Texto de Nina Vigon Manso, in Público on-line (P3)
Qual a diferença entre o coração e cabeça de uma mãe/pai heterossexual, gay, lésbica ou trans? E na vida familiar? O que corre na veia destas pessoas? Fel, enxofre?
Homoparentalidade, Heteroparentalidade: Parentalidade. Ponto. Claro? Não para todas as cabeças. No que diz respeito aos projectos-lei chumbados esta quinta-feira na Assembleia da República, existem várias cabeças e sentenças. Chega a existir mais do que uma sentença numa só cabeça. Ou cabeça de partido. Ou governo. Há frases que marcam. “Deixem-nos trabalhar.” “Já estamos fartos de debater este assunto, não é uma prioridade, é fracturante”. Ou, das minhas preferidas e ancestral: “Olhe que não.” De facto, tudo é fracturante e enfastiante quando, desde o primeiro momento, deveria ter sido evidente e irrefutável.
Ora, vejamos: procriação medicamente assistida, adopção e apadrinhamento civil por casais do mesmo sexo (a reter: "Casais"), eliminação da impossibilidade legal de adopção por casais do mesmo sexo (a reter: "Casais), alargamento do âmbito dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida, eliminação das discriminações no acesso à adopção e apadrinhamento civil (a reter: "Adopção e Apadrinhamento") e demais relações jurídicas familiares com capacidade para adopção (a reter: "Familiares"). Leiam-se as letras obesamente claras: Parentalidade, Casais, Famílias.
Fácil de entender? Sim. Difícil não ser entendido e respeitado? Muito. Fala-se de crianças e brinca-se com as suas vidas, meros instrumentos de jogos de poder? Expliquem-me como se eu tivesse seis anos e não entendesse porque sou discriminada para mais tarde não ser discriminada. Das duas mães ou dois pais, só se pode ser filha ou filho de uma das partes? Existem meios-filhos, meias-crianças, meio-pai e meia-mãe? Em casa somos família, na escola e no médico é um caso particular? Um projecto-lei? Qual a diferença entre o coração e cabeça de uma mãe/pai heterossexual, gay, lésbica ou trans? E na vida familiar? O que corre na veia destas pessoas? Fel, enxofre? Sangue. Amais o próximo ou o mais aproximado?
Citando Isabel Fiadeiro Advirta, Presidente da ILGA, “As realidades vão sempre ser mais fortes do que o preconceito: as muitas crianças que já estão ser criadas por casais do mesmo sexo em Portugal são uma das melhores fontes desta certeza.” Diz Advirta, a vocação parental não desaparece por decreto. Concordo em absoluto com as suas palavras, actos e sentimentos: "(...) é mesmo o amor que faz uma família".
Fiquem com a vossa paz ou compartilhem a nossa paz. Não queiram dizer a uma família do que esta é ou não capaz. Fartos de debater? Também as famílias portuguesas sem excepção. “Deixo-vos em paz mas não vos dou a minha paz”. É essa a luta das famílias homoparentais. Deveria ter chegado o dia de deixar de discriminar e de descriminar quem tem, desrespeitosamente, discriminado. E fracturado.
Mostrar mensagens com a etiqueta Co-adoçao. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Co-adoçao. Mostrar todas as mensagens
4.4.14
Estudar as famílias lésbicas portuguesas para lhes dar voz
Texto de Amanda Ribeiro, in Público on-line (P3)
No seu doutoramento, Tânia Machado está a investigar a homoparentalidade no feminino. Depois do chumbo da co-adopção, a investigadora aponta para a fragilidade do papel destas mulheres: "Ajudaria na constituição da sua identidade maternal"
Procuram-se casais de mulheres — juntas, em união de facto ou casadas — que tenham a cargo filhos conjuntamente planeados, para aquele que será o “primeiro projecto de investigação que se foca especificamente nas famílias lésbicas planeadas em Portugal”, diz a socióloga Tânia Machado, apresentando o seu projecto de doutoramento.
