6.11.19

Um em cada cinco trabalhadores ganha o salário mínimo

Natália Faria, in Público on-line

O sector profissional do alojamento e restauração é aquele em que mais trabalhadores ganham os actuais 600 euros brutos do salário mínimo: 32,5%. Como se vive com um salário que, descontadas as contribuições para a Segurança Social, desce para os 504 líquidos? “Não se vive, emigra-se”.

Não há férias nem idas ao cinema. As refeições fora de casa e os brinquedos para o filho foram-se deixando só mesmo para “quando o rei faz anos e o rei passa muito tempo sem fazer anos”. Os sumos e as bolachas também começaram a rarear na despensa do T2 que Catarina Sousa, 32 anos e embaladora numa fábrica de edredons em Guimarães, partilha com o marido e o filho de quatro anos. “Para a renda de casa são 350 euros, mais 40 e poucos para a luz e gás, a água são 25 euros, e a creche 70”, enumera a empregada fabril quando o PÚBLICO lhe pergunta como se vive com os actuais 504 euros do salário mínimo nacional (são 600 euros brutos, aos quais os trabalhadores descontam a contribuição de 11% para a Segurança Social).

Àquelas despesas fixas, somam-se outras variáveis mas nem por isso dispensáveis. “Para o supermercado são 200 euros quase todas as semanas e outros duzentos para a gasolina, que é muito, mas o carro é de 1993 e não há dinheiro para comprar um mais poupado”, acrescenta, para explicar que, mesmo somando os seus 504 euros líquidos aos 504 euros do marido que também ganha o salário mínimo – num valor a que ambos somam os 2,5 euros que cada um recebe por dia como subsídio de refeição – o deve e haver doméstico não comporta, por exemplo, a factura de Internet. “Quando preciso, vou a casa da minha mãe e partilhamos a despesa”.
Apesar de trabalhar desde os 15 anos de idade, Catarina Sousa está com um contrato de três meses. O marido idem. “Nas empresas da zona é um ‘entra e sai’ de trabalhadores a cada três ou seis meses, porque às empresas interessam os subsídios que vão buscar à Segurança Social”. E, com tal instabilidade, não há, entre os 755,9 mil trabalhadores que, em Abril ganhavam o salário mínimo, segundo o Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, “como lutar por um salário melhor”. “Se país tratasse bem os seus trabalhadores, já estávamos há muito nos 850 euros”, defende Catarina. E como se vive então com o salário mínimo nacional? “Não se vive, emigra-se”, responde de rajada, para explicar que, com o seu contrato de trabalho a terminar no final deste mês, os planos de médio prazo passam por tentarem a sorte na Escócia. “Vai ter que ser, infelizmente”.

Alojamento e restauração são “campeões”
E quem são, afinal, os 755,9 mil trabalhadores portugueses que auferem os 600 euros brutos de salário por um trabalho a tempo inteiro? No sector em que Catarina trabalha, o da indústria transformadora, 25,8% dos trabalhadores recebem aquele mínimo. Mas o sector que soma a maior percentagem destes trabalhadores é o do “alojamento e restauração”: 32,5% - ainda assim abaixo dos 42,4% que se registavam em Abril de 2017, ainda segundo o GEP. Destacam-se ainda os sectores das “actividades administrativas e serviços de apoio”, com 28,1%, das “actividades de saúde humana e apoio social”, com 24,6%, da construção, com 23,7%, e da “captação, tratamento e distribuição de água”, com 21,6%.

No somatório dos trabalhadores portugueses por contra de outrem, 22,1% dos trabalhadores a tempo inteiro por conta de outrem ganhavam o salário mínimo nacional, em Outubro de 2018, contava o GEP. Esta percentagem tem variado muito: eram apenas 9,4% em 2010, ano em que o valor pago era de 475 euros brutos, estava nos 25,7% em Abril de 2017 (557 euros brutos). Isto acontece porque, se o salário mínimo aumenta e os outros não, “as pessoas imediatamente acima são ‘engolidas’ nesta categoria”, como lembra o investigador Frederico Cantante, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do Instituto Universitário de Lisboa.
Em Outubro do ano passado, estavam, portanto, nos referidos 22,1%. São mais mulheres do que homens (26,8% e 17,9%), respectivamente, o que demonstra que a desigualdade salarial não poupa as fasquias mais baixas dos rendimentos. Quanto a idades, entre os jovens com menos de 25 anos, a proporção de trabalhadores com salários iguais ao salário mínimo nacional “manteve-se próxima dos 30%”, ainda segundo o GEP, referindo-se ao primeiro trimestre deste ano. Já entre os 25 e os 29 anos de idade, 23,6% dos trabalhadores a tempo inteiro por conta de outrem ganhavam o salário mínimo. A proporção baixa para os 21,8% no universo dos trabalhadores com mais de 30 anos de idade.

