23.12.09

Gestos de um Natal solidário

Agência Ecclesia

Igreja multiplica iniciativas de apoio aos mais carenciados


“Vamos meninas, este já foi o nosso Natal!” Estas palavras, proferidas por uma mãe às suas três filhas no fim da festa promovida pela Comunidade Vida e Paz (CVP), revelam uma realidade cada vez mais presente no quotidiano das grandes cidades.

Não que não se saiba que o número dos sem-abrigo permanece elevado; não que se desconheça que continua a crescer a percentagem de pessoas que só garante as suas refeições graças à acção das instituições de solidariedade; não que se ignore o crescente fenómeno da solidão e da indiferença.

Estes casos, todavia, adquirem outra intensidade e dramatismo quando as vidas que dão corpo às estatísticas saem da penumbra e irrompem nas iniciativas que evocam o nascimento de Jesus. É uma pequena multidão que interrompe o seu isolamento e se reúne em espaços que oferecem alimento, convívio e presentes. Para muitos, incluindo as crianças, estes encontros serão o seu único Natal.

Música congregou boas vontades

Celebrar o nascimento de Cristo na comunidade escolar, sem esquecer aqueles que mais precisam: este foi o objectivo do 2.º Café-concerto Natal Solidário, que em Bragança reuniu centenas de pessoas em torno da música proporcionada por várias bandas musicais.

A actividade, realizada a 17 de Dezembro no Mercado Municipal, foi organizada pelos professores de Educação Moral e Religiosa Católica da cidade.

Alunos, encarregados de educação, docentes e auxiliares ajudaram as famílias mais carenciadas com a doação de alimentos e brinquedos.

Milagres da multiplicação

De 18 a 20 de Dezembro, a CVP contabilizou mais de 2700 entradas na Festa de Natal que decorreu na cantina da Universidade de Lisboa. É um número que não abrange os pobres que se dirigiram às instalações académicas apenas para levantar roupa. Neste Domingo estiveram 1300 pessoas, mais 200 do que no ano passado.

Os sem-abrigo, toxicodependentes e excluídos viveram um ambiente “de alegria e de partilha”, testemunhou Elisabete Cardoso à Agência ECCLESIA. Esta responsável da Comunidade Vida e Paz recordou as palavras de uma mulher, que ao regressar à sua morada, desabafou: “Eu vim para aqui chorosa e saio tão feliz…”.

Na Gafanha da Nazaré, o quarto almoço de Natal, organizado neste Sábado pelo Apostolado do Mar de Aveiro, em parceria com a Fundação Prior Sardo, contou com a presença de 55 pessoas carenciadas, menos 20 do que na edição do ano passado.

O diácono José Simões, presidente daquele Organismo, referiu que a crise reflecte-se nas ofertas recolhidas para a refeição, provenientes de empresas ligadas ao sector das pescas. “Se tivéssemos convidado 150 ou 200 pessoas, decerto que viriam”, afirmou o dirigente.

Sem as ofertas de géneros, estas iniciativas solidárias não seriam possíveis. Elisabete Cardoso fala dos “milagres” que têm ocorrido na festa organizada pela CVP. Lembrou que há dois anos o armazém dos víveres foi assaltado a poucos dias da ceia de Natal e que, no final dos três dias, sobraram alimentos como nunca. “Este ano aconteceu o milagre da multiplicação. Chegámos a pensar que não tínhamos ceia para todos”, o que não veio a suceder.

Noites quentes

Na próxima Quarta-feira, pelas 20h, a Cáritas de Setúbal vai também organizar uma festa de Natal.

A directora daquela instituição de solidariedade, Isabel Monteiro, espera a presença dos sem-abrigo, mas também de pessoas que moram “em casas abandonadas ou muito degradadas, sem as mínimas condições de habitabilidade” ou que “vivem em barcos ou carros velhos”.

Além dos utentes que habitualmente recorrem à Cáritas, “há muitos outros que nessa noite vêm para passar a consoada”.

Nos últimos meses o número de pessoas que pediram a protecção daquela instituição da Igreja “subiu muito”: entre 25% a 30%, estimou Isabel Monteiro.

A responsável sublinhou que o encontro, que ocorrerá no Centro Social da Anunciada, é mais do que uma ceia, “até porque nós damos diariamente de almoçar e de jantar a grande parte destas pessoas”.

“O que se pretende – explicou – é que o grande presente seja o afecto e, sobretudo, a proximidade, que nos faça partilhar de uma forma mais sensível a verdadeira pobreza e o espírito de Natal”. Porque uma das maiores pobrezas – e uma das mais escondidas – consiste na clandestinidade existencial e relacional de muitos pobres.

A importância destas iniciativas para a integração social foi exemplificada com um episódio contado pela responsável. “Na consoada de 2008 – contou – sensibilizou-me muito uma senhora imigrante, com as filhas, que me dizia: ‘É a primeira vez, em muitos anos, que tenho a possibilidade de tirar fotografias de uma festa de Natal para mandar para o Brasil’”.

Por isso Isabel Monteiro espera que, mais uma vez, a consoada de 23 de Dezembro “seja uma noite quente em todos os aspectos”.

Responsabilidade social

“Recusámos centenas de inscrições. Há cada vez mais pessoas a querer ajudar. É incrível!”, referiu Elisabete Cardoso, a propósito do acréscimo de voluntários que quiseram participar na festa da Comunidade Vida e Paz.

Mais de 1100 pessoas estiveram envolvidas na iniciativa, colaborando na distribuição das refeições, mas também na decoração da cantina e na logística.

A responsável destacou o facto de cada vez mais empresas estarem a aderir a “um novo paradigma de responsabilidade social”, que para além da doação de dinheiro e géneros, proporciona aos trabalhadores a possibilidade de colaborar na iniciativa.

De acordo com os dados recolhidos em 2008, mais de 76% dos voluntários que se integraram na ceia da CVP foram acompanhados por pelo menos um familiar ou amigo. Verificou-se igualmente que a idade média era de 30 anos e que 30% não residia no distrito de Lisboa.

Isabel Monteiro confirmou esta tendência: “Temos um grande número de pessoas de vários pontos da região e de Lisboa que querem ser voluntários”. Para a consoada da próxima Quarta-feira esperam-se entre 25 a 30 colaboradores.

Felicidade está mais em dar do que em receber

A Cáritas de Setúbal não recusa as ofertas que têm chegado, mas deseja que a presença dos voluntários “passe mais por ouvir os carenciados e conversar com eles do que desempenhar tarefas”.

“Para além da noite de Natal – observou Isabel Monteiro – há 365 noites ao longo do ano em que precisamos de pessoas que, connosco, possam transformar os nossos locais de refeição em espaços de maior relação.”

Por isso a dirigente pede aos voluntários que, a partir da sua participação na consoada, “criem outra responsabilidade, outro compromisso e outra visão”.

A responsável evocou o aforismo “o Natal é quando um homem quiser”: “É uma frase que já está um bocado gasta, mas é mesmo assim”, afirmou.

Que motivos estarão na origem do crescimento do número de voluntários? Elisabete Cardoso lembra que a CVP já conhece os sem-abrigo das rondas nocturnas. Mas nestes dias, parece haver outra luz no seu rosto: “Nós que os contactamos na rua, vemo-los ali aquecidos, a sorrir, a comer. É uma sensação muitíssimo boa”, descreveu a responsável.

Gestos e ofertas que actualizam as palavras que São Paulo dirigiu aos anciãos de Éfeso: “A felicidade está mais em dar do que em receber”.