André Borges Vieira, in Público
Em apenas um dia, do zero, um grupo de pessoas em risco de exclusão social monta uma peça que é apresentada no mesmo dia no Clube Fenianos Portuenses. Até ao final do ano há mais duas sessões.Ana, Emílio e João não se conheciam até há pouco tempo, mas, sem saberem, já partilhavam algo em comum. Todos eles têm um sonho que ainda não concretizaram. Todos eles estão agora a persegui-lo. O objectivo é alcançá-lo. São de três gerações diferentes. Por ordem, têm 44, 60 e 26 anos. Nasceram em localidades diferentes e têm histórias de vida distintas – todas elas com percalços que os fizeram desviar-se do foco. Encontraram-se no Porto, num palco, para cumprirem o sonho de entrarem no mundo do espectáculo, mais concretamente o das artes performativas.
A abrir mais uma porta para essa oportunidade está o Clube Fenianos Portuenses (CFP), através de uma das várias actividades do projecto INCukTurar-te, cujo motor é trabalhar contra a exclusão social através da cultura. Este exemplo no Porto é um dos muitos que são financiados no país inteiro, no âmbito do programa Cultura Para Todos.
No centro de uma das salas do clube fundado em 1904, Ana, que responde também pelo nome Black Rose, reage a uma deixa entregue por um colega de palco que indaga sobre sonhos. Seguindo o guião da peça que se ensaia, a actriz amadora diz que sempre quis ser bailarina. Qualquer semelhança do texto deste enredo com a realidade não é mera coincidência. Quando o PÚBLICO visitou o espaço ensaiava-se a peça É, com direcção artística da Apuro Associação Social e Cultural (que também dirige esta actividade do CFP), que já passou pelo palco e é baseada na história pessoal de cada um dos protagonistas.
Este exercício serviu apenas de aquecimento para o grupo de pouco mais de uma dezena de pessoas aspirantes a actores. O desafio maior ainda estava por chegar. No âmbito da actividade Ateliers de Criação do CFP, em apenas um dia, do zero, o elenco tem de escrever, preparar, ensaiar e apresentar ao vivo um espectáculo para um público que não paga bilhete.
O grupo é composto maioritariamente por pessoas que já estiveram em situação de sem-abrigo. Todos eles correm o risco de exclusão. Nessa situação está Ana, que actualmente vive num albergue. Nasceu em Esmoriz, mas há uns meses mudou-se para o Porto, por força de circunstâncias pessoais que a obrigaram a seguir esse rumo. Conheceu o projecto dos Fenianos no sítio onde está temporariamente alojada e quando lhe perguntaram se queria participar não hesitou: “Disse logo que sim.”
Na sua deixa do texto que interpretava naquele dia dizia que queria ser bailarina, mas também tem o sonho de poder seguir “o canto e a representação”. Conta que chegou a ter aulas de dança contemporânea e de salão. Cantar só acontece em “uns karaokes”. Como actriz, até há bem pouco tempo, só tinha feito “duas peças quando andava no liceu”.
“A minha vida foi sempre um bocadinho travada nestes sonhos. Os meus pais não queriam muito que eu ingressasse nisto. Diziam que era para os ricos. Fui adiando. Os anos foram passando, fui mãe e fui ficando para trás”, afirma. “Agora, tenho asas para voar”, acredita.
Participar neste ateliê criativo é, sobretudo, uma via para a integração social, depois de um passado turbulento que a fez mudar de cidade. E parece estar a resultar: “Isto é uma família que nós temos aqui.”
Do sítio onde está agora olha para o futuro com optimismo. Actualmente, está desempregada, mas o objectivo é, aos poucos, organizar a sua vida até conseguir recuperar a independência financeira. “Neste momento quero dar o salto, quero ir para uma casa. Mas não estou a conseguir porque há muitos entraves”, conta. “Por agora vou-me ocupando e isso vai-me trazendo alguma esperança”, diz.
Dar a volta por cima
Já com alguma experiência (recente) de palco, Emílio Costa, nascido no bairro da Pasteleira está como peixe na água nesta actividade. E também está completamente à vontade com o seu passado. Agora, vive no presente, para o dia-a-dia, mas também com um olho no futuro. Na mesma peça que se ensaiava desvenda um pouco de outros tempos, já distantes, da sua vida. Parte do texto recorda os momentos de felicidade fugaz que sentia quando chegava a casa com dinheiro subtraído de bolso alheio.
