13.10.14

Dez pessoas contam como suportaram três orçamentos muito duros

Ana Cristina Pereira, Graça Barbosa Ribeiro, Raquel Almeida Correia, Samuel Silva, Ana Rute Silva, Natália Faria, Raquel Martins, Romana Borja-Santos, Mário Lopes e Andreia Sanches, in Público on-line

Portugueses de diversas áreas profissionais e com diferentes situações laborais contam como (sobre)viveram nos três últimos anos de austeridade.

Há sorrisos, mas também muitas dores nestes retratos de dez portugueses e do que mudou nas suas vidas com os últimos três orçamentos.

“É fácil atacar os reformados. Se fizerem greve, não há problema”

António Correia, 69 anos
Cascais

Considera que teve uma vida profissional “estimulante” e “intensa” e só se reformou em 2008, aos 63 anos, por uma razão: “Fiz simulações e constatei, face à fórmula de cálculo que estava em vigor, que quanto mais tempo ficasse a trabalhar piores seriam as condições para me reformar.” António Correia, hoje com 69, é economista, ex-funcionário numa empresa privada do sector da construção. Quando se lhe pede um testemunho sobre como viu a sua vida afectada pela austeridade dos últimos Orçamentos de Estado, apresenta gráficos de barras e cálculos. Vício profissional, provavelmente.

Contas, então: do último salário que recebeu, em Dezembro de 2008, para o primeiro mês de reforma, em Janeiro de 2009, viu o seu rendimento baixar 33%. É mau, mas com isso contava; o que não podia prever era o resto — cresceu e envelheceu a pensar que a pensão, para a qual contribuiria com 44 anos de descontos, era uma coisa garantida, “como um depósito no banco, uma propriedade”.

O valor líquido da sua pensão baixou todos os anos — primeiro pouquinho (menos 2% num ano, menos 3% noutro), mas em 2013 já recebia apenas 81% do que em Janeiro de 2009. E isto tendo em conta, apenas, sublinha, “a conjugação da Contribuição Extraordinária de Solidariedade com a sobretaxa do IRS”.

Claro que há casos piores, diz António, um dos dinamizadores do núcleo da Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados em Cascais. Prefere não revelar o valor da sua reforma, mas diz que, tendo sido obrigado a readaptar a sua vida — “travão a fundo nos jantares fora, na compra de livros, nos fins-de-semana, nas férias...” —, não passa dificuldades. “Adaptei-me.” Mas diz que conhece quem se revolte por, ao fim de uma vida de trabalho, não conseguir manter um padrão com o qual contava.

“Quando uma pessoa pede a reforma, os encargos mantêm-se, ao contrário do que por vezes se pensa: há que pagar a habitação, os transportes, a saúde — e com a idade é natural que os gastos com a saúde aumentem. E, por vezes, é ainda preciso dar apoio aos filhos e aos netos.”

O suposto fim da CES de que se tem falado, para 2015, alivia-o. Mas na verdade defende mais: o fim da sobretaxa do IRS. Teme, contudo, que os reformados continuem a ser um alvo. “Atacar os reformados é o mais fácil. Se fizerem greve, não há problema nenhum.” Andreia Sanches

A funcionária pública não vê isto risonho, mas não se deixa vencer

Mariana Vieira, 55 anos
Almada

Na casa de Mariana Vieira vivem dois funcionários públicos. Têm sentido na pele, como a maioria dos portugueses, o aumento da carga fiscal, a que somam os cortes impostos à função pública desde 2011. Com um salário abaixo dos 1500 euros brutos, Mariana ficou a salvo dos cortes nas remunerações, mas o marido, que é guarda prisional, estima que tenha perdido à volta de 300 euros por mês.

De 2012 para cá teve de ajustar a sua vida ao rendimento disponível. A viver em Almada, o carro passou a ficar à porta e, durante a semana, usa os transportes públicos. Com uma doença crónica, Mariana conta que perdeu a isenção nos hospitais públicos, mas, como tem ADSE (o subsistema de saúde da função pública), passou a utilizar os serviços particulares, embora muitos dos exames não sejam comparticipados.

Para fazer face aos últimos três anos, decidiu arrendar a casa que tinha no Ribatejo, aonde ia ao fim-de-semana e nas férias. Na mercearia, em vez de um quilo, passou a trazer apenas três ou quatro maçãs.

Mas não são estes ajustamentos na sua vida que a revoltam. “Não me deixo vencer, mas sei que provavelmente o futuro não é risonho”, diz pelo telefone. O que a preocupa “é ver que o país está pior e sem rumo”. Como trabalha num serviço da Segurança Social, tem uma percepção muito próxima da realidade e dos problemas, que vê com uma dimensão que nunca imaginou possível. É por isso que não estranha que muitos jovens e “menos jovens” tenham de sair do país, como aconteceu com a filha, que entretanto regressou, mas deixou o marido no estrangeiro.

Critica o estado a que a administração pública chegou e que desanima os funcionários. Acha que o Governo devia ter investido numa reforma séria do Estado, “em vez de ter posto os trabalhadores a pagar, do seu bolso”, as ineficiências e os erros. No caso da Segurança Social, receia que as anunciadas reestruturações tragam más notícias. Apreensiva quanto ao próximo ano? “Já estou numa idade em que estou por tudo. Mas coisa boa não vem aí”, responde. Raquel Martins

Apesar dos mais de 40 anos de trabalho, no final no mês recebe o salário mínimo

Júlia Araújo, 51 anos
S. Mamede de Infesta, Matosinhos

Júlia Araújo tem 51 anos e trabalha desde os 11. Já foi ama e empregada doméstica, mas é sobretudo em fábricas que tem trabalhado. “Estou há 26 anos numa confecção de lingerie em Ermesinde. Sou revistadeira, ou seja, quando as peças vêm das costureiras, vejo se está tudo bem e se pode ser embalado, para não chegar com defeitos às clientes”. Na prática, certifica a qualidade do produto, “mas o contrato é de revistadeira, para o salário ser mais baixo”, explica. Apesar dos mais de 40 anos de actividade, no final no mês recebe o ordenado mínimo. Pela primeira vez, no final de Outubro, com o aumento de 20 euros, receberá mais de 500 euros.

Para Júlia, os cortes dos últimos três anos não trouxeram impactos directos no seu rendimento, mas o desemprego temporário do marido e os trabalhos precários do filho “pesam” no orçamento da família. “Era uma firma que pagava acima da média, mas depois nunca mais houve aumentos. Posso até dizer que há dez anos recebia mais. Agora não pagam horas extraordinárias e os sábados já não são pagos a triplicar. Isso fazia muita diferença e dava-nos outro ânimo”, conta.

Já o ambiente de trabalho, esse, sim, foi afectado. Júlia nunca se atrasou na chegada à fábrica e sabe que, se isso acontecer, há um preço. “Se me atrasar um minuto que seja a passar o cartão às 8h, tiram-nos logo os 3,25 euros de subsídio de alimentação, e isso faz muita diferença”, conta.