11.11.19

Governo prometeu 131 milhões para sem-abrigo. Câmaras de Lisboa e Porto receberam zero

Natália Faria, in Público on-line

Há meio ano, Governo prometeu investir milhões de euros na integração dos sem-abrigo até ao final de 2020, mas autarquias e associações dizem que, até agora, o dinheiro não chegou ao terreno. O Porto conta 140 pessoas a viver na rua e Lisboa cerca de 360. O ministério da Segurança Social diz que prestará contas no início de 2020.

Em Julho, o Governo prometeu investir até ao final do próximo ano 131 milhões de euros na integração dos sem-abrigo. Meio ano depois, o que foi feito? “Do lado do Governo, não há dinheiro a ser investido, nem por via das autarquias nem por via das associações”, sustentou ao PÚBLICO o vereador da Educação e dos Direitos Sociais da Câmara de Lisboa, Manuel Grilo. Do Porto, a resposta não é diferente: “Não chegou nada. Não foram alocados quaisquer recursos ao nível local por parte do Governo que deixou o esforço todo do lado da autarquia e das organizações não-governamentais”, precisou o vereador com o pelouro da Acção Social, Fernando Paulo.

Os vereadores não estão sozinhos. O director da Associação Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA), Nuno Jardim, garante também que “não se sentem grandes diferenças” no terreno. “As dificuldades em conseguir que os sem-abrigo tenham acesso à documentação de identificação, sem a qual não podem, por exemplo, inscrever-se num centro de saúde, continuam a ser muitas. E não existem camas em número suficiente”, acrescentou, numa crítica secundada ainda por Duarte Paiva, da Associação Conversa Amiga: “Desconhecemos onde é que esse dinheiro possa estar a ser aplicado ou por via de que mecanismo.”

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Do lado da Comunidade Vida e Paz, mais concretamente do director-geral, Henrique Joaquim, a percepção não destoa. “Quando foi anunciado o orçamento, questionámos o Governo e não obtivemos resposta”, afirmou, acrescentado que as principais dificuldades prendem-se com a falta de “respostas habitacionais adequadas aos diferentes tipos de situações diagnosticadas, desde a emergência, ao alojamento temporário ou de carácter definitivo”.

No plano de acção para 2019-2020, aprovado em Julho, e onde se prometiam os referidos 131 milhões de euros, previam-se acções tão diversas quanto a criação de um “gestor de caso” para cada sem-abrigo, a formação dos profissionais de saúde e o reforço das medidas de realojamento, num trabalho a articular com as autarquias. À Câmara do Porto, segundo Fernando Paulo, não chegou nem um cêntimo. Pelo contrário: “Escrevemos há um ano ao presidente do Instituto de Segurança Social por causa de uma candidatura ao ‘housing first’ e até hoje não obtivemos sequer uma resposta, o que é lamentável”, precisou, acrescentando que “também não aumentaram os ‘gestores de caso’ financiados pela Segurança Social” e que, aliás, “a autarquia continua à espera de ver criada a figura do ‘gestor de caso’ exclusivamente vocacionados para os sem-abrigo, à semelhança do que existe para o Rendimento Social de Inserção.

À Câmara de Lisboa, segundo Manuel Grilo, também não chegaram quaisquer apoios. “A câmara está a fazer um fortíssimo investimento nesta área mas o Governo também tem que ‘vir a jogo’, não pode negar a sua responsabilidade e deixar de financiar e investir nesta área”, insistiu, adiantando que vai exigir que o Governo aloque meios financeiros para os sem-abrigo, na reunião que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, convocou para o dia 18, para discutir o problema das pessoas que vivem na rua.

Esta iniciativa — recorde-se — enquadra-se no esforço que Marcelo Rebelo de Sousa tem feito para catapultar o problema dos sem-abrigo para a agenda mediática e que redundou, de resto, na criação da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo (ENIPSSA), criada em Maio de 2017 e com duração prevista até 2023. Ora, conclui Fernando Paulo, “se desta estratégia não resultarem recursos, os objectivos não serão cumpridos”.

Resposta aos sem-abrigo de Lisboa está estagnada
Ao PÚBLICO, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social esclareceu por escrito que “os 131 milhões de euros são o montante total de investimento previsto para o biénio 2019 e 2020, para concretizar o plano de acção que contempla 3 eixos, 20 objectivos estratégicos, 66 acções e 102 actividades”. O gabinete de Ana Mendes Godinho refere que “o plano está em execução no terreno” e que “a avaliação da execução dos planos de acção é feita anualmente, pelo que a avaliação da execução no ano de 2019 será feita no início de 2020”.
Explica ainda que “estes 131 milhões de euros contemplam as verbas para alocar a todas as entidades que desenvolvam respostas de intervenção específica com população sem-abrigo”. Sobre os “gestores de caso” o ministério responde que “existe desde 2018 em todos os centros de emprego do país um interlocutor específico para a população sem-abrigo, que é quem prioritariamente assegura a implementação da Estratégia e efectua o acompanhamento dos candidatos”.

Lisboa terá mais 145 casas para sem-tecto
No país, calcula-se que haja à volta de três mil pessoas sem-abrigo, estimativas feitas por alto por Nuno Jardim. No Porto, a autarquia conta actualmente 140 pessoas a viver “na rua, em espaços públicos ou locais precários”, num número que se eleva para as 560 pessoas se incluirmos os que, não tendo tecto, estão em alojamento temporário. Em Lisboa, o último levantamento contou 361 pessoas a viver na rua – esta contabilização não inclui os que, tendo estado a viver na rua, beneficiam actualmente de algum tipo de apoio habitacional. “Houve um ligeiro aumento relativamente ao ano anterior, mas, se recuarmos cerca de três anos, esta população diminuiu para perto de metade”, contabilizou Grilo.

Câmara de Lisboa quer tirar todos os sem-abrigo da rua até 2021
Ao PÚBLICO, o vereador anunciou que o orçamento municipal para 2020 inclui mais de um milhão de euros destinados a alargar o projecto “housing first”, um modelo de habitações individualizadas para pessoas que estejam há mais de dez anos a viver na rua. “Neste momento, há 80 casas dispersas pela cidade, geridas por duas associações que trabalham com sem abrigo que sofrem de doença mental e dependências, e a ideia é criar 145 novas casas destas”, especificou.

No Porto, como em Lisboa, muitos sem-abrigo chegam de fora. “Cerca de 44% das pessoas em situação de sem-tecto não são naturais da cidade”, concretiza a autarquia portuense. “É uma população muito flutuante e estão sempre a chegar novos sem-abrigo, nomeadamente porque há distribuição alimentar em toda a cidade”, corrobora Manuel Grilo. Segundo a Comunidade Vida e Paz, em Lisboa, verificou-se um aumento de pessoas a viver na rua nos últimos três meses. Mas “é importante ter mais algum tempo para confirmar se se trata de uma tendência ou apenas um período sazonal”, ressalvou Henrique Joaquim.