2.10.14

Violência doméstica. Quando um filho é o inimigo

Por Marta Cerqueira e Kátia Catulo com Rosa Ramos, in iOnline




Quatro mil filhos maltrataram os pais em nove anos, segundo a APAV. O i conta a história de três mães desesperadas que pediram ajuda




Não há maneira de Paulo arranjar um emprego fixo. Volta e meia, arruma a mala e parte uma temporada para o estrangeiro trabalhar na apanha dos morangos ou da azeitona. Paulo é um homem feito, mas vive com a mãe desde sempre e quando sai de casa para fazer biscates ela suspira de alívio. "Quando estou sozinha estou contente."

Da última vez, chegou mais cedo. Era para vir só pela Páscoa, mas veio quase duas semanas antes. À noite, à hora do jantar, anunciou que ia partir outra vez no dia seguinte. A mãe que lhe arranjasse uma mochila com três ou quatro mudas de roupa para sair logo pela manhã: "Costumo comprar umas coisinhas para ele comer na viagem, mas chovia muito e não fui ao Lidl." Ele chegou eram quase 11 da noite e começou logo a implicar: "Acha que esta camisola me serve?" Saiu do quarto com a fúria. Foi à cozinha buscar um pacote de leite e despejou-o nos cabelos da mãe. Atirou o candeeiro para o chão e desatou à chapada à mãe. Ela saiu de casa a gritar e ele foi atrás. Deu-lhe um pontapé. "Eu fiquei ali no chão. Depois, conforme pude, fui pedir ajuda à vizinha, foi ela que chamou os bombeiros." Foi nesse dia que a mãe apresentou queixa à GNR contra o filho.

O relatório divulgado ontem pela APAV mostra que episódios como este se repetiram quase quatro mil vezes entre 2004 e 2012. Durante este período, a associação contabilizou os casos de pais vítimas de crimes de violência doméstica por parte de filhos. As conclusões permitiram traçar um perfil: o número de vítimas mulheres (81%) com mais de 65 anos foi sempre superior e os agressores são maioritariamente homens entre os 26 e os 45 anos.

Paulo nem sempre foi assim. Mudou quando o pai morreu. Antes andava na ordem e sempre teve tudo o que pediu: "Agora dá-me bofetadas, chama-me nomes, pede-me dinheiro e diz-me que me vai matar." Por vezes passam-se semanas e ele deixa-a em paz. "O mal dele é ir para o café beber cervejas." Quando bebe ou "fuma charros" fica alterado: "Fala alto, pede-me dinheiro todos os dias e eu dou-lhe porque tenho medo dele."

O filho de Rosário também lhe gasta tudo. Não bebe, "mas é muito nervoso", conta a mãe. Às vezes, quando ela faz alguma coisa de que ele não gosta aplica-lhe castigos: "Pôs-me mais de uma hora de pé em silêncio, se falasse ele batia-me, dá-me com a mão fechada na cabeça, no rabo, nas costas." Já chegou a ameaçá-la com uma faca. Nesse dia, Rosário nem sequer conseguiu entrar em casa para comer.

Sem saber mais o que fazer, a mãe chamou a GNR, mas só para o repreender. O mal dele é não ter emprego. Se arranjasse um trabalho tudo mudaria. Ia-se embora de casa e não lhe batia mais. Uma dia, Rosário pediu finalmente ajuda à câmara. Mandaram-na falar com as assistentes sociais que lhe propuseram uma solução: mudar-se para casa de uma família de acolhimento. E ela nem passou duas vezes. Abandonou tudo quanto construiu em casa só para não voltar apanhar. Mesmo assim, ainda pensa no filho: "Era bom que ele arranjasse um trabalho."

Quando se pede ajuda a estranhos por se ser vítima de um filho que se gerou e criou é porque todas as tentativas falharam. As situações já são limite. Josefa cansou-se de apanhar do filho e apareceu no posto da GNR, desorientada e desesperada. Falou dos problemas de saúde dele, da dificuldade em se manter muito tempo no mesmo emprego, do historial de consumo de álcool e de drogas, das exigências constantes de dinheiro e da porrada que apanhava quando se recusava a dar-lhe mais. Primeiro eram só empurrões, depois começaram os murros no peito e os pontapés. Havia dias em que lhe chamava nomes e a ameaçava. Noutros dias, ignorava-a.

Entre soluços e culpa, Josefa formalizou a queixa contra o filho. Dias depois, a GNR levou-o para uma casa de saúde, onde foi internado. Josefa sentiu pena, mas confessou aos guardas que, acima de tudo, se sentia segura. Passou a poder sair para ir à missa ou às compras. Pôde finalmente dar passeios na marginal, como não fazia há anos e até visitava o filho. Até que ele terminou o tratamento e teve alta. Aí mãe mudou. Deixou de sair de casa e quando o fazia era só para falar com as assistentes sociais que a ajudaram. Queixava-se que ele ainda havia de a matar, deixou de se pentear, deixou de comer, entupiu-se de medicamentos. As assistentes sociais só encontraram uma saída. Hoje, Josefa vive num lar de idosos. Com Rosa Ramos

Todos os nomes usados são fictícios.