25.7.19

Famílias ciganas que andam de carroça foram à aula de código da estrada

Carlos Dias, in Público on-line

Ciclicamente acontecem acidentes entre carroças e automóveis com vítimas mortais. Os condutores de viaturas com tracção animal não têm nem podem obter carta de condução mas conhecer o código pode salvar vidas.

Os acidentes são recorrentes e recentemente houve uma vítima mortal devido a uma colisão entre uma carroça de uma família cigana de Beja e um automóvel. Desde aí, as autoridades apertaram o cerco e começaram a retirar animais a quem mora no Bairro das Pedreiras. Mas os cavalos são muitas vezes o único meio de transporte que as famílias têm. Para minorar os problemas, duas associações foram dar uma aula de código e descobriram que alguns sinais de trânsito eram um perfeito mistério para quem os ouvia.

Um caso concreto estava mesmo ali à mão para explicar o contencioso que persiste entre famílias ciganas que recorrem ao meio de transporte puxado por animais e os outros condutores automobilizados: Era de manhã e uma família cigana, um casal com quatro filhos menores, lotava uma pequena carroça puxada por uma mula que troteava e tropeçava na calçada da Avenida Fialho de Almeida, uma das principais artérias da cidade de Beja. A lentidão do pobre bicho, a quem não podia ser exigida mais velocidade, exasperava os mais impacientes: “Tira essa m… do caminho”, barafustavam os que não queriam ficar retidos no sinal vermelho umas dezenas de metros à frente, enquanto outros buzinavam para reforçar a veemência dos impropérios que visavam o condutor da pequena carroça.

“Este é o meu transporte”, explicou o homem ao PÚBLICO. Na parte de trás da pequena carroça seguiam as quatro crianças, a mãe, uma bilha de gás, batatas, água, carne e outros alimentos, que foram comprar a uma superfície comercial que fica no lado oposto ao Bairro das Pedreiras, onde se concentra a maior comunidade cigana do Baixo Alentejo - cerca de 800 adultos e crianças. “O senhor diga-me como é que eu posso vir à cidade buscar o que preciso se não trouxer uma carroça para transportar o que comemos e o que precisamos” quando a distância a percorrer é de quase cinco quilómetros. Diz que não tem carta de condução, mas que o animal está legalizado e tem chip de identificação.

Até há cerca de dois meses atrás deslocava-se ao longo da variante exterior de Beja, percorrendo uma distância menor, mas depois do acidente que matou uma senhora de 55 anos, no início de Maio, quando conduzia o seu automóvel e chocou de frente, na faixa de rodagem, com um cavalo atrelado a uma carroça, passou a circular pelo interior da cidade onde, refere, “têm mais segurança”.
Depois deste acidente, e como aconteceu noutras situações análogas, as autoridades intensificam o controlo sobre as famílias ciganas que se fazem transportar de carroça e sobre os animais que apascentam junto à rede viária. A comunidade cigana do Bairro das Pedreiras passou nos últimos meses a contar com a presença mais assídua das autoridades e houve a apreensão de animais, decisão que veio dificultar a locomoção de quem ali habita. “Temos, nesta comunidade, um grande número de viúvas que não têm condições para transportar os sacos com a comida que compram, cidade abaixo, ao longo de quilómetros”, explicou Prudêncio Canhoto, presidente da Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), ao PÚBLICO.

Os ciganos portugueses começam a “sair da clandestinidade”
O recurso está no uso de carroças puxadas por animais mas estes têm vindo a ser retirados e “junto ao bairro está um camião para levar mais”, critica o presidente da AMEC que participou, nesta terça-feira, com o Núcleo Distrital de Beja da Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) numa “aula de código” para as famílias ciganas no Bairro das Pedreiras. Orlando Silva, um jovem cigano, elaborou um folheto explicativo baseado em imagens destacando uma frase: “Mais vale prevenir que remediar” até porque “não há legislação sobre tracção de carroças puxadas por animais”, explica Anselmo Prudêncio, técnico da EAPN.

Crianças e adultos rodeavam os “formadores” para ouvir as suas explicações sobre a condução em segurança nas estradas. O folheto primava pelas imagens que explicavam como se devia circular numa carroça e o que se devia evitar. Meia dúzia de sinais de trânsito completavam a explicação.

“A reacção ao folheto revelava um misto de surpresa e de desconhecimento de alguns dos sinais de trânsito escolhidos”, observa o técnico da EAPN. Com um dedo apontava para as imagens que indicavam o que eram procedimentos errados e aqueles que deveriam ser seguidos. Consciente do valor da mensagem, Anselmo Prudêncio frisava ao PÚBLICO que “com textos escritos não se ia lá”. O caminho passa por insistir nos esclarecimentos. As palavras só devem explicar o essencial.

Algumas das imagens provocavam sorrisos, como aquela em que o peso da carga era tal que o animal ficava no ar e outra de uma carroça a pretender ultrapassar uma viatura Mercedes. Já tinha acontecido a alguns dos que ouviam a explicação. Já as imagens que retratavam o choque entre animais e viaturas deixavam os rostos fechados.
No entanto, está por resolver outro problema de fundo: as comunidades ciganas que fazem do nomadismo o seu modo de vida ou usam os animais como meio de transporte não foram contempladas na legislação em vigor que estabelece as normas regulamentares para a retenção de animais (Portaria n.º 634/2009). Os seus donos “têm de ter um sítio para o seu aparcamento”, observa Prudêncio Canhoto. E quando estes procuraram junto da Câmara de Beja a obtenção de autorização para reter os animais, esta não foi dada.

Portugal devia “pedir desculpa aos ciganos”
“E agora temos as pessoas assustadas com medo que as autoridades lhes levem os animais”, como aconteceu a Cassiano Silva, a quem lhe retiraram três cavalos por não ter espaço para os manter apesar de viver no Bairro das Pedreiras, contesta o presidente da AMEC, lembrando que se trata de famílias pobres que “não têm dinheiro para comprar ou alugar terra para manter os bichos”.
O PÚBLICO pediu esclarecimentos ao presidente da Câmara de Beja mas não obteve resposta.