Carlos Gonçalves, Ana Cristina Castro, in Jornal Regional.com
A casa onde vive, se é possível chamar de casa um cubículo de quatro paredes de tijolo, com um telhado que ameaça ruir a qualquer instante, essa casa perde-se entre os verdes dos montes que a rodeiam. Quem passa na estrada, dificilmente pensa encontrar um cenário tão triste, tão pobre, tão nauseabundo, num concelho como Paredes.
Maria da Conceição não tem ideia do que se passa à sua volta. Não estranha as visitas inesperadas. Tão pouco se apercebe que a sua casa está de cara lavada. Para ela é tudo o mesmo. Maria da Conceição tem 73 anos. Vive, ou sobrevive, num casebre em condições quase desumanas. Dois compartimentos – quarto e cozinha. Dorme a dois passos de uma botija de gás. Partilha o colchão com dezenas de ratos e outros animais, cujo calor procuram. Não sabe o que é acender um interruptor, porque não tem electricidade. Improvisa com uma vela numa garrafa. No que toca a improvisos, Maria é uma mestra. Sobrevive com água que acumula num balde, gota a gota, por entre duas telhas soltas. Come o que tem, sem tão pouco saber cozinhar. O fogão armazena panelas com comida de vários dias, intragável… Não consegue, sequer, distinguir o que é bom ou mau para comer. Maria vive no limiar da pobreza. Sem conforto, sem dignidade e só! A pouca família que lhe resta, também sobrevive como pode… Maria entrega-se à própria sorte e vive um dia após o outro, como se o dia fosse uma repetição contínua. E Maria não se queixa. Habituou-se a viver no desconforto, na sujidade, na pobreza. Habituou- se porque não tem termo de comparação, tão pouco. Habituouse porque, afinal de contas, este é e sempre foi o seu habitat natural. Maria é, no entanto, uma mulher cheia de vida. Os seus 73 anos, num corpo miúdo e curvado, contam a história de uma mulher cheia de genica. Não consegue estar parada um minuto. Rompe os chinelos, se é que há mais para romper, andando encosta acima e abaixo. Entra e sai do casebre, ansiosa. Há 15 anos que não entrava no Centro de Saúde. A imundice de onde vive não conseguiu derrubar a sua saúde de ferro. A coragem de dois amigos tirou Maria da Conceição do esquecimento. Não querem ser heróis e por isso preferem manter-se no anonimato. Tomaram a peito esta causa porque não suportam ver um ser humano em condições tão degradantes, tão chocantes. Pediram ajuda no Centro de Saúde, a assistente de saúde vestiu a pele de assistente social e conseguiu levar Maria para um Centro de Dia. Maria gosta de estar com outras pessoas, adora dançar. Mal se fala no assunto, dá logo o seu pezinho de dança. E canta. Enquanto está no Centro de Dia, Maria nem desconfia quão grande pode ser o coração humano e quão solidário. Se Maria tivesse mais capacidade para discernir, certamente, sorriria ao voltar a casa. Do casebre, outrora atulhado de lixo, já se distinguem as cores das paredes. Só com uma máquina se conseguiu tirar toda a trampa que o emoldurava. Se aquelas paredes sentissem, iriam respirar, aliviadas, o odor forte da lixívia, desinfectando a porcaria acumulada em baldes substitutos da casa de banho. Lá dentro tudo foi renovado. A cama, o colchão com os indesejados hóspedes, o fogão e demais companhia foram parar ao devido sítio a que pertenciam. No seu lugar está agora uma cama com um colchão ortopédico, um armário para guardar a roupa, também nova. O fogão branco novo, os alimentos dentro do prazo de validade e a água, própria para consumo, suficiente para alguns dias. O casebre quase está digno para receber uma pessoa. Mas até quando a ordem imperará? E Maria chega, também de cara lavada e roupa limpa. E resmunga porque a alcatifa improvisada para o quarto é vermelha – uma cor que não gosta. Maria da Conceição não tem a percepção do gesto de boa-vontade com que foi presenteada. Este foi apenas o primeiro passo de quem luta, sem interesses, para restituir a dignidade a quem a merece por direito. Mas é preciso mais. Mais gente que se interesse por esta Maria e por todas as “Marias” do mundo. Mais homens como os desta história, que passem das palavras à acção. É preciso que, quem de direito, tenha conhecimento desta realidade e esteja alerta para todas as “Marias”, que, em pleno século XXI, vivem em condições precárias, sem as condições básicas de sobrevivência. É preciso que, quem de direito, não permita que um ser humano viva esquecido e à parte de todo o mundo. E porque esta Maria não pode continuar a ir vivendo desta forma, vamos ser capazes de despertar consciências e, como diria o escritor irlandês George Bernard Show, “não sentir pena dos pobres, mas sim acabar implacavelmente com os pobres, elevando o seu nível de vida”. E porque a solidão é também uma nova forma de pobreza, não podemos calar a voz, levando a causa de quem não tem voz, mais além, até que essa voz faça eco e reproduza efeitos. Será justo deixar um ser humano viver esperando na solidão?
A DURA REALIDADE
Em Portugal, 21% da população, cerca de dois milhões, está no limiar da pobreza. Segundo o presidente da delegação nacional da Rede Europeia Anti-pobreza, a maior parte desses estão no Norte do país. Por isso, exige coragem política para enfrentar o problema até ao fim. No debate Mensal na Assembleia da República «Política social de apoio a idosos», o Primeiro-Ministro, José Sócrates afirmava que ”o combate à pobreza é uma obrigação moral numa sociedade que se quer respeitar a si própria”. É entre os idosos que a pobreza se manifesta de forma mais dura e sem alternativas, em Portugal 30% dos idosos são pobres, um indicador sem paralelo na União Europeia. Segundo um estudo do INE - Instituto Nacional de Estadística, mais de dois milhões de portugueses viviam abaixo do limiar de pobreza em 2000 e não dispunham de casa de banho, água quente ou aquecimento em casa, vivendo com menos de 283 euros por mês. Existem diversas forças que se mobilizam nesta causa de acabar com a pobreza extrema e com as desigualdades, dando voz aos que sofrem uma «pobreza sem voz», por não terem condições para se fazerem ouvir. Uma em cada seis pessoas no mundo vive em condições de pobreza extrema. Segundo dados do Banco Mundial, existem 307 milhões de pobres em todo o mundo. Todos os anos, perto de 11 milhões de crianças morrem antes do seu quinto aniversário e, todos os dias, 800 milhões de pessoas vão para a cama com fome. Refira-se que o Banco Mundial classifica de pobreza extrema, situações de pessoas que vivem com 0,80 euros por dia. E há, pelo menos, 1,2 milhões assim. Numa situação de pobreza moderada estão os 2,7 milhões de pessoas que vivem com 1,60 euros por dia.