19.4.23

Só plenos direitos podem garantir “resiliência demográfica”

Patrícia Carvalho, in Público



Relatório do Fundo das Nações Unidas para a População defende que não se deve tentar mudar a natalidade para se adaptar às preferências dos Estados.


O relatório sobre o estado da população mundial, do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA, na sigla britânica) parte do marco dos oito mil milhões de habitantes, que o mundo atingiu no ano passado, para deixar uma recomendação clara: devemos deixar de questionar se somos demasiados ou demasiado poucos, mas começar a perguntar se estamos a dar condições às pessoas para que realizem os seus desejos de fertilidade, com particular enfoque nas mulheres. Muitos países ainda “procuram soluções demográficas, em vez de procurar responder aos desafios criadas pelas mudanças demográficas”, e isso está errado, diz-se no relatório Oito mil milhões de vidas, infinitas possibilidades, que é divulgado esta quarta-feira.

Estamos em plena mudança demográfica e somos mais do que alguma vez fomos, mas dois terços das pessoas vivem em regiões do planeta com uma taxa de fertilidade neutra ou negativa e a taxa de crescimento da população desacelerou desde a década de 1950. Além disso, dois terços do crescimento projectado até 2050 serão alimentados pelo “momentum” actual, ou seja, pelas pessoas que já existem e que viverão mais tempo do que há algumas décadas. Junte-se a isto o facto de metade do crescimento projectado até meados do século ficar sob a responsabilidade de apenas oito países - República Democrática do Congo, Egipto, Etiópia, Índia, Nigéria, Paquistão, as Filipinas e a Tanzânia (sim, não está aqui a China) - e percebe-se que a configuração populacional mundial será muito diferente daquilo que conhecíamos.

Sermos mais é, defende a directora executiva do UNFPA, Natalia Kanem, “razão para celebrar”, já que é sinal de que vivemos mais tempo e de que há mais crianças a sobreviver à infância. E para todos os que se sentem preocupados com o actual cenário da população, a responsável deixou uma mensagem clara, numa conferência de imprensa de antecipação do relatório, na semana passada: “A desigualdade é a questão central. A reprodução humana deve ser uma escolha. Os direitos reprodutivos são centrais para as questões da população e podem ser um mundo de infinitas possibilidades”, disse. Ou, de forma mais simples ainda: “Apoiem as mulheres, não direccionem as suas escolhas.”

Esta ideia atravessa todo o relatório, acompanhada de um conjunto de dados que nos mostram que, em muitos locais do globo, os direitos das mulheres ainda continuam por cumprir no que diz respeito à sua autonomia sexual e reprodutiva. Citando um inquérito com dados de 68 países, o documento mostra que, entre as mulheres com parceiros, “24% não consegue negar-se a ter sexo, 25% não pode tomar decisões sobre a sua própria saúde e 11% não pode decidir especificamente sobre a contracepção”. Tudo somado, lê-se no documento, “isto significa que apenas 56% das mulheres podem tomar decisões sobre os seus direitos sexuais e de saúde reprodutiva”.

Outros dados presentes no relatório indicam ainda que quase metade das gravidezes não foram planeadas; quase um terço das mulheres de países com rendimentos médios e baixos começam a maternidade na adolescência; 13,2% das mulheres em idade reprodutiva que querem evitar ou atrasar uma gravidez não estão a usar um método contraceptivo moderno e que em 2021 ainda houve meio milhão de bebés a nascer de mães que tinham entre 10 e 14 anos. Junte-se a indicação de que “demasiadas mulheres em todo o mundo não conseguem alcançar as suas aspirações reprodutivas” e está aberto o caminho para a solução apresentada.

“A melhor ferramenta para gerir as mudanças populacionais e construir sociedades resilientes é desenvolver a igualdade de género. À medida que desenvolvemos o potencial das mulheres, dando-lhes o poder para fazer escolhas sobre os seus corpos e vidas, elas e as suas famílias prosperam - e as suas sociedades também”, defende-se no documento.

Liberdade para decidir

Ou seja, às mulheres deve ser dado, antes de mais, a liberdade para decidir se querem ter filhos, quantos e quando os querem ter. Para isso é preciso que tenham educação, liberdade de escolha, acesso a métodos contraceptivos, igualdade no acesso ao trabalho e na distribuição das tarefas de casa. Exemplos? O relatório dá o da Coreia do Sul, que tem a taxa de fertilidade mais baixa do mundo, 0.81. Num país em que os filhos só nascem, praticamente, dentro do casamento, o número de crianças tem vindo a decair devido à conjugação de alguns factores: cerca de 72% das mulheres têm um curso universitário e estão a adiar a idade em que casam porque o casamento significa, para muitas, abandonar a carreira e dedicar-se a cuidar dos filhos. Algo que não estão dispostas a fazer.
Por outro lado, na Etiópia (taxa de fertilidade de 4.0), cerca de 7% das mulheres estão a usar contraceptivos às escondidas, porque com três ou quatro filhos, não querem ter mais, mas os maridos não lhes permitem essa escolha. A responsável do UNFPA disse mesmo que “a proporção de mulheres capazes de atingir as suas aspirações de fertilidade nos países de médio e baixo rendimento é de apenas um quarto”.

Entre as várias razões para querer ter menos filhos, surgem, amiúde, as preocupações com as alterações climáticas, embora, sublinha Natalia Kanem, seja “uma falácia” pensar que o crescimento da população é responsável pela emergência climática. “Apenas 10% da população é responsável por metade das emissões de gases com efeito de estufa. Os países com maior fertilidade são os que contribuem menos para o aquecimento global e os que mais sofrem com os seus impactos. Uma mulher no Sahel com sete filhos não terá impacto nas alterações climáticas, mas ela e a sua comunidade vão experienciar algumas das subidas mais rápidas da temperatura do mundo”, exemplificou.

O que o UNFPA recomenda aos governos e parceiros é que procurem obter “resiliência demográfica”. Ou seja, que olhem para os dados demográficos que têm em mãos e para as projecções existentes e procurem adaptar-se ao que aí vem. Não com medidas direccionadas a influenciar o número de nascimentos - como restrições ao aborto ou retirando as mulheres do mercado de trabalho -, mas garantindo a igualdade de género e os direitos básicos para todos, permitindo que a população mundial evolua de acordo com as aspirações de cada um dos seus cidadãos.