Porque, em termos científicos e académicos, há uma “lacuna” no estudo da homoparentalidade em Portugal. Porque, em termos práticos, “é necessário dar visibilidade e voz a estas famílias”, saber se são discriminadas para saber como intervir. Além de que um estudo como este reforça o sentimento de comunidade destas famílias: "Elas podem ver que há outras iguais a elas, que não estão isoladas, que não são só elas que vivem aquele tipo de situação, boa ou má. (...) Que não são as únicas."
Em 2012, antes do chumbo da co-adopção, da ameaça de referendo e de todos os volte-faces que têm rodeado o tema, Tânia, que desde a licenciatura se tem dedicado ao estudo do género e da sexualidade, em particular à realidade das lésbicas, candidatou-se à bolsa de doutoramento da FCT com o projecto “Representações das mães lésbicas sobre a maternidade lésbica e estratégias de gestão da identidade maternal deteriorada” — o termo "deteriorada", um conceito da Sociologia, refere-se à discriminação em função de alguma característica não normativa, neste caso, a identidade sexual — guiada por dois grandes objectivos.
A socióloga de 26 anos, a frequentar o doutoramento na Universidade do Minho, quer perceber como é que elas se percepcionam, enquanto progenitoras e homossexuais, num contexto social “onde o seu estatuto maternal e a sua estrutura familiar ainda não são normativos”. Por outro lado, vai analisar como é que gerem a sua identidade maternal em interacção com quatro redes de sociabilidade: famílias de origem, amigos, vizinhos e colegas de trabalho ou empregadores. Isto é, como é que se apresentam, se assumem a sua identidade familiar, como é que interagem quotidianamente, e quais são as reacções dos interlocutores.
Co-adopção: pela identidade maternal
Num momento em que não existe enquadramento legal para estas famílias, Tânia aponta para a fragilidade da posição destas mulheres, principalmente daquelas que não dão à luz ou que não são as adoptantes (em Portugal, só a adopção singular está acessível a um homossexual). “Para além de não terem um reconhecimento social e legal, não existe um termo consensual que a defina e que defina o seu papel no seio da família. Fica num limbo em que não sabe o que é. Há uma ambiguidade identitária complicada e que a co-adopção ajudaria, de certa forma, a resolver. Ajudaria na constituição da sua identidade maternal.”
O estudo vai incidir apenas em mulheres por limitações académicas, mas também porque para elas é, por razões biológicas, mais fácil conseguirem concretizar a maternidade. Tânia, que espera concluir o doutoramento em 2016, está agora na fase de trabalho de campo, realizando entrevistas às interessadas. As informações recolhidas são confidenciais e é garantido o anonimato. Todas as mulheres que reúnam as condições solicitadas podem participar. Mais esclarecimentos disponíveis no site do projecto: Famílias Lésbicas Portuguesas.
No seu doutoramento, Tânia Machado está a investigar a homoparentalidade no feminino. Depois do chumbo da co-adopção, a investigadora aponta para a fragilidade do papel destas mulheres: "Ajudaria na constituição da sua identidade maternal"
Procuram-se casais de mulheres — juntas, em união de facto ou casadas — que tenham a cargo filhos conjuntamente planeados, para aquele que será o “primeiro projecto de investigação que se foca especificamente nas famílias lésbicas planeadas em Portugal”, diz a socióloga Tânia Machado, apresentando o seu projecto de doutoramento.
Porque, em termos científicos e académicos, há uma “lacuna” no estudo da homoparentalidade em Portugal. Porque, em termos práticos, “é necessário dar visibilidade e voz a estas famílias”, saber se são discriminadas para saber como intervir. Além de que um estudo como este reforça o sentimento de comunidade destas famílias: "Elas podem ver que há outras iguais a elas, que não estão isoladas, que não são só elas que vivem aquele tipo de situação, boa ou má. (...) Que não são as únicas."
