30.7.19

É mais difícil fazer amigos quando somos adultos e a cada sete anos perdemos metade dos que temos

Natália Faria, in Público on-line

As amizades surgem sem que pensemos nelas durante a infância e a juventude. Já na idade adulta, nem por isso. A família rouba tempo e a desconfiança em relação ao outro é maior. E não, os amigos do Facebook não contam. Até porque a amizade não se pede, constrói-se. Um trabalho que, segundo um estudo, requer no mínimo 90 horas. Primeiro de uma série de artigos que mostram como a ciência nos ajuda a perceber melhor alguns dos nossos comportamentos.

Fazer novos amigos implica uma espécie de dança que Nathan Belois, um norte-americano radicado há quatro anos em Portugal, conhece de cor e salteado. Mas que nem por isso se torna mais fácil de executar. “É difícil. É quase como se estivéssemos à procura de um parceiro para um relacionamento amoroso, mas sem a parte do sexo”, brinca o norte-americano, que, aos 39 anos de idade, já viveu em geografias tão remotas como a Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Alemanha, passando pelos Países Baixos e pela Ucrânia.

“Como mudei tantas vezes ao longo da vida, fazer amigos tornou-se um grande desafio. Estou cá há vários anos e hoje penso que finalmente consegui ter amigos próximos com quem posso falar de forma muito honesta e aberta, e a quem posso ligar para beber um copo de vinho ou se me apetecer falar de algum problema. Mas esse nível de amizade é muito difícil de conseguir”, acrescenta, para explicar que, no seu caso, como no da maior parte das pessoas, a passagem dos anos não trouxe mestria. “Fazer amigos implica fazer uso de um conjunto de competências que nos são mais naturais quando somos mais novos, altura em que as coisas acontecem sem que tenhamos de pensar no que está a acontecer. Com a idade, torna-se um processo muito consciente, deliberado e também mais difícil, principalmente porque a abertura a que isso obriga nos coloca numa posição de maior vulnerabilidade.”

É dessa vulnerabilidade que fica depois do exercício de “strip tease” sentimental de que fala a correspondente em Londres da revista norte-americana New York, Jessica Pan, quando descreve a sua participação num workshop destinado a ensinar as pessoas a serem mais sociáveis, obrigando-as a substituir as conversas sobre o tempo, as férias ou a última refeição por aquilo que realmente as preocupa e angustia. Escreve a jornalista, depois de ter sido obrigada a revelar-se diante de um desconhecido: “Passámos por uma brutal série de revelações pessoais e pusemo-nos no lugar um do outro, exaustos mas cheios de endorfinas. Senti aquela espécie de alívio que se segue a uma boa sessão de choro.”

Claro que o exagero virá de o exercício ter sido imposto para obrigar as pessoas a confrontarem-se e a ligarem-se a outras. Mas o workshop é real e tem inscritos. Destina-se a ajudar os habitantes de uma cidade que, com nove milhões de habitantes em permanente interacção, viu recentemente colar-se-lhe o rótulo de “capital da solidão da Europa”. Os malefícios de estar só (que, segundo alguns estudos, prejudicam tanto a saúde como 15 cigarros por dia) ganharam base científica e levaram mesmo o Governo britânico a criar o Ministério da Solidão. O problema é sério e faz mal à saúde, portanto. E, numa altura em que andar com o nariz colado ao telemóvel se tornou o novo normal, por um lado, e em que as migrações provocam desenraizamentos familiares e sociais a uma escala global, a dificuldade de que fala a jornalista e que testemunha também Nathan Belois é denominador comum a várias geografias. “É como se tivéssemos de estar sempre a criar raízes”, descreve Nathan.

Numa leitura transversal que alguns investigadores norte-americanos fizeram a 148 estudos sobre mortalidade, a conclusão dificilmente podia ser mais taxativa: o risco acrescido de morte em alguém que não tem uma rede de amigos é comparável ao risco que corre quem fuma até 15 cigarros ou ingere mais de seis bebidas alcoólicas por dia.

