18.9.23

Há câmaras que mantêm inconstitucionalidades nos regulamentos de acesso a habitação social

André Borges Vieira, in Público


Câmaras estão a rever regulamentos e algumas suspenderam a sua aplicação. Porto diz cumprir a lei, ainda que regra apontada pelo TC conste em fase mais avançada do processo de selecção de candidatos.

que são inconstitucionais e já não deveriam ter efeito. Quem precisar de saber a que parâmetros precisa de obedecer para conseguir entrar numa fila de espera para aceder a uma casa num bairro social, se apenas acreditar no que ler nos documentos disponibilizados nos sites de algumas autarquias, poderá achar que não tem condições para submeter candidatura. Só que, desde Maio, após o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 197/2023 ter sido publicado em Diário da República, qualquer município que não estiver a seguir a deliberação do TC não está a cumprir a lei e poderá estar a vedar o acesso a uma renda apoiada a quem não tem condições financeiras para recorrer ao mercado de arrendamento privado.


A deliberação do TC em causa declara nulas duas normas contidas nos n.º 4 e 5 do artigo 2.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, na redacção da Lei n.º 32/2016, de 24 de Agosto (novo regime nacional do arrendamento apoiado para habitação). Nessas normas, abria-se a possibilidade às regiões autónomas e às autarquias locais de aprovarem regulamentação própria para adaptar a lei “às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias”. Só que a adaptação dessa realidade, decreta o TC, “não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários”.

O TC considerou na redacção deste acórdão que era isto que estava a acontecer em Tavira, município que impedia no seu regulamento camarário candidatura a renda apoiada a quem não residisse no concelho há pelo menos 5 anos – a lei nacional não prevê qualquer impedimento nesta matéria. A autarquia algarvia teve de voltar atrás e, confirmou o PÚBLICO, tirou essa regra do regulamento, ainda antes de o acórdão ser publicado em Dário da República. Mas Tavira não é caso único. O mesmo exemplo terão de seguir os outros municípios que têm regras mais penalizadoras do que a lei nacional. Desde Maio, qualquer cidadão, mesmo que tenha acabado de chegar a um novo concelho, pode submeter candidatura a renda apoiada em qualquer localidade.


Na Área Metropolitana do Porto, assim como noutras zonas do país, ainda há regulamentos municipais orientados para a matéria da habitação social que vedam o acesso a candidatura com base no tempo de residência no concelho. Matosinhos, Gondomar, Vila Nova de Gaia ou Maia fazem parte dessa lista. Mas, pelo menos, os dois primeiros garantem já não estar a aplicar a norma e, assim como a Maia – em resposta ao PÚBLICO não ficou claro se continua a aplicar a regra –, já estão em fase de revisão do regulamento. Gaia não respondeu.


O caso ambíguo do Porto

Já no município do Porto, como acontece em Lisboa, o tempo de residência no concelho não exclui ninguém de poder submeter candidatura. Porém, ao contrário do que acontece na capital, essa circunstância é usada como critério para, numa fase seguinte, eventualmente, poder determinar que alguém fique de fora das listas de espera para aceder a habitação social. Ou seja, não é factor eliminatório na fase de submissão de pedido, mas pode ser usado como critério de exclusão, em conjunto com outros parâmetros, já numa fase posterior.


Isto acontece porque o município, depois de submetidas as candidaturas, segue uma matriz de pontuação criada pela empresa municipal Domus Social, que determina a urgência do pedido e a posição que o candidato vai ocupar na fila de espera, mas também se tem condições para entrar na mesma – só entra para a fila quem obtém acima de 40 pontos.


Essa matriz tem em conta parâmetros como: “natureza do alojamento”, “motivo do pedido”, “tipo de família”, “escalão do rendimento”, se o/a requerente é vítima de violência doméstica, mas também o “tempo de residência no concelho”. Neste último parâmetro existem três opções de resposta: “4 anos”, “de 5 a 10 anos” ou “mais de 10 anos”. Se o candidato residir no Porto há mais de 10 anos, são atribuídos 8 pontos; se estiver na categoria intermédia, fica com 4 pontos; se viver na cidade até há quatro anos, só fica com 2 pontos, menos 6 do que a possibilidade máxima de pontuação neste campo.