Em 2012, antes do chumbo da co-adopção, da ameaça de referendo e de todos os volte-faces que têm rodeado o tema, Tânia, que desde a licenciatura se tem dedicado ao estudo do género e da sexualidade, em particular à realidade das lésbicas, candidatou-se à bolsa de doutoramento da FCT com o projecto “Representações das mães lésbicas sobre a maternidade lésbica e estratégias de gestão da identidade maternal deteriorada” — o termo "deteriorada", um conceito da Sociologia, refere-se à discriminação em função de alguma característica não normativa, neste caso, a identidade sexual — guiada por dois grandes objectivos.
A socióloga de 26 anos, a frequentar o doutoramento na Universidade do Minho, quer perceber como é que elas se percepcionam, enquanto progenitoras e homossexuais, num contexto social “onde o seu estatuto maternal e a sua estrutura familiar ainda não são normativos”. Por outro lado, vai analisar como é que gerem a sua identidade maternal em interacção com quatro redes de sociabilidade: famílias de origem, amigos, vizinhos e colegas de trabalho ou empregadores. Isto é, como é que se apresentam, se assumem a sua identidade familiar, como é que interagem quotidianamente, e quais são as reacções dos interlocutores.
Co-adopção: pela identidade maternal
Num momento em que não existe enquadramento legal para estas famílias, Tânia aponta para a fragilidade da posição destas mulheres, principalmente daquelas que não dão à luz ou que não são as adoptantes (em Portugal, só a adopção singular está acessível a um homossexual). “Para além de não terem um reconhecimento social e legal, não existe um termo consensual que a defina e que defina o seu papel no seio da família. Fica num limbo em que não sabe o que é. Há uma ambiguidade identitária complicada e que a co-adopção ajudaria, de certa forma, a resolver. Ajudaria na constituição da sua identidade maternal.”
O estudo vai incidir apenas em mulheres por limitações académicas, mas também porque para elas é, por razões biológicas, mais fácil conseguirem concretizar a maternidade. Tânia, que espera concluir o doutoramento em 2016, está agora na fase de trabalho de campo, realizando entrevistas às interessadas. As informações recolhidas são confidenciais e é garantido o anonimato. Todas as mulheres que reúnam as condições solicitadas podem participar. Mais esclarecimentos disponíveis no site do projecto: Famílias Lésbicas Portuguesas.
1.4.14
Se for pelas crianças, pode ser. Pelos homossexuais, valha-nos deus, nem pensar
Texto de João Labrincha, in Público on-line (P3)
Eu sou intolerante com a intolerância: é tempo de apontar os dedos a quem atenta contra o direito constitucional (e humano) da igualdade
A filósofa Hannah Arendt explica que, quando as elites pensantes (e nestas incluo os nossos deputados - mas não todos) têm atitudes autoritárias ou discriminatórias, logo os fascistazinhos de esquina se sentem legitimados a sair da toca. Envergam a espada ideológica de uma suposta cruzada em nome da sociedade que, dizem, desmoronará caso o superior interesse da criança seja maculado pela proximidade de alguém com uma orientação não-heterossexual. Agem segundo o que acreditam ser o seu dever, cumprindo ordens superiores (divinas, em algumas das suas alucinações pseudo-religiosas), movidos pelo desejo de ascender na carreira profissional-política, como o jota Hugo Soares ou, simplesmente, por desejarem notoriedade na comunicação social ou no seu bairro. A isto chama-lhe banalização do mal.
Educação moralista, machista e católica
Acredito que algumas pessoas o façam pela educação moralista, machista e católica que tiveram. Mas também é essa educação o motivo que leva alguns homens a espancar as esposas e namoradas porque se atreveram a colocar um pé fora de casa ou porque trocaram um olhar com outra pessoa. Devemos desculpabiliza-los? Nunca! Eu sou intolerante com a intolerância: é tempo de apontar os dedos a quem atenta contra o direito constitucional (e humano) da igualdade. Porque a teoria de que se é mais democrático por aceitar atos e ditos anti-democráticos ou fascistas é isso mesmo: fascista.