Não tem qualquer problema em encarar de frente essa fase. Fê-lo, conta, por necessidade, para ajudar a mãe doente. “A minha mãe era o meu pilar. Era a base da minha existência”, desabafa. Há 30 anos, no dia do seu aniversário, perdeu a mãe. Nessa altura perdeu o rumo. Teve problemas de adições e passou a viver à margem. “Bati mesmo no fundo”, recorda. “Na altura, vivia num bairro camarário, que era o bairro São João de Deus. Abandonei tudo. Para ter uma ideia montei uma tenda à porta do cemitério do Prado do Repouso para estar junto ao túmulo da minha mãe”, conta.
Um dia acordou e, “como se ouvisse uma voz no ouvido”, pegou numa tesoura e cortou a barba e o cabelo. “E então dei a volta por cima. Mas quando estava tudo a correr bem fui detido”. Ficou preso durante cinco anos no Estabelecimento Prisional do Porto, em Custóias.
Não era sítio onde quereria ter ido parar naquela altura de plena mudança. Mas, acredita, há males que vêm por bem. “Posso-lhe dizer que foi a causa da minha salvação. O ir preso salvou a minha vida. Quando fui preso pesava 39 quilos. Só tinha pele e osso, não tinha mais nada. E quando saí pesava 60 e tal quilos”, relembra.
Emílio tem o à-vontade natural para conseguir arrancar uma gargalhada sem grande esforço. E tem histórias suficientes para que se escrevesse um guião e múltiplas sequelas. Mas também gosta de encarnar outros papéis. A sua primeira experiência em palco surgiu após convite da Asas de Ramalde, IPSS parceira do projecto, que frequenta durante o dia.
“Um belo dia, a minha técnica disse que tinha uma proposta para nós. ‘Quem é que quer fazer teatro?’ A minha pergunta foi só: ‘Onde é que são os ensaios?’”. A partir daí foi sempre a somar currículo: “Comecei nos ensaios, fiz as Bravas no festival Mexe com a Pele. Depois veio a [peça] É.”
Agora está nesta actividade dos Fenianos. “Considero que até agora este foi o maior desafio da minha vida porque chegamos aqui de olhos fechados, criamos um tema, o roteiro, ensaiamos e temos de o apresentar no próprio dia”, diz. O ateliê inclui “desenho, artes plásticas, dança, música”, entre outras disciplinas, mas a parte do processo que mais gosta é a de representar.
O palco é um dos seus sonhos. Mas tem outro. “Gostava de ir para a faculdade”, desvenda. Ao longo dos anos foi tirando as equivalências para atingir o objectivo. Mas ainda não está em condições de se poder candidatar. O objectivo será tirar o curso de preparador físico. “Gostava de ser treinador de futebol”, afirma. Por agora, vai continuar a apostar na representação.
Um oceano no caminho do palco
Do outro lado do oceano, João ou “Canção”, nome pelo qual é conhecido, veio para Portugal em busca de uma oportunidade. Nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, há 26 anos e há cerca de seis meses mudou-se para Lisboa, mas por pouco tempo. “Não consegui arranjar trabalho e aí subi para o Porto e aqui consegui um contrato”, diz.
Nas horas vagas está a ter aulas de guitarra na Academia de Guitarra do Porto. E agora juntou-se aos ateliês criativos dos Fenianos. Conheceu o projecto através de Emílio, com quem divide casa. “Nas nossas conversas ele me chamou e me convidou.”
Foi dos últimos a entrar, mas está entusiasmado. Desde cedo despertou para as artes. A sua maior paixão é a música, mas também têm um fascínio pela representação. “Aos 15 anos entrei para uma escola de teatro”, recorda. Frequentou o estabelecimento durante dois anos. Mas a música sempre foi o que o moveu. E, por isso, pegou no violão que o pai lhe tinha oferecido em pequeno e foi aprender a dedilhar as seis cordas. Só que, “por motivos pessoais” teve de abandonar o estudo do instrumento.
