28.3.11

Escravo? Não, obrigada

in SAPO Notícias

O SAPO Notícias foi conhecer três jovens que recusam o rótulo de "escravo", termo popularizado num dos versos da música que se tornou hino de uma geração "à rasca" no mercado de trabalho. Para Júlio Gomes, especialista em Direito do Trabalho, o assunto é mais sério. "Regredimos nos direitos laborais para sermos concorrenciais".

José Morgado já perdeu a conta aos currículos que enviou. Licenciado em Geografia desde 2008, começou a trabalhar como operador de call center mesmo antes de ter terminado o curso. Começou por ser um trabalho temporário até encontrar um estágio na área, mas esse dia ainda não chegou. Encara o seu trabalho como uma profissão qualquer, mas "poderia ser melhor remunerado" devido à constante pressão a que está sujeito. Ainda assim, critica os jovens que recusam trabalhos fora da área de especialização.

"Num mundo competitivo de hoje temos de trabalhar onde quer que seja... ganhar experiência profissional até chegar ao trabalho que queremos. Nem todos os cursos dão para ir trabalhar logo na área, fazer logo o que se quer e ganhar aquilo que se quer", afirma.

Cláudia Gomes, trabalhadora-estudante acumula vários trabalhos como hospedeira de eventos. Trabalha por conta própria a recibo verde desde 2008 e diz que, ao contrário da maioria dos jovens, o que ganha chega, e às vezes até sobra, para pagar as contas. "Não me sinto insegura. Nesta área ganha-se bem, posso fazer 200, 500 ou até 1000 euros por mês", conta.

Carmen Curralo não entra nas estatísticas dos licenciados. Diferente da maioria dos jovens de hoje, decidiu não ir para a faculdade porque sabia à partida que iria ser atirada para o desemprego. Conjuga o trabalho como operadora num hipermercado onde trabalha desde os 18 anos, com o de esteticista nos dias de folga. O seu sonho é abrir um gabinete de estética.

Olha para os milhares de jovens licenciados com "pena por não poderem trabalhar naquilo que gostam", o que não é o seu caso. Segundo ela, o problema está nas entidades empregadoras que abusam, muitas vezes, da vontade de trabalhar de um jovem recém-licenciado. "Como é que uma pessoa que sai da faculdade vai conseguir construir uma família e uma carreira a ganhar 500 euros?! É impossível", remata.

"Regredimos nos direitos laborais para sermos concorrenciais"

Júlio Gomes, especialista em Direito do Trabalho da Universidade Católica, afirma em entrevista ao SAPO que a "escravatura" laboral voltou a ser um assunto na ordem do dia, mas não nos termos de antigamente. "Hoje em dia as empresas têm muito mais concorrência, muito mais trabalhadores por onde escolher. O que acontece hoje em dia é que as pessoas têm de estudar muito anos e anos a fio para depois receberem salários sempre perto da miséria".

O professor universitário afirma ainda que as gerações jovens não conseguem ter uma voz activa e defensora dos seus direitos junto dos sindicatos, o que faz com que, aliada à competitividade económica mundial, tenha havido, na sua opinião, uma regressão dos direitos laborais para os novos trabalhadores.

"Os trabalhadores jovens não são adequadamente representados pelos sindicatos. Os sindicatos apostam sobretudo nos seus filiados e têm uma certa dificuldade de relacionamento com os jovens, até porque, muitas vezes, as próprias direcções não integram os jovens", explica.

A competitividade, vista com um indicador positivo para a economia, pode ser, de acordo com o especialista, uma palavra traiçoeira. "Concorrer com países onde não há liberdade sindical (como a China ou a Malásia) tem custos para a União Europeia, incluindo Portugal. No fundo o que estamos a assistir é a uma redução dos nossos direitos [laborais] em homenagem à necessidade que temos de ser concorrenciais", acrescenta.

Ainda assim, os três jovens não se consideram o retrato de uma geração parva que um hino vem agora rotular. "Não me considero escravo. Simplesmente tenho um trabalho que deveria ser para uma pessoa que tem o 12º ano", afirma José Morgado. "Neste momento não há uma aposta nos jovens qualificados", lamenta.

Não moram em casa dos pais e partilham apenas o facto de trabalharem desde muito jovens. Felizes à sua maneira, sobrevivem como podem, gozando a juventude às suas custas. Escravos apenas... da incerteza do futuro.