Por isso, quando vejo argumentações como a de que a possibilidade de coadoção em famílias homoafetivas não serve exclusivamente para defender as crianças mas que tem o “pecado” de reconhecer direitos a homossexuais, como se tal fosse uma coisa negativa, não posso deixar de me indignar. Sim, serviria para proteger as crianças e, sim, serviria para colocar os homossexuais portugueses ao lado de todos os outros na Europa Ocidental e noutros países democráticos do Mundo. Em pé de igualdade com as outras pessoas, independentemente da sua orientação sexual.
Pugnar pelos Direitos Humanos, de adultos ou de crianças, não deveria ser um problema. Deveria ser um orgulho e um ato diário, com as nossas famílias, nas escolas ou locais de trabalho.
Desta vez não passou a legislação que permitia o reconhecimento da dignidade de famílias que já existem de facto, por muito poucos votos no Parlamento. E assim permanecemos ao lado de países como a Rússia, o Uganda e a China ao não permitir que, por exemplo, os filhos herdem bens, ou que pais e mães de toda uma vida não possam assumir as responsabilidades parentais em caso de morte do outro cônjuge. O que continuará a acontecer é, portanto, a possibilidade de crianças que já têm uma família poderem, de um momento para o outro, perde-la e serem entregues a familiares longínquos ou até a instituições sociais. E, nos adultos, a manutenção de uma discriminação legal que insulta, descredibiliza e acusa pessoas de não terem dignidade para serem responsáveis por cuidar de crianças – de que sempre cuidaram - apenas porque têm uma orientação não-heterossexual. Prejudicar seres humanos, sejam crianças ou adultos, com base numa suposta superioridade moral imaculada dos heterossexuais é, para mim, extremamente desumano.
Eu sou intolerante com a intolerância: é tempo de apontar os dedos a quem atenta contra o direito constitucional (e humano) da igualdade
A filósofa Hannah Arendt explica que, quando as elites pensantes (e nestas incluo os nossos deputados - mas não todos) têm atitudes autoritárias ou discriminatórias, logo os fascistazinhos de esquina se sentem legitimados a sair da toca. Envergam a espada ideológica de uma suposta cruzada em nome da sociedade que, dizem, desmoronará caso o superior interesse da criança seja maculado pela proximidade de alguém com uma orientação não-heterossexual. Agem segundo o que acreditam ser o seu dever, cumprindo ordens superiores (divinas, em algumas das suas alucinações pseudo-religiosas), movidos pelo desejo de ascender na carreira profissional-política, como o jota Hugo Soares ou, simplesmente, por desejarem notoriedade na comunicação social ou no seu bairro. A isto chama-lhe banalização do mal.
Educação moralista, machista e católica
Acredito que algumas pessoas o façam pela educação moralista, machista e católica que tiveram. Mas também é essa educação o motivo que leva alguns homens a espancar as esposas e namoradas porque se atreveram a colocar um pé fora de casa ou porque trocaram um olhar com outra pessoa. Devemos desculpabiliza-los? Nunca! Eu sou intolerante com a intolerância: é tempo de apontar os dedos a quem atenta contra o direito constitucional (e humano) da igualdade. Porque a teoria de que se é mais democrático por aceitar atos e ditos anti-democráticos ou fascistas é isso mesmo: fascista.
Por isso, quando vejo argumentações como a de que a possibilidade de coadoção em famílias homoafetivas não serve exclusivamente para defender as crianças mas que tem o “pecado” de reconhecer direitos a homossexuais, como se tal fosse uma coisa negativa, não posso deixar de me indignar. Sim, serviria para proteger as crianças e, sim, serviria para colocar os homossexuais portugueses ao lado de todos os outros na Europa Ocidental e noutros países democráticos do Mundo. Em pé de igualdade com as outras pessoas, independentemente da sua orientação sexual.