Quanto se é jovem, a conversa é outra. As dificuldades neste campo começam com a entrada na vida adulta. “Ao constituírem família, as pessoas centram-se mais nos filhos, trabalham, e é natural que tenham menos disponibilidade. As relações acabam por ser muito mais internas do que quando se tem 20 anos e disponibilidade e tempo para ir para todo o lado”, começa por dizer o psicólogo e investigador da Universidade do Minho (UM) João Lopes. “As amizades têm um lugar e um sítio. E a verdadeira amizade é quando se é novo e se passa a noite toda e dias seguidos na risota e a falar. Quando se é mais velho, é uma coisa só muito de vez em quando”, atira Miguel Esteves Cardoso. E, confirmando sem o poder saber a explicação adiantada pelo psicólogo, o cronista explica que, no seu caso, os amigos foram perdendo terreno, porque lhe aconteceu a Maria João. “Quando estamos apaixonados ou casados, essa pessoa torna-se o ‘mais que tudo’ e sobra menos tempo para os outros.”

É isso, mas não é só isso. Além de roubar tempo, por via das novas responsabilidades, a idade aumenta a selectividade. “Fazer novas amizades a partir da meia-idade torna-se complicado, porque as pessoas já são mais exigentes, mais rígidas em relação ao que querem e ao que sentem, e, portanto, sob um certo ponto de vista, mais desconfiadas também”, prossegue o investigador da UM. Quando a vida corre bem, “as pessoas conseguem manter-se fiéis a meia dúzia de amizades mais profundas”. “São amizades extremamente duradouras e fiáveis e é em torno destas que as pessoas se relacionam”, precisa ainda João Lopes.

