21.2.11

"A zona euro só será sustentável se houver convergência económica"

Ana Rita Faria e Teresa de Sousa, in Jornal Público

Para a antiga ministra, Portugal tem de negociar bem as condições de adesão ao pacto de competitividade proposto pela Alemanha

Como é que se consegue uma maior convergência económica e social na zona euro, quando os países mais frágeis se vêem sujeitos a uma austeridade financeira que pode matar o crescimento? É este o dilema português, no contexto de uma vasta renegociação das próprias regras da união monetária, imposta pela Alemanha. Foi este o ponto de partida desta entrevista. Maria João Rodrigues, antiga ministra de António Guterres e actual conselheira económica das instituições europeias, alerta para aquilo que Portugal tem de garantir à mesa da negociação europeia, mas também reconhece que ainda não fizemos o trabalho de casa.

Disse numa conferência em Lisboa que o relatório anual de crescimento da Comissão Europeia (CE), ponto de partida para o "semestre europeu", foca-se na austeridade, ignorando o crescimento. Há, aqui, um problema para Portugal, que tem de apresentar o seu Programa Nacional de Reformas de acordo com a estratégia 2020?

Há, sem dúvida. Este relatório anual de crescimento surpreendeu-me pela negativa. Foi possível preparar uma estratégia europeia para os próximos dez anos [a estratégia 2020] com uma certa ambição, porque apontava para um crescimento mais inteligente, mais verde e mais inclusivo, que é aquele que permite dotar a Europa de uma nova vantagem competitiva. Mas, a meu ver, este relatório tem prioridades que não são consistentes com a estratégia previamente definida.

Porquê?

Primeiro, porque praticamente se esquece desse objectivo geral de promoção de um crescimento mais verde, inteligente e inclusivo. Segundo, a política económica que é preconizada está quase exclusivamente centrada na consolidação orçamental e muito pouco preocupada com o crescimento. Terceiro, a questão que deveria ser a chave da recuperação económica - a promoção de emprego - deve ser resolvida, de acordo com o relatório, levando as pessoas a procurar emprego mais activamente. Como é que isso é possível se há falta de empregos disponíveis? Numa situação como a actual, temos sobretudo de activar a oferta de trabalho por parte das empresas e, sobre isso, nada de relevo é proposto. É uma má forma de estrear uma estratégia europeia para o crescimento e o emprego, que não vai conseguir concitar o apoio dos cidadãos europeus.

Como explica essa contradição entre o relatório anual da CE e a estratégia 2020?

Pelo contexto político muito especial em que a CE teve de lançar o relatório. No auge da crise da dívida soberana, a zona euro dotou-se de um mecanismo de estabilização financeira que se revelou insuficiente para o tipo de pressões a que estamos submetidos e que é fundamental reforçar. Estamos no meio de uma macronegociação que se pode resumir assim: para aceitar o reforço desse mecanismo, a Alemanha requer um maior compromisso dos países do euro com a disciplina orçamental e com o aumento da competitividade segundo um padrão muito alinhado pelo próprio modelo alemão. Ora, a estratégia 2020 só é credível se estiver apoiada em instrumentos que permitem a todos os Estados-membros aplicá-la. No quadro actual, há países que estão em condições de o fazer e outros que não. Por isso, a grande questão que temos de colocar é: quais são as prioridades que podem garantir que a zona euro seja sustentável a longo prazo? São a disciplina orçamental e o reforço da competitividade, mas também o crescimento e o apoio activo à convergência. Temos de ter convergência na zona euro não só no que respeita às metas do défice e da dívida, mas também no que respeita à capacidade de crescimento das nossas economias e aos padrões sociais e ambientais.

Em que medida uma utilização diferente, mais flexível, do fundo de estabilização europeu pode contribuir para isso?

Essa é outra peça fundamental da reforma económica da zona euro. Esse fundo tem de ser melhorado numa série de aspectos. O primeiro é garantir uma taxa de juro mais razoável que permita a cada país reduzir a dívida e o défice, mas também o relançamento económico. Actualmente, as taxas de juro praticadas por esse fundo são excessivamente elevadas. O segundo problema é que, tal como está, o fundo só fornece empréstimos e é fundamental que seja flexibilizado no sentido de poder abrir linhas de crédito ou de poder comprar títulos de dívida pública, substituindo o BCE nessa função. O terceiro problema é que o fundo só se centra no reequilíbrio orçamental e não atende à necessidade de crescimento.

