26.4.11

Portugueses mais pobres com Estado a acudir cada vez menos

Por Ana Cristina Pereira, João Ramos de Almeida, in Público on-line

A pobreza alastra como uma epidemia. Uma nova consciência parece estar a instalar-se na sociedade. “O mais insuspeito dos cidadãos pode vir a enfrentar uma situação de pobreza”, diz Sérgio Aires, presidente do Fórum Não Governamental para a Inclusão Social.

Quando José Sócrates se tornou primeiro-ministro, em 2005, Portugal tinha uma taxa de risco de pobreza de 19,4. A percentagem desceu, de forma progressiva, muito por impulso de uma nova medida de combate à pobreza, o complemento solidário para idosos (CSI). Agora, ninguém sabe em que estado está o país. O Eurostat ainda lida com dados de 2009, feitos com base nos rendimentos de 2008. E esses ainda celebram a redução da taxa de risco de pobreza para 17,9.

Portugal empobreceu, atestam especialistas como José António Pereirinha, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. Para o perceber, bastará olhar para a taxa de desemprego, que já ultrapassou os 11 por cento, ou para a erosão dos salários, para o aumento dos preços dos bens de consumo, para os cortes nas prestações sociais.

Os principais partidos também julgam que a situação se agravou de forma acentuada. Falam num empobrecimento da população motivado até pela redução dos apoios e das prestações sociais, que se sente desde 2009. Tanto à direita como à esquerda se considera que apenas uma política de promoção do crescimento económico poderá atenuar essa tendência. Não são só as tradicionais formas de pobreza que persistem. São também as novas formas de pobreza que crescem, alimentadas pelo desemprego e pelo endividamento. E estas últimas “não têm resposta das políticas públicas, que foram desenvolvidas a pensar nos velhos modelos”, observa Eduardo Vítor Rodrigues, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Há uns dez anos, diz Eduardo Rodrigues, as pessoas perdiam o emprego e encontravam no subsídio de desemprego uma forma de aguentar o período de transição sem grande perda. Agora, há muito quem viva uma situação de pêndulo entre o mercado de trabalho e o desemprego, o que “gera irregularidade no pagamento de contribuições e incapacidade de beneficiar de medidas públicas”.

Até para aceder ao subsídio social de desemprego é preciso ter tido um vínculo laboral de 180 dias. O desemprego, lembra o mesmo sociólogo, “é dramático para a auto-estima”. Mas, “antes de ficar amargurado, quem está fora do sistema de protecção social fica sem dinheiro para ir à mercearia”.

RSI “é o mais preocupante”

Nas classes médias empobrecidas, há um hiato entre a aparecimento da necessidade e o pedido de ajuda. “As pessoas ficam em disputa consigo próprias”, explica Eduardo Rodrigues. “Aceder ao rendimento social de inserção [RSI] é incorporar a desvalorização que essa medida tem. Essas pessoas nunca imaginaram misturar-se com quem sempre criticaram como laxistas e fraudulentos.”

Neste contexto de empobrecimento, o Governo tenta reduzir as despesas públicas. Em meados do ano passado decidiu apertar as regras de acesso às prestações sociais não contributivas, como o abono de família, o subsídio social de desemprego, o subsídio de parentalidade e o RSI. Especialistas como José António Pereirinha não compreendem a opção: “As prestações sociais deviam ser a última coisa a tocar. O abono era um dos poucos instrumentos de apoio às famílias.” Muitas vezes, diz Eduardo Rodrigues, “a primeira poupança que a classe média fazia para os filhos”. Para Sérgio Aires, o recuo no RSI “é o mais preocupante”, porque a medida acode pessoas “em dificuldades mais extremas”.

Os números desmontam a retirada: os titulares de abono de família passaram de 1,7 milhões em Fevereiro de 2010 para 1,1 milhões em Fevereiro de 2011; no mesmo período, as famílias beneficiárias de RSI passaram de 170 mil para 123 mil. E a retracção sente-se também noutros domínios. Como a comparticipação nos medicamentos, a acção social escolar.

“Perde-se tudo com uma passividade enorme”, avalia Eduardo Rodrigues. Na opinião de Sérgio Aires, a opção é perigosa: “Cortou-se no que segura a tampa da panela. A moral e a ética terminam, quando o estômago se torna a voz de comando.”