23.12.09

Falhanço da cimeira do clima põe relevância das Nações Unidas em xeque

Por Maria João Guimarães, in Jornal Público

A ONU foi criticada, mas especialistas dizem que é importante que as negociações sobre o clima se continuem a fazer no âmbito do organismo mundial


A conferência de Copenhaga foi um falhanço. O desapontamento foi endossado aos vários actores - China, EUA, Índia, Brasil. E também, claro, às Nações Unidas. Há quem questione se o falhanço da cimeira não deixa a ONU mais irrelevante. Talvez, mas num aspecto os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO concordam: não é possível prosseguir as conversações sobre as alterações climáticas sem as Nações Unidas.

A conferência de Copenhaga é a última de uma série de grandes encontros da ONU que seguem o mesmo guião, comenta a correspondente nas Nações Unidas da revista norte-americana The Nation, Barbara Crossette. "Dias de regateio, recriminações, saídas e sessões pela noite fora antes que surja um acordo final que não agrada a quase ninguém", descreve.

Assim, "num contexto da ONU, o drama de Copenhaga não foi novo": podemos pensar por exemplo na conferência sobre o racismo, polémica pelo discurso do Presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, que afirmou que Israel era um Estado racista, o que provocou a saída da sala de muitos delegados em protesto.

No caso de Copenhaga os 13 dias de negociações foram marcados pelainterrupção dos países em desenvolvimento do chamado G77 e por uma última noite de maratona negocial. Tudo isto permitiu apenas que se chegasse a um acordo voluntário subscrito por alguns países - os 192 membros da ONU decidiram apenas "tomar nota" do Acordo de Copenhaga, que estabelece uma base para a luta contra o aquecimento global e que foi negociado pelos EUA, China, Índia, Brasil e África do Sul.

Não houve um acordo vinculativo que substituísse o Protocolo de Quioto, que entrou em vigor em 2005, sete anos depois de ter sido negociado.

Nova ordem

A cimeira de Copenhaga terminou no final da semana passada, mas as repercussões continuam a sentir-se. Copenhaga teve duas características que fazem com que este guião seja amplificado: lidou com um problema que exige uma solução dentro de um período de tempo o mais curto possível, e contou com representações de alto nível, com a presença de vários chefes de Estado e de governo.

Assim, começam a ser colocadas as questões sobre a relevância do seu promotor, a ONU. Viriato Soromenho Marques, professor universitário e responsável pelo programa de Ambiente da Fundação Calouste Gulbenkian, recusa que a ONU esteja a perder importância.

Apesar disso, sublinha que há uma nova ordem internacional de geometria variável, em que o poder dos países vai mudando conforme o que está em causa - os países mais ricos terão mais a dizer na luta contra a crise, os mais poluidores na luta contra as alterações climáticas (estas duas listas tendem a coincidir).

Mas os novos directórios de países poderosos complementam, e não desafiam, a ONU, disse numa conversa telefónica com o PÚBLICO. "Não há ninguém a agir neste momento contra a ONU do modo que agiu a Administração Bush em 2003", compara, lembrando a época em que muito se falou sobre a irrelevância da ONU, quando os Estados Unidos e uma coligação de alguns apoiantes decidiram levar avante um ataque ao Iraque mesmo sem uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas a autorizar a acção militar.

Metas e verificação

Por outro lado, reconhecendo que a conferência de Copenhaga falhou, Viriato Soromenho Marques sublinha a importância de que um acordo se consiga no quadro das Nações Unidas, com metas e mecanismos de verificação, e não de um modo em que haja compromissos voluntários dos países, sem metas de verificação.

Soromenho Marques lembra ainda que foi no âmbito da ONU que se iniciou o longo processo de luta contra as alterações climáticas, em 1988, com a criação de um grupo científico, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas.

As Nações Unidas não se têm colocado numa posição muito relevante também para facilitar o processo, considera Soromenho Marques. Mas agora - após Copenhaga - "o secretário-geral da ONU [Ban Ki-moon] deveria tentar sublinhar o que pensa do roteiro de viagem para o próximo ano e enviá-lo aos governos. A tónica num acordo vinculativo em 2010 é crucial".

"O próximo protocolo - Quioto II ou Cidade do México - tem de ser negociado no âmbito da estrutura da ONU", diz ainda o professor, adiantando que o papel das Nações Unidas será essencial: "A própria natureza da protecção do clima exige que toda a gente participe. Não há outro fórum que possa desempenhar o papel da ONU."

Marcel Vietör, investigador do German Council on Foreign Relations (DGAP, na sigla em alemão), afirma que há dois conjuntos de forças opostas que marcam a cimeira de Copenhaga e o papel da ONU.

A primeira é o interesse individual versus interesse colectivo, a segunda a eficácia versus representação. No primeiro caso, sublinha que em Copenhaga todos os principais actores estavam mais preocupados em minimizar os seus custos individuais, o que foi contraproducente para chegar ao objectivo - bom para todos - de reduzir o mais possível as emissões de CO2, que exigia que todos contribuíssem o máximo possível.

Eficácia vs representação

Por outro lado, há quem argumente que em muitas áreas a ONU não consegue ser eficaz e representativa ao mesmo tempo. "A ONU é provavelmente demasiado ineficaz para ser o único organismo a lidar com as alterações climáticas", adiantou Vietör, num e-mail ao PÚBLICO, defendendo mais acções de actores como a União Europeia, mesmo que unilateralmente. "No entanto", continua, "a comunidade internacional não pode prosseguir sem a ONU."

Isto porque fóruns como o G20 representam "os países que são mais responsáveis pelas alterações climáticas (no presente e no futuro, países industrializados e economias emergentes), mas ao mesmo tempo estes não sentem a pressão" para reduzir as emissões. "Os países que sofrem mais, países em desenvolvimento, pequenos Estados que são ilhas, estão representados apenas no quadro da ONU."