26.2.07

Mil casos de trabalho infantil denunciados em Portugal

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Foram sinalizadas no ano passado 126 situações de "piores formas de trabalho", como tráfico de droga, exploração sexual e mendicidade


Foi há dez anos. Amesterdão acolhia a primeira conferência internacional sobre trabalho infantil, mais de 30 países chegavam a um consenso sobre a necessidade de abolir as formas de trabalho intoleráveis, trilhavam-se os primeiros passos para uma convenção. O que mudou em Portugal, único país da União Europeia que assumia ter um problema desta natureza? Já é quase missão de agente secreto captar crianças, enfiadas dentro de carrinhas, a caminho da fábrica, da oficina ou da obra. O trabalho infantil "organizado, formal, em empresas, é completamente negligenciável", afiança Joaquina Cadete, directora do Programa para Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PETI). Pela crescente fiscalização, pelas políticas sociais (como o rendimento social de inserção ou a intensificação das redes sociais locais), pela maior consciencialização da sociedade. E até pelo aumento do desemprego.

Em 1996, a Inspecção-Geral de Trabalho (IGT) levantou 130 autos de notícia por violação da idade mínima de admissão ao trabalho (16 anos). O ano passado, de acordo com as informações veiculadas pelo subinspector-geral Manuel Roxo, "foram encontradas nove crianças a trabalhar ilegalmente, quatro com menos de 16 anos e cinco sem a escolaridade obrigatória e/ou sem capacidades físicas ou psíquicas adequadas às suas funções".

Desengane-se quem julga que o fenómeno desapareceu da paisagem portuguesa. O ano passado, foram sinalizados ao PETI 890 casos de trabalho infantil propriamente dito e 126 casos de "piores formas de trabalho infantil" - crianças usadas no tráfico de droga, na exploração sexual (prostituição e pornografia), na mendicidade ou em actividades arriscados (pela sua natureza e pelas circunstâncias em que são realizados têm alta probabilidade de afectar a saúde, a segurança e o bem-estar da criança).

O que "vai havendo mais" é trabalho informal pouco ou nada remunerado. Nas pequenas explorações familiares, nas actividades agrícolas sazonais, nas tarefas do têxtil e do calçado, no pequeno comércio de base familiar. Em detrimento dos tempos livres, dos tempos de estudo e até, em alguns casos, do tempo escolar, clarifica Manuel Sarmento, do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho.

A preocupação com trabalho realizado no seio familiar é tanto maior quanto se sabe que se intensificou entre 1998 e 2001. E, "a estes, os serviços, sozinhos, não conseguem chegar", sublinha Joaquina Cadete.O trabalho ligado ao têxtil e ao calçado estará em franca queda (até pela diminuição das encomendas), avoluma-se é a inquietação com o rural e com as chamadas "piores formas de trabalho infantil". "Não há estudos sérios que possam dar uma ideia completa sobre as piores formas de trabalho infantil", apenas a percepção de que assumem formas "cada vez mais ocultas", refere Sarmento, preocupado também com o crescente uso de crianças nas indústrias do entretenimento. E o PETI não lida com os menores estrangeiros (sobretudo romenos) que se vêem a pedir nos semáforos.

"Pobreza de expectativas"

Em Maio de 2006, o Expresso contava a história de dois irmãos de Felgueiras (de 11 e 14 anos) que costuravam sapatos. Era um agregado composto por sete pessoas que sobrevivia com 525 euros de reformas, 100 a 120 euros da feitura de sapatos e algum trabalho agrícola. Concluiu-se, depois, que era um exagero falar em trabalho infantil. As crianças frequentavam a escola, eram assíduas, pontuais, tinham aproveitamento, brincavam e ajudavam a família a coser uns sapatos. As situações em que as famílias recorrem ao trabalho infantil por meras "razões económicas são residuais", insiste Joaquina Cadete. O último grande estudo feito em Portugal (2001) já mostrava que apenas 19 por cento dos menores que exerciam uma actividade o faziam para ajudar a família (cinco anos antes a percentagem era de 45).

O novo mega-estudo, que servirá para tirar a prova dos nove, só deverá estar "pronto em 2008". Mais do que por dificuldades de ordem financeira, a entrada precoce no mercado laboral é ditada por "pobreza de expectativas". "As famílias, em muitas zonas, ainda valorizam muito o trabalho braçal", diz a directora do PETI. Ainda há pouco, a SIC emitiu uma reportagem que entende reveladora - Rosa Brava narra a história de uma menina de 16 anos que passa os dias a pastar cabras e ovelhas e a imaginar como será sentir o toque de um rapaz.

Abandono escolar

Para Joaquina Cadete, exercer uma actividade laboral até pode ser benéfico, desde que tal não afecte o percurso escolar, nem o desenvolvimento do menor. Mas o facto é que o trabalho anda de mãos dadas com o abandono ou, pelo menos, com o insucesso escolar.

Em 2006, ao PETI foram sinalizados 491 casos de risco de trabalho infantil e 3001 de abandono escolar exclusivo. Tal como muitos dos que trabalham não abandonam a escola, "muitos dos que abandonam não estão a fazer nada e o ócio é um bom caminho para a asneira" - para os comportamentos desviantes, como a criminalidade ou a toxicodependência.

A directora do PETI refere miúdos que se recusam a ir às aulas e pais que "não têm força" ou "não querem ter a maçada" de os orientar. Mas o fenómeno, de algum modo, também permite verificar as insuficiências do Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF), "medida de excepção que se apresenta como remediação, quando tudo o mais falhou" e à qual os menores podem eventualmente aderir depois de terem rejeitado outras medidas "existentes quer no sistema educativo, quer na formação profissional" ou depois de por eles "terem sido rejeitados".

491 é o númerode casos de risco de trabalho infantil denunciados em 2006, segundo dados fornecidos pelo PETI

A incerteza dos números

Quantas crianças estão a trabalhar? Ninguém sabe

Há dez anos, ninguém sabia ao certo quantos menores trabalhavam em empresas e/ou no domicílio em Portugal. Diversas organizações internacionais chegaram a elevar a fasquia para 200 mil, enquanto os sindicatos portugueses apontavam para 80 mil. A Organização Mundial do Trabalho falava em 17 mil crianças, entre os 10 e os 14 anos, economicamente activas (1,76 por cento dos indivíduos deste escalão etário). Em 1998, arrancava a primeira grande radiografia do trabalho infantil em território nacional. Os resultados, divulgados em 99, apontavam para quase nove mil crianças em situação de trabalho subordinado nos sectores da indústria e do comércio e para 34 mil a exercer trabalho familiar não remunerado. O segundo grande estudo, feito em 2001, mostrava que o trabalho no seio familiar sem remuneração passara de 34 para 40 mil e o número de menores subordinados de nove para sete mil. Só o novo estudo, que deverá estar pronto em 2008, poderá dizer, com propriedade, se o país evoluiu ou regrediu em matéria de trabalho infantil.