A Alemanha colocou em cima da mesa as suas condições para negociar essa flexibilização sob a forma de um "pacto para a competitividade". O que quer a Alemanha com este pacto?

Este pacto vai para além das reformas de governação económica que já estão em curso [ao nível dos 27], pois visa estabelecer um novo contrato dentro da zona euro: é garantido aos países do euro um mecanismo de solidariedade em matéria de dívida soberana que podem usar se estiverem em situação de dificuldade; em contrapartida, é-lhes exigida uma convergência das suas políticas económicas e sociais.

Temos de perceber a exigência alemã. Se a Alemanha tem de fazer um esforço para apoiar financeiramente a Grécia, é lógico que lhe peça um esforço adicional de saneamento das contas públicas, mas também de aproximação entre a idade da reforma dos dois países. Do mesmo modo, se a Alemanha tem de apoiar a Irlanda, é legítimo que lhe peça um esforço de convergência quanto aos impostos sobre as empresas.Estamos perante uma oportunidade histórica e, mesmo que não venhamos a recorrer ao fundo, temos de ter um papel activo no desenho do que vai ser esse pilar de união económica.

O que é que Portugal deve garantir nessa negociação?

Primeiro, temos de conseguir que o fundo de estabilização evolua no sentido que referi. Quanto à coordenação das políticas, pretendida pela Alemanha, estamos relativamente à vontade em alguns aspectos. Fizemos uma reforma importante do sistema de pensões que alinha a idade real da reforma por um nível até um pouco superior ao alemão. Estamos alinhados com a média europeia no que respeita aos impostos sobre as empresas. O problema fundamental da proposta alemã tem a ver com o que é pedido em matéria de disciplina orçamental e competitividade. Em primeiro lugar, temos de preservar uma margem para investir.

Mesmo que isso ponha em causa as metas do défice?

Temos de definir metas do défice e da dívida que incorporem essa necessidade de investimento. Os países que conseguirem redireccionar a sua despesa pública para investimento estratégico deveriam ter mais tempo para reduzir o défice e a dívida. Essa era a reforma que devíamos pedir. Outro ponto importante tem a ver com o travão da dívida, que a Alemanha quer que figure na Constituição. Cada país deve garantir que a sua dívida é sustentável a longo prazo mas colocar um limite na Constituição pode impedir que, numa situação excepcional, se possa aumentar a dívida, como aconteceu durante a crise financeira. Mas a área mais problemática da proposta alemã é a da competitividade. A Alemanha sugere que os países passem a ser monitorados através de um indicador chamado "custos unitários de produção", tendo implícita a ideia de que a melhor forma de um país ser mais competitivo é reduzir os salários e as contribuições sociais. A via que temos de seguir é aumentar a produtividade criando mais produtos e serviços de valor acrescentado.

Mas é possível conciliar a necessidade de aumento rápido da competitividade com ganhos de produtividade que exigem mais tempo?

Há, de facto, quem argumente que, se queremos um aumento da competitividade no curto prazo, temos de baixar os salários. O que precisamos é de uma boa combinação entre moderação salarial e uma forma mais inteligente de aumentar a produtividade. E aí temos de reconhecer que Portugal não tem feito tudo o que devia. Há medidas que podem ser tomadas com impacto directo nos custos das empresas. O exemplo mais óbvio é a energia, cujos preços têm de ser reduzidos.

Como é que se consegue isso num mercado que acaba por ser monopolizado?

Só abrindo esses sectores à concorrência. Mas o ponto-chave para que Portugal dê um salto de competitividade está numa identificação mais estratégica de áreas nas quais possamos ter capacidade para competir a nível global. Precisamos de passar do mero apoio às empresas inovadoras para uma política global de inovação, capaz de alterar o nosso padrão de especialização. Isso exige uma política industrial, não tenho medo desta palavra.

Em que actividades Portugal poderia ter capacidade competitiva global?

