6.9.23

A água tratada de esgoto poderá ser servida à mesa no futuro

Carla Tomás, in Expresso


Nalguns locais do mundo já o é, como em Singapura. Em Portugal ainda se está na fase de investigação e de projetos-piloto a pensar em alternativas para enfrentar um futuro onde a escassez de água se vai acentuar


m Portugal “ainda se está longe” da necessidade de ter água residual tratada para abastecimento público, porém, “tendo em conta os períodos de escassez hídrica que se projetam para o futuro estamos a preparar o caminho”, adianta ao Expresso Rita Alves.


A responsável pelo departamento de Investigação e Desenvolvimento da empresa Águas do Tejo Atlântico é uma das coordenadoras a nível nacional do projeto integrado no programa europeu B-WaterSmart, que “estuda novas técnicas de tratamento avançado para a produção de água com qualidade para a reutilização na indústria alimentar a partir de água residual tratada”.

Iniciado há três anos (setembro de 2020), o projeto-piloto utiliza águas tratadas da estação de tratamento de águas residuais (ETAR) de Beirolas – ou Fábrica de Água de Beirolas – e deverá estar concluído daqui a um ano. A tecnologia utilizada “inclui uma etapa de ozonização seguida de uma osmose inversa de três estágios”, explica a engenheira do ambiente.

Os resultados preliminares indicam “uma taxa de remoção dos principais nutrientes acima dos 99%”. A contentorização desta tecnologia é revestida por cortiça no exterior e usa um sistema de painéis fotovoltaicos para produzir energia para autoconsumo. A ferramenta com base em algoritmos e software permite uma gestão sustentável dos elementos água, energia e fósforo, para usos futuros a nível municipal, agrícola ou industrial.

Financiado pelo programa Horizonte Europa 2020, envolve um financiamento de 17 milhões de euros, a colaboração de 38 parceiros internacionais e nacionais, e mais de uma centena de cientistas e investigadores. A nível nacional, além da Águas do Tejo Atlântico (AdTA), o projeto dedicado a “economias inteligentes em água” (“water smart economies”) conta também com a parceria do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, da empresa Moinhos Água e Ambiente e da Câmara Municipal de Lisboa.

Singapura é o país mais avançado na reutilização de águas residuais recicladas para consumo doméstico e industrial. Em 2021, esta reutilização já satisfazia 40% das necessidades de água deste pequeno Estado-ilha e o objetivo era chegar a 55% até 2060, de acordo com a autoridade local da água. A maioria da reutilização é para fins industriais (como as fábricas de microships que consomem imensa água), e uma parte é adicionada ao abastecimento de água potável nos reservatórios da cidade-estado de 5,7 milhões de habitantes.
VAI UMA CERVEJA COM ÁGUA RECICLADA?

Em Portugal, a reutilização de água de esgoto tratada, ou Agua+, tem já uma aplicação piloto na produção experimental da cerveja artesanal “Vira”, que usa água reciclada tratada através de ozonização e osmose inversa. O projeto, desenvolvido pela AdTA, em parceria com a “Moinhos Água e Ambiente” e a “Cerlinx” (produtora artesanal da cerveja Lince), venceu o “Water Reuse Europe Innovation Prize 2021”, mas não avançou ainda para produção a larga escala industrial.

Nos Estados Unidos da América também existem projetos de produção de cerveja a partir de água de esgoto reciclada, entre os quais a “Epic One Water Brew”, na Califórnia. E começam a surgir experiências idênticas noutros países.

As fábricas da água da AdTA tratam anualmente cerca de 194 milhões de metros cúbicos de água residual e reutilizam para rega cerca de 2%. Num inquérito realizado há uns meses concluíram que “95,8% da população portuguesa se mostra disposta para aceitar a ‘água reciclada’ em consumos não potáveis como lavagem de ruas, rega de jardins, e outros usos urbanos, agrícolas e industriais”.

Atualmente cerca de 300 mil metros quadrados de área verde no Parque das Nações são já regados com água reciclada, produzida na ETAR de Beirolas, inclusivamente o relvado em frente ao local onde foi erguido o Altar-palco, que recebeu o Papa Francisco na recente Jornada Mundial da Juventude 2023.

A articulação com a Câmara Municipal de Lisboa também prevê a rega com água reciclada de esgoto de outros jardins na cidade, para o qual contribuirão 55 km de condutas, 16 estações elevatórias e 12 reservatórios integrados no Plano Estratégico de Reutilização de Água em Lisboa.