A amizade é uma coisa mariquinhas
Mas, além das mudanças de endereço, na vida das pessoas há rupturas. Divórcios com direito a divisão de amigos, além da de bens. O momento em que, no lugar dos filhos, se instala o vazio. Velhas amizades que, qual personagens de Elena Ferrante, se tornam corrosivas e que, por isso, vão ficando para trás. Outras que se esfumam também, ainda que apenas porque se adiou um telefonema (e outro e outro e mais outro) a perguntar pela vida. “A amizade, como todas as relações, tem de ser alimentada, consolidada, revigorada. De x em x tempo, é preciso que as pessoas se juntem, façam coisas. As relações que, a partir do momento em que estão consolidadas, se aguentam, mesmo com afastamento, também existem. Mas são mais raras”, diz o investigador.
Quantas horas são precisas para fazer um amigo?
Eis-nos então neste cenário em que qualquer pesquisa no Google inunda o ecrã de dicas e conselhos para ajudar cada um a conseguir galgar as barreiras que nos separam uns dos outros. De artigos de fundo nos jornais a artigos científicos, em todos se entrevê essa dificuldade comum a muita gente de passar da fase da cordialidade àquela em que se tem à vontade para ligar a meio da noite ou de uma crise. Num desses artigos, publicado no Journal of Social and Personal Relationships, o investigador norte-americano Jeffrey Hall, da University of Kansas, pôs-se a contar o número de horas necessárias para conseguirmos fazer um amigo: 50 horas para transformar um conhecido num amigo casual, 90 horas para fazer um amigo e mais de 200 horas para que este passe a melhor amigo.
Numa primeira fase, o investigador recrutou 429 voluntários que tinham mudado de cidade há menos de seis meses, pedindo-lhes que nomeassem uma pessoa que tivessem conhecido após a alteração de endereço: como se tinham encontrado, quanto tempo passavam juntos e a fazer o quê. Os inquiridos foram ainda convidados a posicionar o recém-conhecido numa escala destinada a medir a proximidade. Na segunda fase do estudo, Jeffrey Hall inquiriu 112 caloiros e convidou-os a escolher duas pessoas que tinham conhecido aquando da entrada na universidade e a estimar o tempo partilhado durante várias semanas, ao mesmo tempo que iam registando a evolução da relação na escala de proximidade.
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O investigador norte-americano Jeffrey Hall pôs-se a contar o número de horas necessárias para conseguirmos fazer um amigo: 50 horas para transformar um conhecido num amigo casual, 90 horas para fazer um amigo e mais de 200 horas para que este passe a melhor amigo.
Além da quantificação do tempo que demora a fazer um amigo (e descartando desta análise as relações que se criam porque se anda na mesma turma ou se partilha o mesmo bloco de apartamentos e que nunca extravasam para uma amizade propriamente dita), o investigador concluiu que há uma janela temporal para que as relações evoluam para uma amizade: entre três a nove semanas depois de as pessoas se conhecerem. Se ao fim de três ou quatro meses a relação não evoluiu para amizade, “as hipóteses de isso vir a acontecer tornam-se muito remotas”, reconheceu, ressalvando que o ritmo a que a amizade se constrói pode atrasar-se ou acelerar-se consoante aquilo que as pessoas fazem quando estão juntas: rir é importante, falar do que realmente interessa a cada um deles também.
Num cenário de estabilidade, a família pode substituir os amigos. Mas só até certo ponto. “Nós temos as relações entre pais e filhos, que são verticalizadas, e depois as relações com os professores, que também são verticais. Mas é por via da relação que estabelecemos com o grupo de pares que entramos numa comunidade que é horizontal. E por isso é que as amizades são fundamentais no desenvolvimento da personalidade humana”, explica ainda João Lopes, para lembrar que a ausência deste tipo de relacionamento, “que não é parental, que não é conjugal e que nem sequer é igual à que se estabelece com os irmãos”, é essencial “para uma saúde mental adequada”.
Quantos amigos cabem na vida?
Entre quem anda há anos a queimar as pestanas a estudar os meandros da amizade, o melhor que alguém que se gaba de somar várias centenas de amigos no Facebook consegue arrancar é uma boa gargalhada. É que há um limite biológico para o número de amigos que cada um consegue somar. Não virá muito aqui ao caso saber se o poeta Herberto Helder tinha lido os estudos do antropólogo e psicólogo evolucionista britânico Robin Dunbar, quando escreveu amar “os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado”, mas a verdade é que, segundo os estudos feitos nos anos 90 por aquele investigador da Universidade de Oxford, um ser humano não consegue ir além dos cinco bons amigos, em média.
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Um estudo conduzido pelo sociólogo Gerald Mollenhorst concluiu que a cada sete anos, cada pessoa perde cerca de metade dos seus amigos.
Segundo a mesma teoria, que ficou conhecida como “Número de Dunbar”, a quantidade de relações que uma pessoa consegue manter é limitada pela biologia, na medida em que o neocortex humano, isto é, a zona do cérebro activada no processo cognitivo, linguagem e no processamento de estímulos sensoriais, não é capaz de administrar um círculo social superior a 150 pessoas. E, dividindo a amizade em diferentes categorias – os amigos casuais, os amigos, os bons amigos e os amigos íntimos –, Dunbar definiu, a partir da observação do comportamento de primatas que depois validaria em seres humanos (nomeadamente quando se pôs a analisar a quantas pessoas as famílias inglesas costumavam enviar postais de Natal, uma tradição muito enraizada naquele país), os limites cognitivos para o número de pessoas com que cada ser humano consegue relacionar-se nas diferentes categorias da amizade. Assim, além das cinco pessoas que caberão em média no círculo íntimo de amizades, as pessoas poderão aspirar a qualificar como melhores amigos não mais do que 15 pessoas; amigos poderão ser cerca de 50 e, por último, a rede de amigos casuais não conseguirá ir além de um máximo de 150 pessoas. Acima deste número deixa de ser possível manter relações significativas.