Esta diferença de pontuação entre as possibilidades de resposta pode fazer a diferença no conjunto das respostas dadas noutros campos da matriz e influenciar a pontuação final. Tendo em conta que são necessários 40 pontos para entrar na fila de espera, numa situação em que faltam até 6 pontos para se atingir a pontuação mínima para se passar à fase seguinte, esta circunstância pode determinar o destino do candidato. Ou seja, este critério poderá enquadrar-se como uma “definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários”, como dita o acórdão do TC.

Considerando que este campo da matriz poderia entrar em contradição com a lei nacional, o PÚBLICO perguntou à Domus Social, através do gabinete de comunicação da Câmara do Porto, se o regulamento local seria alterado para se adaptar ao que o TC deliberou em Maio.


A empresa municipal respondeu: “O tempo de residência no concelho do Porto, se inferior a 4 anos, não determina, por si só, a exclusão automática do pedido de habitação. Constitui um requisito de qualificação do agregado, que é ponderado após a admissão da candidatura.”


A Domus Social explica que a atribuição de habitações em arrendamento apoiado “desdobra-se em quatro fases” – “sendo a primeira a candidatura” e a última a atribuição de casa. Na segunda fase, avalia-se a “habilitação dos candidatos”, altura em que se verifica se há algum impedimento que impeça avançar para a próxima etapa, como por exemplo, avança a empresa, verificar-se que o candidato é “proprietário de uma habitação”. O tempo de residência, adianta, não é considerado “motivo de impedimento” para se avançar para a terceira fase de “qualificação”, antes de se chegar à quarta – atribuição de habitação.

Só que nesta fase, por força da variação de pontuação em função dos anos de residência, em conjunto com os pontos das outras respostas, há quem possa ficar pelo caminho, dependendo do número de anos em que reside no concelho, se em causa estiver a necessidade de se garantir entre 2 e 6 pontos para se chegar aos 40 pontos obrigatórios para se entrar para a fila de espera.Reverter a situação

Por terem encontrado vários casos de candidaturas que não avançam para a última fase por força desta circunstância, mas também por outros motivos, a organização Habitação Hoje tem estado nas últimas semanas à porta da Domus Social a recolher informações junto dos candidatos. Ao PÚBLICO, Bernardo Alves, membro deste grupo de cidadãos composto por mais de 30 pessoas que nasceu da mobilização da sociedade civil, diz já terem encontrado mais de uma dezena de casos que se enquadram no cenário descrito, não necessariamente apenas nesta acção.


Por esse motivo e pelo que considera serem outras incongruências face ao acórdão do TC e da lei nacional, adianta que nesta segunda-feira vão tentar conseguir marcação para intervir na assembleia municipal e entregar um documento elaborado por quatro advogados membros da organização, no qual consta o que apontam como sendo inconstitucional no regulamento portuense.

A Habitação Hoje criou um simulador da matriz, cujo acesso cedeu ao PÚBLICO, no qual é possível verificar a interferência da entrada ou não na fila de espera do critério de pontuação escolhido na categoria que diz respeito ao tempo de residência.


Na assembleia municipal, se conseguirem vaga, será pedido que “o regulamento seja alterado para retirar” este e outros “pontos inconstitucionais”, e que voltem a ser analisadas as candidaturas que ficaram pelo caminho desde que saiu o acórdão do TC, para que “sejam validadas, se assim se justificar”.


A Domus Social adianta que a Câmara do Porto “já iniciou a revisão do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional”. A revisão em curso, avança, “assenta, sobretudo, na necessidade de aclarar a redacção de algumas normas, bem como especificar aspectos procedimentais, em prol de uma transparente e imparcial gestão do parque habitacional”.

Actualmente, diz a empresa municipal, “existem cerca de 1000 pedidos em lista de espera”, um número que se tem “mantido estável”. Pergunta-se se as regras do regulamento local não poderão estar a esconder números mais elevados. Responde-se que “os procedimentos instituídos” garantem “a proporcionalidade ao nível da gestão de admissão de candidaturas e consequente concessão de habitações”. Este ano, no Porto, “já foram entregues mais 200 habitações”, em média, “uma casa por dia”.

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