Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas, in Jornal Público
Tratado "simplificado" será juridicamente mais complicado e opaco do que a Constituição
A União Europeia (UE) conseguiu finalmente na madrugada de ontem encerrar mais de 15 anos de introspecção e batalhas institucionais ao chegar a acordo sobre a substância do futuro Tratado "simplificado", substituto da defunta Constituição europeia.
O acordo, conseguido pelos líderes dos Vinte e Sete depois de uma maratona negocial em ambiente de psicodrama ao longo de dois dias e uma noite, permitiu definir um mandato preciso para Portugal, que assume a presidência da UE a 1 de Julho, poder pilotar o processo de redacção do novo Tratado no quadro de uma conferência intergovernamental (CIG).
O processo, que arrancará já a 23 de Julho, deverá ser encerrado, segundo as intenções da futura presidência portuguesa, com um acordo dos líderes sobre o texto final na cimeira de Lisboa de 18 e 19 de Outubro. O que, segundo a tradição europeia, lhe dá o direito à designação de Tratado de Lisboa.
Mesmo se incorpora o essencial da Constituição rejeitada há dois anos pela França e Holanda, o futuro Tratado de Lisboa será incomparavelmente mais complexo e opaco e terá uma aparência de queijo suíço, devido às excepções que terá de prever para o Reino Unido.
"O Tratado Constitucional era um tratado facilmente compreensível. Este é um tratado simplificado que é muito complicado", resumiu Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo e o decano dos líderes da UE.
As negociações para a definição do mandato puseram duramente à prova a paciência, capacidade negocial e diplomacia de Angela Merkel, chanceler federal da Alemanha que preside à UE até ao dia 30.
Depois de uma esgotante sucessão de encontros bilaterais ao longo dos dois dias com os líderes dos países com maiores problemas - Polónia, Reino Unido e Holanda - e ajudada sobretudo por Nicolas Sarkozy, o hiperactivo Presidente francês, que se empenhou a fundo em fazer aprovar o "seu" Tratado simplificado, Merkel conseguiu finalmente um acordo unânime dos Vinte e Sete. Não sem antes ter tentado, já perto da meia-noite de anteontem, um golpe para quebrar a intransigência da Polónia contra o sistema de votação na UE, ao ameaçar convocar a CIG com o apoio de apenas 26 países. Ainda que legalmente fosse possível - embora o Tratado final tenha sempre de contar com o apoio de todos os países -, os líderes de Portugal, República Checa e Lituânia opuseram-se a esta eventualidade.
A ameaça teve no entanto o efeito esperado, porque os gémeos Lech e Jaroslaw Kaczynski, respectivamente Presidente e primeiro-ministro da Polónia, decidiram pouco depois ceder. Isto, mediante o adiamento do novo cálculo das maiorias qualificadas - 55 por cento dos Estados representando 65 por cento da população comunitária - da data prevista de 2009 para 2017.
Apesar de o acordo significar que a UE vai continuar a funcionar ainda durante dez anos com regras inventadas há 50 - cuja substituição por um modelo mais eficaz era aliás a principal razão por detrás da actual reforma institucional -, Merkel procurou desdramatizar o facto. "Sei que é um grande compromisso, mas um atraso de alguns anos não é a pior coisa que possa acontecer à Europa", afirmou.
"Não estivemos longe da ruptura, mas a França nunca renunciou", afirmou Sarkozy no final. "Não há vencedores, não há vencidos e a Europa pôs-se finalmente em movimento." Numa crítica implícita à presidência alemã, Sarkozy considerou que "não era possível deixar de fora o maior país da Europa do Leste menos de 20 anos depois da queda do Muro de Berlim".
Ainda que o problema polaco tenha sido aquele que mais trabalho deu a resolver, as "linhas vermelhas" do Reino Unido eram as mais preocupantes porque, como referiu um dos participantes na cimeira, "eram muito mais fundamentais do que as polacas porque punham em causa as bases da UE".
Apesar de ter aprovado a Constituição em 2004, altura em que a considerou um bom resultado para o seu país, Tony Blair tentou alterar algumas das suas disposições mais emblemáticasm mas esbarrou contra a oposição dos 18 países que já a ratificaram. O que o obrigou a recuar para cláusulas de isenção que deixam o seu país de fora do âmbito de aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais e da cooperação judicial em material penal. Depois de já estar de fora do euro e do espaço Schengen de livre circulação de cidadãos, não se pode dizer que Blair tenha conseguido a ambição que anunciou há dez anos de colocar o Reino Unido no centro da Europa.