“O problema não é a capacidade de memória. Conseguimos fazer isso com um número muito superior a 150 indivíduos – saber quem são e o que fazem. A questão é o tipo de relação que mantemos com as pessoas. Qual é o papel que elas têm na nossa vida? Dos 150 amigos, apenas 15 podem ser qualificados como bons amigos. E, entre eles, somente cinco pertencem à categoria dos amigos íntimos, aqueles que procuramos quando estamos com problemas, pedimos conselhos e até dinheiro emprestado”, especificou, numa entrevista recente à revista brasileira Veja.
A teoria deste investigador voltou à ribalta a propósito da amplificação das “amizades” proporcionada pelas redes sociais. E, segundo Robin Dunbar, a limitação numérica para a manutenção de relações significativas manteve-se, independentemente de hoje em dia qualquer um poder acumular centenas de amigos no Facebook. “É interessante ver que uma pessoa pode ter 1500 amigos, mas, quando se olha para o tráfego nesses sites, percebe-se que essa pessoa mantém [interacções com] o mesmo círculo de 150 pessoas que observamos no mundo real”, sublinhou ao The Times.
Fazer novas amizades a partir da meia-idade torna-se complicado porque as pessoas já são mais exigentes, mais rígidas em relação ao que querem e ao que sentem, e, portanto, sob um certo ponto de vista, mais desconfiadas também
João Lopes
A amizade não se pede, faz-se
Declarado objector do Facebook (“Nem tenho conta criada”), o psicólogo João Lopes arrepia-se com o que declara ser a infantilidade da expressão “pedir amizade” celebrizada por aquela rede social. “É ridícula. A amizade não é uma coisa que se peça. A amizade faz-se e, é bom que se diga, até de forma particularmente selectiva, que é algo que as redes sociais frequentemente não permitem. É transpor para a idade adulta uma linguagem infantil, primária e até rude.”
De facto, dificilmente as amizades “facebookianas” terão o poder terapêutico daquelas que são cerzidas no dia-a-dia das pessoas, olhos nos olhos. E que não são poucas. Na mesma entrevista à Veja, Robin Dunbar alude aos diferentes estudos que comprovam que a interacção com os amigos é gatilho para a síntese de endorfina, a hormona que quando é libertada pelos neurónios alivia a dor e provoca uma sensação de felicidade. “A construção de relações de amizade ricas e duradouras está associada a uma série de benefícios para a saúde. Ajuda na prevenção de várias doenças – distúrbios cardiovasculares, depressão, Alzheimer, entre outras”, reforçou, concluindo que os efeitos positivos da amizade na saúde são tão grandes quanto parar de fumar.
São centenas os estudos que equiparam os benefícios da amizade na saúde aos do exercício físico e de uma boa alimentação. Numa leitura transversal que alguns investigadores norte-americanos fizeram a 148 estudos sobre mortalidade, envolvendo mais de 300 mil homens e mulheres de diferentes continentes, a conclusão dificilmente podia ser mais taxativa, segundo relata o portal de divulgação científica PLoS Medicine: o risco acrescido de morte em alguém que não tem uma rede de amigos é comparável ao risco que corre quem fuma até 15 cigarros ou ingere mais de seis bebidas alcoólicas por dia.
Por mais que o poder curativo da amizade esteja cientificamente sustentado, nem por isso se torna mais fácil a tarefa de fazer novos amigos na idade adulta. E, como se isso não bastasse, um estudo recente que juntou investigadores finlandeses e ingleses veio sustentar que começamos a perder amigos a partir dos 25 anos de idade. “A partir dessa idade, as pessoas focam-se mais em certas relações e em manter essas relações”, interpretou, em declarações à televisão norte-americana CNN, Kunal Bhattacharya, co-autora do estudo, que, a partir de análises aos dados de telemóvel de três milhões de pessoas, comprovou que o estreitamento do círculo de amizades coincide com momentos marcantes na trajectória das pessoas, como o casamento ou o nascimento de filhos, alturas em que a família e um círculo mais restrito de amigos são chamados a partilhar a tarefa de tomar conta das crianças. Outro estudo, conduzido pelo sociólogo Gerald Mollenhorst, concluiu algo parecido, a partir de premissas diferentes: a cada sete anos, cada pessoa perde cerca de metade dos seus amigos.
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Felizmente, além de quantificar o número de horas que são precisas para fazer novos amigos, a pesquisa de Jeffrey Hall concluiu também que os momentos de mudança na vida – divórcio, mudança de emprego ou de cidade… – são também aqueles em que as pessoas estão mais receptivas a estabelecer novas relações. “Está provado que a amizade se desenvolve mais facilmente logo após a relocalização geográfica ou a entrada num novo ambiente, seja escolar ou de trabalho. As pessoas parecem emparelhar com potenciais amigos logo após a transição.”
Para quem não mudou de cidade nem de escola, mas já deu por si a questionar o desperdício de tantas horas diante da Netflix ou a fazer scroll no Facebook outro bom ponto de partida poderá ser a inscrição em novas actividades. Voluntariado serve. E a simples inscrição num ginásio também pode ajudar. Aos que se preparam para iniciar esta dança, Nathan Belois deixa um conselho: “É mais fácil dizer do que fazer, mas penso que é mesmo importante estar aberto a tudo e a todos e tentar deixar os juízos pré-concebidos em casa.”

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