Valorização de 14% em quatro anos
Nas contas do GEP, entre Abril de 2018 e Abril de 2019, houve menos 12 mil trabalhadores a declarar o salário mínimo. O que leva o Governo a concluir que o crescimento do emprego em 4,2% verificado no primeiro trimestre deste ano se traduziu na criação de postos de trabalho remunerados acima da remuneração mínima legal – instrumento criado em 1974. O objectivo então era duplo: “abrir caminho para a satisfação de justas e prementes aspirações das classes trabalhadoras e dinamizar a actividade económica”.
Mas nem sempre, ao longo destes 45 anos, os propósitos foram cumpridos. Entre meados de 2012 e meados de 2014, por exemplo, não houve aumentos do salário mínimo. A pretexto da presença da “troika” em Portugal, o valor manteve-se nos 485 euros brutos. E, no capítulo dedicado à pobreza e exclusão social, o próprio GEP reconhece que a taxa de risco de pobreza entre a população que trabalha se mantinha nos 9,7% em 2017. Teria sido pior se, entre 2016 e 2019, o salário mínimo nacional não tivesse aumentado perto de 19% em termos nominais, “o que se traduziu numa valorização real próxima dos 14%”.

Ministra do Trabalho confiante num acordo sobre salário mínimo para 2020

Governo aposta no aumento do salário mínimo já, acordo de rendimentos fica para depois
“A relação entre risco de pobreza e salário mínimo não é linear, até porque a taxa de risco de pobreza é calculada em termos de agregado enquanto o salário se refere ao indivíduo, mas é verdade que, num país em que os salários representam entre 75% a 80% dos rendimentos dos agregados, o salário mínimo pode ser um instrumento decisivo no combate à pobreza”, enfatiza Frederico Cantante. Para o investigador, é “absolutamente necessário” que o país continue a aumentar o salário mínimo de forma “gradual mas ambiciosa”. “Penso que há espaço para se ser um bocadinho mais ambicioso do que os 635 euros”, considera.

E justifica: “Um dos pontos positivos da anterior legislatura é que permitiu constatar que o aumento do salário mínimo em quantias relativamente consideráveis não teve como impacto directo o aumento do desemprego e a diminuição do emprego, como tinha sido veiculado no tempo da ‘troika’ e do governo liderado por Pedro Passos Coelho.”. Acresce que “o aumento do salário mínimo tende ainda a fazer com que os trabalhadores que ganhem um pouco acima sejam também beneficiados, porque independentemente da negociação colectiva, algumas empresas sentem-se obrigadas, até como forma de atraírem os trabalhadores, a pagar um pouco acima do salário mínimo”.

Na óptica de Carvalho da Silva, sociólogo e ex-líder da CGTP, para além da discussão “sempre importante” do salário mínimo, o país precisa é de mudar o seu perfil económico. “Houve uma política de desvalorização do trabalho em nome da competitividade cujos resultados são agora visíveis na fuga da mão-de-obra qualificada. Se tivermos um salário mínimo de 750 euros em 2023 mas a Espanha chegar entretanto aos 1300 ou 1400 euros, o problema vai-se manter”, alerta, para sublinhar que, “sem políticas de mobilidade e de transportes e de acesso à saúde, por exemplo, o país continuará a ver fugir a sua mão-de-obra qualificada”.
A esperança de Catarina Sousa e do marido é que na Escócia o filho possa ter acesso a outro mundo que não seja o de tostões contados até ao limite todos os meses. “Eu estudei até ao 12º ano, fui subchefe, tenho currículo e a língua inglesa não me atrapalha nada, se não me deixam viver com dignidade cá, saio”, resigna-se a operária.