Retomou-o agora no Porto, onde também voltou à representação, no âmbito da actividade dos Fenianos. “Estou feliz por ter voltado depois de tanto tempo e por ter despertado novamente para o teatro. Por mais que eu queira levar a música mais profissionalmente acho que o teatro é uma arte com a qual vou sempre tentar ter um contacto de alguma forma”, afirma. Para poder investir mais na música falta conseguir ter uma guitarra própria para praticar em casa. Por agora só tem acesso a instrumentos na escola onde estuda.
Os três aspirantes a actores fazem parte de um grupo de pouco mais de uma dezena de pessoas que estão inscritas nos ateliês criativos do projecto de inclusão promovido pelo CFP. A orientá-los nos próximos meses estará Rui Spranger, director artístico da Apuro. Desde que o programa INCukTurar-te está em marcha – começou em Julho deste ano – no âmbito da actividade Ateliers de Criação, uma das várias que existem no projecto, já foram apresentadas três peças. Até Dezembro, quando acaba, realizam-se mais duas. A participar na actividade está uma maioria de pessoas que já estiveram em situação de sem-abrigo, mas qualquer pessoa pode entrar.
Rui Spranger explica como é que os ateliês funcionam: “O objectivo do projecto é montar-se um espectáculo num dia. Chega-se aqui às 10h da manhã e às 18h está-se a apresentar um espectáculo. Existem várias oficinas e é convidado sempre um director artístico. Esse director artístico monta a equipa. Pode montar a equipa com música, com teatro, com dança e com artes plásticas.” Mas já houve um director artístico que escolheu deixar a música de lado e optou pelo circo.
Nesta actividade têm participado cerca de 15 pessoas por ateliê. No total, participaram quase 50. “A ideia era conseguirmos chegar às 40 [pessoas] em cada ateliê”, conclui.
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11.1.23
“Bater no fundo” e usar o palco como trampolim para a reintegração social
7.6.21
Prisões. Reintegração social deve começar “no momento em que o recluso entra”
Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia) Fotos: Joana Bougard (Renascença), in RR
É preciso “mudar o olhar” sobre as prisões, diz o novo coordenador nacional da Pastoral Penitenciária. O padre José Luís Gonçalves da Costa lamenta que na vacinação contra a Covid-19, os reclusos não tenham sido uma prioridade. Restrições da pandemia podem obrigar a mudanças na forma como se presta a assistência espiritual nas cadeias, mas a aposta vai continuar a ser a formação dos voluntários.
Na semana em que os reclusos começaram a ser vacinados contra a Covid-19, o novo coordenador nacional da Pastoral Penitenciária da Igreja católica não esconde a crítica à lentidão do processo.
Capelão há 20 anos no Hospital Prisional de Caxias, José Luís Gonçalves da Costa garante que um padre “faz a diferença” numa prisão, como se provou durante a pandemia: por carta, telefone ou, onde foi possível, por “meios telemáticos”, os casos mais graves e urgentes não deixaram de ser acompanhados. Mas houve marcas profundas que ficaram e, apesar da assistência religiosa já ter sido retomada em maio - só para os capelães, ainda não para os voluntários -, há situações onde o trabalho vai ter de começar “do zero”.
No XVI Encontro de Assistentes Espirituais e Religiosos, marcado para dia 21 de junho, em Fátima, vão debater-se os novos desafios e prioridades desta área pastoral da Igreja, que quer ajudar quem está preso a ter esperança e a ver para lá das grades.
Foi recentemente autorizada a retoma da assistência espiritual e religiosa nas prisões, assim como as atividades de voluntariado. Era um momento muito aguardado?
Era tremendamente aguardado pelos assistentes espirituais religiosos, pelas equipas de colaboradores e voluntários, pelos próprios reclusos, e creio também por grande parte das estruturas ligadas à direção-geral (da reinserção e serviços prisionais).
Durante a pandemia, foi possível aos capelães irem dando resposta às situações mais urgentes e mais graves?
De uma forma ordinária não. Ou seja, o regime de contenção de presenças externas ao ambiente prisional foi levado de uma forma muito estrita, o que é compreensível, porque a qualidade física dos nossos estabelecimentos prisionais é muito limitada, as cadeias não estavam preparadas para esta realidade. Ainda temos celas coletivas, portanto, qualquer realidade externa ao estabelecimento prisional faz perigar, de uma forma muito drástica, a saúde dos reclusos. E temos uma transversalidade muito grande entre os estabelecimentos prisionais, para além dos jovens reclusos também temos os idosos reclusos, e obviamente que esta natureza obrigou a ter esta limitação, que foi custosa para todos, mas particularmente para os reclusos.