Pugnar pelos Direitos Humanos, de adultos ou de crianças, não deveria ser um problema. Deveria ser um orgulho e um ato diário, com as nossas famílias, nas escolas ou locais de trabalho.
Desta vez não passou a legislação que permitia o reconhecimento da dignidade de famílias que já existem de facto, por muito poucos votos no Parlamento. E assim permanecemos ao lado de países como a Rússia, o Uganda e a China ao não permitir que, por exemplo, os filhos herdem bens, ou que pais e mães de toda uma vida não possam assumir as responsabilidades parentais em caso de morte do outro cônjuge. O que continuará a acontecer é, portanto, a possibilidade de crianças que já têm uma família poderem, de um momento para o outro, perde-la e serem entregues a familiares longínquos ou até a instituições sociais. E, nos adultos, a manutenção de uma discriminação legal que insulta, descredibiliza e acusa pessoas de não terem dignidade para serem responsáveis por cuidar de crianças – de que sempre cuidaram - apenas porque têm uma orientação não-heterossexual. Prejudicar seres humanos, sejam crianças ou adultos, com base numa suposta superioridade moral imaculada dos heterossexuais é, para mim, extremamente desumano.
20.1.14
Não sei o que é pior
Texto de José Soeiro, Público on-line
No meio dos jogos que os partidos fazem, dos fantasmas que os preconceitos agitam, das cruzadas por que os moralistas salivam, é bom não esquecer que é disto que trata a política que conta: da vida, concreta
Não me lembro da última vez em que, perante uma decisão do Parlamento, senti os olhos ficarem molhados. A razão é simples: como muitos, conheço a Fabíola, sei quem são os dois filhos que tem com a companheira, tinha lido a carta que escrevera aos deputados. A Fabíola explicava isto que qualquer coração percebe: estando com um cancro, sente o sobressalto que qualquer um de nós sentiria na mesma situação. Criou com a sua companheira, desde a gravidez, duas crianças. Se o pior acontecesse, as crianças não teriam o direito a que a outra pessoa com quem sempre viveram – que é sua mãe, portanto – fosse reconhecida como tal.
No meio dos jogos que os partidos fazem, dos fantasmas que os preconceitos agitam, das cruzadas por que os moralistas salivam, é bom não esquecer que é disto que trata a política que conta: da vida, concreta. Da vida da Fabíola e dos seus filhos, da vida de outras pessoas. De regras colectivas que nos respeitem, que não nos tornem dependentes dos preconceitos, da caridade ou da vontade arbitrária dos outros. Respeito – é tão simples quanto isto.
Relativamente à decisão do PSD — aprovada no Parlamento — de propor a realização de um referendo sobre a co-adoção, torna-se difícil distinguir o que é pior. Se é o desprezo pelas crianças concretas que vivem hoje com casais do mesmo sexo, e que vêem impedido o direito a que a sua família seja reconhecida. Se é a mesquinhez de usar um expediente parlamentar para abortar uma iniciativa legislativa positiva que estava em marcha e que o parlamento já tinha aprovado, que tornaria Portugal um pouco mais decente. Se é o facto de se instrumentalizar de forma oportunista este debate para criar uma manobra de diversão relativamente à violência quotidiana das medidas do Governo.
Não sei se neste caso o pior é a contradição gritante entre o discurso de sempre segundo o qual o reconhecimento de direitos em tempo de crise “não é prioridade” e o discurso de circunstância segundo o qual lançar o país num referendo para negar e restringir direitos é normal e aceitável. Se é, não esqueçamos, o miserável papel a que se prestou um grupo de “jotários” social-democratas ao serviço da direção do seu partido. Ou se é, por fim, a ignorância fazer-se argumento e a aversão à diferença fazer-se princípio político. É difícil, de facto, perceber o que é pior. Talvez o pior seja mesmo conseguir concentrar, numa proposta e numa decisão, tanta degradação, tanta pequenez e tanta maldade.
