24.6.07

"A cannabis não é um problema de saúde pública preocupante"

"A cannabis não é um problema de saúde pública preocupante"

Catarina Gomes, in Jornal Público

O sociólogo espanhol Domingo Comas defende que a estratégia "diz não à droga" não basta para reduzir consumos


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A dependência da cocaína é tão forte como a da heroína, mas tem uma imagem positiva relacionada com ócio e diversão

A Europa mergulhou numa fase de silêncio em torno do problema das drogas, afirma Domingo Comas, sociólogo espanhol especialista em toxicodependência que esteve esta semana em Lisboa num congresso sobre o tema. Mais: o consumo de drogas é visto cada vez mais como tendo poucos riscos. Preocupante, na opinião do autor do livro Uso de Drogas na Juventude, é o facto de os sistemas de tratamento europeus estarem ainda centrados na heroína, estando-se longe de ter tratamentos eficazes para a dependência da cocaína.

PÚBLICO - Diz que estamos a passar por uma fase de silêncio em torno das drogas. Porquê?

Domingo Comas - Nos inquéritos à população nos anos 80 e início dos anos 90, a droga era um dos assuntos que mais preocupavam as pessoas, hoje é um dos que menos preocupam. Em Espanha, os que apontam esta preocupação são menos de dez por cento. O Eurostat revela que, na opinião pública europeia, o nível de preocupação com as drogas desceu de forma notável. Esta visão só é contrariada pelos que têm contacto directo com o problema da droga, um pequeno núcleo de pessoas. Na Europa, as opiniões públicas pensam que o assunto está resolvido - que há profissionais, organizações estatais e do sector social que se ocupam do problema - e tudo está sob controlo.

Isso acontece porque a droga deixou de ser visível?

É menos visível nas ruas, o que tem, em parte, a ver com a mudança de perfis de consumo [menos consumo de heroína injectável] e de na Europa, nos anos 90, terem sido postas em prática legislações de carácter repressivo contra o consumo em locais públicos. Houve uma acção policial que fez com que o consumo público tenha saído de centros emblemáticos das cidades para bairros marginais ou para espaços privados. É natural que seja menos visível.

A opinião pública está certa? A droga é neste momento um problema sob controlo?
Penso que não é preciso chegar à dramatização dos anos 80, mas banalizou-se uma imagem de quase ausência de riscos. Criou-se uma imagem de que o consumo de drogas não é perigoso, o que é especialmente preocupante na cocaína.

Porquê?

Porque a dependência da cocaína é tão forte como a da heroína e mesmo assim tem uma imagem positiva, de droga relacionada com o ócio e a diversão e que aparentemente não traz nenhum problema de saúde nem social - e isso não é verdade. A cocaína traz problemas e há uma questão muito importante: para a dependência de heroína existem tratamentos bastante eficazes, com a cocaína não há sequer a percepção de que a médio prazo os venhamos a ter. Não temos, por exemplo, fármacos para tratar dependentes de cocaína. Só existem tratamentos psicoterapêuticos, que têm mais custos, são mais longos e difíceis de aplicar. A Europa continua a estar bem preparada para tratar dependentes de heroína mas não de cocaína.

E estão preparados para tratar os consumos de ecstasy e cannabis...

Para mim, o risco de ecstasy e de outras drogas de síntese e de cannabis é menor, sei que isto é discutível. No caso do ecstasy, é difícil falar de dependentes, há gente que consome com relativa frequência, mas os que procuram tratamento fazem-no porque misturam com outras drogas, como as anfetaminas, a cocaína. O consumidor só de ecstasy que procura tratamento é raro.

E a cannabis, a droga mais consumida na Europa, representa um problema?

Na cannabis há uma grande batalha. Em certos países europeus, particularmente Inglaterra, Holanda e Espanha, há neste momento uma parte importante da opinião pública favorável à legalização, o que é discutível, porque estamos numa fase em que o controlo do álcool e do tabaco está a aumentar. Seria paradoxal legalizar a cannabis. Nestes três países está-se a assistir a uma normalização do consumo, que não conduziu a problemas de dependência significativos. Não gosto de misturar o problema da cannabis com o da cocaína e heroína. Há que controlar o seu consumo, mas não é um problema de saúde pública preocupante, o mais importante é a cocaína e a heroína.

O problema da heroína está a decrescer, com o envelhecimento da população que a consome...

Continua a ser um problema. Porque ainda há países em que se consome mais heroína que cocaína. A heroína tornou-se secundária em Espanha e Portugal, onde a preocupação é mais a cocaína, mas em muitos países ainda há consumos importantes, é o caso de Itália e dos países de Leste. Há países que assistem a um recrudescimento da heroína porque neste momento há muita na Europa e muito barata. Não seria de estranhar que voltasse à Península Ibérica.

A imagem do heroinómano decadente que se injecta afastou os jovens da heroína...

Mas há heroína mais glamourosa, que é inalada ou snifada que não tem essa imagem social.

A informação sobre os riscos não evitou consumo, mas mudou-o...

A informação fez com que o consumo seja mais racional, que as pessoas tenham mais cautelas, por exemplo não usando seringas. A mera informação não diminui o consumo, não é um factor de prevenção. A informação sobre o tabaco não reduz o consumo de tabaco, houve muitas campanhas - não há um cidadão europeu que não saiba que provoca cancro do pulmão -, mas tem que se juntar à informação muitas estratégias. No caso do tabaco, proibí-lo em locais públicos, aumentar-lhe o preço. Só as medidas combinadas funcionam.

De que outras medidas está a falar?

Uma das hipóteses é ensinar os jovens a desfrutarem do ócio sem recurso a químicos, álcool e drogas.

Como é que isso se faz sem ser paternalista?

No modelo que desenvolvi, esta tarefa cabe às associações de jovens, é uma estratégia entre pares. São os jovens que organizam actividades de diversão alternativas. O Estado tem que dar dinheiro às associações, facilitar-lhes lugares de encontro, sem intervir.

Dê-me exemplos...

Em Espanha não há quase nenhum município que não promova algo de tão simples como pôr jovens a organizar concursos nocturnos de fotografia, cinema nocturno, actividades de desporto, grupos de teatro. Outro método é a formação do pessoal de bares e discotecas, desde o empregado ao porteiro. Damos-lhes informação para saberem como agir por exemplo se um jovem desmaia. Há outras coisas simples que são medidas magníficas. Por exemplo, conseguir que lugares de lazer nocturno facultem comida a meio da noite. Dar de comer diminui o impacto do álcool.

Não se trata de impedir o consumo, mas de minorar as suas consequências...

Não pedimos que deixem de consumir. Por exemplo, em Bilbau demos formação a certos jovens que consomem droga com os amigos. Foi dada através de associações juvenis que fizeram a sua própria selecção de jovens, depois deu-se-lhes uma quantia simbólica (30 euros) pela deslocação e por terem ido à formação. "Diz não à droga" já não vale como estratégia única, o que interessa é a combinação de estratégias. Apostar apenas na publicidade clássica, no fornecimento de informação e na formação sobre as consequências e riscos das drogas nas escolas tem efeitos limitados.