Um sector evidente é o cluster da saúde, em ligação com lazer. É lamentável e inaceitável o travão que tem sido imposto à formação de médicos. Outros exemplos são as energias renováveis; tudo o que roda à volta da fileira florestal; ver o que vale a pena fazer em relação ao mar; as indústrias criativas, que são hoje o sector com maior crescimento na Europa e podem irradiar capacidade e competitividade para muitos sectores. Há exemplos na Europa que provam que isso é possível num espaço de tempo de cinco ou seis anos. Aconteceu na Finlândia e na Suécia, que passaram por crises gravíssimas nos anos 80 e 90 e ultrapassaram-nas através de uma política industrial que conseguiu alterar o perfil de especialização das suas economias.

O pacto de competitividade será discutido na cimeira da zona euro a 11 de Março. A Alemanha pôs as suas condições...

Não tenho nenhuma posição de antagonismo em relação à Alemanha. Pelo contrário, é uma economia com muitos pontos fortes, com os quais se pode aprender. Temos de evitar esse antigermanismo primário que já começa a manifestar-se, mas a Alemanha também tem de ter cuidado com ele, porque, a certa altura, temos uma parte da população europeia contra ela e contra a Europa, no seu conjunto.

Justamente, quando se fala de desequilíbrios macroeconómicos, esta negociação também deve levar em conta que a Alemanha tem uma balança externa superavitária?

O pacto, tal como está a ser proposto pela Alemanha, pode gerar uma dinâmica de desequilíbrios cumulativos na Europa. Se se continuar a insistir que só temos de convergir em matéria de défice, dívida e custos unitários de produção, vamos ter uma Europa com países a crescerem três por cento e outros em recessão. Isso é mau para os países em recessão, para a Europa como um todo e, certamente, para a Alemanha.

Do mesmo modo que se pede um esforço aos países que têm um défice externo, tem de se pedir aos que têm um superavit que expandam a sua procura, de modo a absorver a oferta daqueles países. Não faz sentido pedir à Alemanha que seja menos competitiva. Mas faz sentido pedir-lhe que consuma mais e aumente mais os salários.

No pacto, a Alemanha propõe ainda o reconhecimento das qualificações para promover a mobilidade. Estou a favor desse ponto, mas é preciso reconhecer que ele tem um risco. Tal como está desenhado, este pacto vai induzir riscos de recessão e desemprego em alguns países. Ora, esse reconhecimento das qualificações visa criar a possibilidade de os desempregados portugueses irem para onde há oferta de emprego. Levado ao extremo, isso pode traduzir-se num brain drain (fuga de cérebros) de regiões em recessão em direcção à Alemanha.

Além de mão-de-obra, o que é que a Alemanha tem a ganhar com este pacto?

A preocupação da Alemanha é preparar-se para a competição global e, para isso, tem de estar apoiada numa grande área de integração regional com a qual pode contar para fornecer um vasto mercado doméstico, recursos humanos e fornecimento às suas empresas. Esta é a lógica alemã. É uma lógica de construção europeia distorcida, que não dá oportunidade de crescimento a todos.

Portugal tem de ter uma estratégia para a negociação deste pacto. Como é que estes desafios estão a ser assumidos internamente?

Há um défice evidente de debate nacional sobre o que se passa a nível europeu. Grande parte dos actores não está informada das reformas profundíssimas que estão a ocorrer e de como vão condicionar, daqui para a frente, o que podemos fazer a nível nacional. Mas também temos de fazer o nosso trabalho de casa, mudando de vida numa série de aspectos - em termos de capacidade profissional, empresarial e de poupança. Só isso nos dará legitimidade para discutir as novas regras europeias. Está na altura de ter um discurso de verdade perante a população portuguesa. As pessoas têm bom senso de tomar as opções certas numa circunstância tão difícil.

Está optimista quanto a esta negociação?

Vamos passar por um período muito difícil. Criou-se uma lógica de negociação em que tudo depende de tudo. Ninguém pode ter a certeza de que vamos conseguir chegar a um acordo, quanto mais a um acordo aceitável. Estamos a caminhar em terreno desconhecido. Seria um grande salto para a zona euro, porque é a passagem para uma união económica, mas há uma série de escolhos no caminho.