Nos últimos anos, contra as vozes conservadoras à Direita, contra a vontade do actual Presidente, demos passos nos direitos civis. Foi aliás dos poucos domínios em que andámos para a frente e não para trás. O referendo agora proposto quer pôr-nos a viajar para o passado e quer transformar o país numa discussão mesquinha contra alguns cidadãos.
Contrariando a homofobia que persiste, o desamor pelas famílias concretas e a vontade de lançar o país num referendo que o povo não quer, estou certo que haverá uma maioria de bom senso na sociedade portuguesa. É bom que ela se organize. Essa maioria falará com todas as vozes que a compõem — e será capaz, estou certo, de travar isto. Basta não ficarmos quietos.
No meio dos jogos que os partidos fazem, dos fantasmas que os preconceitos agitam, das cruzadas por que os moralistas salivam, é bom não esquecer que é disto que trata a política que conta: da vida, concreta
Não me lembro da última vez em que, perante uma decisão do Parlamento, senti os olhos ficarem molhados. A razão é simples: como muitos, conheço a Fabíola, sei quem são os dois filhos que tem com a companheira, tinha lido a carta que escrevera aos deputados. A Fabíola explicava isto que qualquer coração percebe: estando com um cancro, sente o sobressalto que qualquer um de nós sentiria na mesma situação. Criou com a sua companheira, desde a gravidez, duas crianças. Se o pior acontecesse, as crianças não teriam o direito a que a outra pessoa com quem sempre viveram – que é sua mãe, portanto – fosse reconhecida como tal.
No meio dos jogos que os partidos fazem, dos fantasmas que os preconceitos agitam, das cruzadas por que os moralistas salivam, é bom não esquecer que é disto que trata a política que conta: da vida, concreta. Da vida da Fabíola e dos seus filhos, da vida de outras pessoas. De regras colectivas que nos respeitem, que não nos tornem dependentes dos preconceitos, da caridade ou da vontade arbitrária dos outros. Respeito – é tão simples quanto isto.
Relativamente à decisão do PSD — aprovada no Parlamento — de propor a realização de um referendo sobre a co-adoção, torna-se difícil distinguir o que é pior. Se é o desprezo pelas crianças concretas que vivem hoje com casais do mesmo sexo, e que vêem impedido o direito a que a sua família seja reconhecida. Se é a mesquinhez de usar um expediente parlamentar para abortar uma iniciativa legislativa positiva que estava em marcha e que o parlamento já tinha aprovado, que tornaria Portugal um pouco mais decente. Se é o facto de se instrumentalizar de forma oportunista este debate para criar uma manobra de diversão relativamente à violência quotidiana das medidas do Governo.
Não sei se neste caso o pior é a contradição gritante entre o discurso de sempre segundo o qual o reconhecimento de direitos em tempo de crise “não é prioridade” e o discurso de circunstância segundo o qual lançar o país num referendo para negar e restringir direitos é normal e aceitável. Se é, não esqueçamos, o miserável papel a que se prestou um grupo de “jotários” social-democratas ao serviço da direção do seu partido. Ou se é, por fim, a ignorância fazer-se argumento e a aversão à diferença fazer-se princípio político. É difícil, de facto, perceber o que é pior. Talvez o pior seja mesmo conseguir concentrar, numa proposta e numa decisão, tanta degradação, tanta pequenez e tanta maldade.
Nos últimos anos, contra as vozes conservadoras à Direita, contra a vontade do actual Presidente, demos passos nos direitos civis. Foi aliás dos poucos domínios em que andámos para a frente e não para trás. O referendo agora proposto quer pôr-nos a viajar para o passado e quer transformar o país numa discussão mesquinha contra alguns cidadãos.
Contrariando a homofobia que persiste, o desamor pelas famílias concretas e a vontade de lançar o país num referendo que o povo não quer, estou certo que haverá uma maioria de bom senso na sociedade portuguesa. É bom que ela se organize. Essa maioria falará com todas as vozes que a compõem — e será capaz, estou certo, de travar isto. Basta não ficarmos quietos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)