por exemplo, a percentagem de portugueses licenciados a viver na Suécia passou de menos de 20% em 2000 para mais de 60% em 2020”, frisa Pena Pires. “A emigração continua a ser uma forma de os jovens ganharem autonomia em relação à família. Com o que está a acontecer com a habitação em Portugal, a emigração pode começar novamente a crescer de forma sustentada. Não sei se chegará aos níveis de 2013 porque nessa altura o fluxo de saída foi muito puxado pelo Reino Unido, que tem um volume de economia que os países nórdicos não têm. Mas se há dois anos achava que a emigração iria estagnar, agora digo que a tendência é mesmo para subir.”

“FALTA DE VISÃO E DE NOÇÃO”

A procura por trabalhadores portugueses — qualificados e não-qualificados — tem posto uma pressão cada vez maior sobre as empresas nacionais. “Temos registado pedidos do Reino Unido, Bélgica, França, Alemanha, Angola e Moçambique. São sobretudo ofertas permanentes e a full-time, mas também há projetos de expatriação para países africanos e, no caso dos Países Baixos, atuamos em parceria com empresas de trabalho temporário”, explica Marco Arroz, da Multipessoal, agência portuguesa de recursos humanos. Com salários que facilmente triplicam o que se ganha cá — e sem que o custo de vida e da habitação seja o triplo do que é em Portugal —, a margem de salário que sobra ao fim do mês passa a ser muito maior.

“Houve uma mudança na minha vida depois de emigrar. Cresci a olhar para os preços e procurava sempre o mais barato, mas, de repente, percebi que já não tinha de ser assim. Escolher algo mais caro deixou de ter impacto ao fim do mês”, conta Alexandra Vaz, 28 anos, que estudou Ciências Farmacêuticas em Lisboa, emigrou para os Países Baixos e depois para a Bélgica, onde agora vive com cerca de €2500. Antes de ir, recebia pouco mais de mil euros numa farmácia. Já Evandro Dias, 35 anos, precisou de ir para os Países Baixos para conseguir trabalho na área da sua licenciatura em recursos humanos. Agora é recrutador num grupo de recursos humanos, assistindo também à crescente procura por portugueses.


Também há quem nem chegue a trabalhar cá, como David Botas, de 28 anos, que estudou Engenharia Biológica em Lisboa e foi trabalhar para o Reino Unido, Bélgica, Suíça e, agora, Islândia. Ou Rodrigo Fernandes, de 24, que optou por Engenharia da Energia e se lançou para a Suécia, de onde não tenciona para já sair. Esta emigração é “dramática”, diz o bastonário da Ordem dos Engenheiros. “A diáspora nas engenharias é grande. Estima-se que 50% dos engenheiros formados no Técnico em novas tecnologias vão para fora no início da carreira”, alerta Fernando de Almeida Santos.

O problema passa pelas empresas, diz o economista João Cerejeira. “Uma empresa que pague €1200 a um técnico altamente qualificado, numa área competitiva a nível global, não pode querer reter esse trabalhador. É falta de visão e de noção, porque isso é o que se paga a um cozinheiro ou a quem assenta tijoleira. Se não lhes pode pagar, então não pode trabalhar.” Para o economista, a pressão migratória e o recrutamento de portugueses em trabalho remoto para fora vão “obrigar a uma reconfiguração do tecido empresarial português”.

Entretanto, o país vai perdendo qualificados. Prestes a voar para os Países Baixos, Daniela Matos, aos 31, vai emigrar este mês pela primeira vez. Licenciada em Engenharia e Arquitetura Naval, vai desenhar iates de luxo e receber mais do dobro do que agora. “Deixei de conseguir pagar renda, combustível, supermercado e despesas. Trabalhava só para poder trabalhar.”