Gina Pereira, in Jornal de Notícias
Cresceram em instituições. Dois anos a viver num apartamento sozinhas,a gerir a casa e as despesas, habilitam-nas a dar o salto para a autonomia
Há quem tenha chorado "imenso" e quem estivesse "desejosa" de que o dia da mudança chegasse o mais cedo possível. As reacções variam quando, à aproximação dos 16 anos, os jovens que vivem na Casa Pia de Lisboa são desafiados a ingressar nos apartamentos de autonomização.
Sabem que estão a um passo da emancipação e a decisão não é fácil. Mas o mais frequente é que, ainda antes dos dois anos - prazo em que é suposto todos terem encontrado o seu caminho de autonomia - já estejam com vontade de se fazer à vida. E seguros de que vai correr bem.
A maioria entrou na Casa Pia com 6 ou 7 anos e nunca conheceu outra casa. Joana Dias, 20 anos, chegou com 7, juntamente com o irmão, três anos mais velho. Viviam com o avô, que "já não tinha grandes capacidades" para os tratar e foram entregues aos cuidados da Casa Pia. De onde não voltaram a sair.
Há cerca de dois anos, quando lhe propuseram entrar num apartamento, Joana teve medo e chorou "imenso". "Não queria largar a outra casa. Já estava habituada a tudo". Mudar para o apartamento, "viver sozinha", "era um passo mais avançado e eu não gosto de crescer assim muito rápido", confessa agora, solta e sorridente entre as quatro colegas de casa, sentadas no sofá da sala espaçosa e confortável do T5 que ocupam na zona de Alcântara, em Lisboa. Cada uma com o seu quarto colorido, luxo que nunca tinham tido.
Joana está a terminar o 12.º ano em Animação Sociocultural. No Verão, trabalha em colónias de férias e quer seguir para a universidade, porque acredita que "com mais ensino é sempre mais fácil" arranjar emprego. "Agora até para ser 'almeida' é preciso o 12.º ano", diz, no seu jeito despachado, fazendo soltar gargalhadas na sala.
Ainda antes de as aulas recomeçarem, Joana e Cátia Araújo, 20 anos, querem encontrar uma casa para alugar, preferencialmente na mesma zona, para onde tencionam mudar-se juntas. E pagar com a ajuda financeira da Casa Pia.
Cátia, filha única, vivia com a mãe numa pensão e, aos 5 anos, "por queixas dos vizinhos", foi "parar" à Santa Casa e, mais tarde, à Casa Pia. Não tem família de sangue, apenas os padrinhos de baptismo e de crisma, com quem costuma estar. A ideia de ir morar para o apartamento agradou-lhe, porque "estava desejosa" de ir viver com pessoas da sua idade.
"Queria tornar-me autónoma, saber como era a vida cá fora", diz, admitindo que a experiência lhe ensinou "muita coisa" e garantindo que se sente preparada para morar sozinha - "também já é tempo". Terminado o 12.º ano do curso de Cozinha e Pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, Cátia vai agora candidatar--se à licenciatura em Turismo. E conta com o apoio da Casa Pia para suportar as despesas.
Vânia Borges, 19 anos, chegou ao apartamento juntamente com Cátia e já sabia o que a esperava. Uma irmã mais velha, também casapiana, já por ali tinha estado e Vânia passava frequentemente o fim-de-semana com ela. "É uma experiência única", sustenta, admitindo que, se não tivesse por ali passado, "havia montes de coisas que não sabia fazer". Sobretudo a gestão das contas e da casa (como pagar as contas a tempo e horas), tarefas que sempre alguém fez por elas e que agora têm a seu cargo.
Gerir o dinheiro é, por norma, a principal dificuldade que enfrentam. "Quando andava no lar, recebia 20 euros e sobrava. Agora recebo 385 e é complicado", conta Joana, que teve de aprender a não ceder à tentação das compras de calçado, adereços e vestuário. Dos 385,90 euros que recebem por mês, 200 vão directamente para as despesas da casa (alimentação, luz, água, TV cabo e internet), 100 ficam numa poupança para algum imprevisto - uma máquina que se avaria, um computador a precisar de substituição ou a compra de um sofá novo, como fizeram recentemente. Sobram 85,90 euros para gastos pessoais (roupa, telemóvel, passe).
Se a gestão do dinheiro é a tarefa mais difícil, a gestão da casa também é algo que tem de ser ensinado e em que a sua educadora, Helena Jesus, 47 anos - carinhosamente tratada por "Lena" - teve de se empenhar bastante no início. Juntas, decidiram que as limpezas são feitas às quartas e aos sábados e cada uma tem tarefas atribuídas.
As compras maiores são feitas uma vez por mês, numa ida colectiva ao hipermercado, os frescos e as faltas do dia-a-dia são colmatadas nos supermercados das redondezas. A tarefa de cozinhar ao jantar - sempre alternando carne e peixe - roda por cada uma das cinco durante a semana. No fim-de-semana a vida é mais livre.
Livre, mas com regras e dando sempre conhecimento à educadora. Quando recebem a chave da casa, as jovens assinam um contrato com direitos e deveres e é-lhes entregue o regulamento da casa, "dinâmico" e a que podem propor alterações. A perspectiva do projecto é treinar competências e promover a comunicação, sendo elas que decidem o que é melhor para si e para o grupo. Sempre com a orientação da educadora, que confessa sentir-se "uma espécie de mãe".
A casa está aberta a visitas de familiares e amigos, que podem ficar a dormir de vez em quando, desde que o grupo não se incomode e que a educadora seja informada e autorize. Também as saídas nocturnas - para além das 23 horas durante a semana ou da meia--noite ao fim-de-semana - têm de ser autorizadas. E não é permitido que namorados durmam em casa. A qualquer hora do dia ou da noite, Lena pode entrar de surpresa em casa e fazer-lhes uma visita.
Essa é uma questão que não se coloca, garantem. Das cinco jovens, só Jóia, de 20 anos, aluna de fotografia no IADE, assume ter namorado. As outras "vão namorando". Iris Lopes, 18 anos, a "caloira" e a mais envergonhada. Nem quer ouvir falar do assunto. Dedica-se ao futsal no Benfica. Foi a última a entrar no apartamento, mas garante já ter feito amigas para a vida.