"É difícil integrar mentalmente o espaço prisional no nosso espaço normal e habitual”
Mas houve possibilidade de fazer contactos pontuais, por outras vias?
Houve a possibilidade clássica, que habita sempre, que é a carta, a caneta e o papel. O telefone, quando devidamente autorizado, e nalgumas cadeias, onde havia possibilidades telemáticas, também se usaram.
Estamos a falar especificamente do contacto com os capelães. E com os voluntários?
Com os voluntários praticamente nada, a não ser a realidade escrita.
Houve um trabalho que acho importante sublinhar, que foi o trabalho de segunda linha que os colaboradores e voluntários foram fazendo, acorrendo a algumas necessidades imediatas, como produtos de limpeza e higiene pessoal, às vezes alguma roupa. E falo disto porquê? Será que nas cadeias não há roupa? As cadeias têm roupa, mas alguns reclusos vêm de meios muito empobrecidos, ou vêm do aeroporto, diretamente, praticamente sem nada, e muitas vezes as próprias estruturas não têm rapidez suficiente para possibilitar, e nesse aspeto recorre-se bastante aos grupos de voluntariado e de ação sócio-caritativa.
E junto das famílias dos reclusos?
Também, mas aí não estamos sujeitos à disciplina prisional, é mais fácil, mesmo tendo em conta a situação que estávamos a viver no país.
Esta experiência da pandemia vai implicar mudanças na forma como se presta assistência religiosa nas prisões?
Creio que sim, algumas mudanças. Em primeiro lugar, porque foram quase dois anos de uma ausência efetiva. As cadeias, na sua generalidade, têm penas longas, mas temos estabelecimentos prisionais de passagem curta, e nesses praticamente vai ter de se fazer tudo a partir do zero. Penso que é aquilo que me vai acontecer quando começar a fazer a visita ao Estabelecimento Prisional de Caxias, onde grande parte dos rapazes já não serão os mesmos, porque é uma cadeia habitualmente de homens preventivos.
Penso que esta situação de ficarmos privados vai-nos obrigar a ter que reorganizar a nossa forma de estar, até com a direção, com as estruturas funcionais dentro do estabelecimento prisional, com outra lógica ou com outros recursos, em particular o recurso telemático.
"A qualidade física dos nossos estabelecimentos prisionais é muito limitada”
Há uma forma tradicional de falar dos voluntários e colaboradores, que são os "visitadores". Ouvi o testemunho de alguém que me dizia que agora estava quase "sem chão", durante mais de 20 anos este foi o seu serviço pastoral, a pastoral penitenciária, e agora ficou sem saber o que fazer. Para quem assegura este tipo de voluntariado, a pandemia também deixou marcas?
Deixou muitas marcas. Nós tínhamos - e temos, espero eu - um conjunto muito grande de voluntários que fizeram da visita aos reclusos a sua causa de vida, e não ter este tempo e este espaço faz passar aqui quase uma ideia de tempo perdido, ou de realidade perdida. Estou em crer que muitos deles retomarão. Obviamente que esta retoma vai ser gradual. O início está a ser feito com muita delicadeza e cuidado, está-se a contar que a vacina resulte em termos comunitários para haver uma normalidade no regresso, mas entretanto todas as estruturas estão inseguras quanto a uma normalização da relação.
Estes voluntários e visitadores em alguns dos estabelecimentos prisionais já estão a começar a ser chamados, convocados pelas equipas. Não podem aparecer no número em que apareciam, vão aparecendo dois, três, particularmente aqueles que já estão vacinados, e começam também, de uma forma muito gradual, a contactar com os reclusos em pequenos grupos, para depois, espero eu, no próximo ano pastoral já estarmos todos em pleno.
A experiência da pandemia foi naturalmente muito marcante para os reclusos. A população prisional esteve esquecida, em sua opinião?
Ela não esteve esquecida... Vamos ver, esquecida por quem? Obviamente que pela Pastoral Prisional não esteve esquecida, pela Igreja não esteve esquecida. Tivemos algumas reuniões com a Direção-Geral (da Reinserção e Serviços Prisionais) para saber como lidar com esta situação, percebemos e acatamos algumas das debilidades e das contingências que os serviços prisionais têm na sua própria estrutura, a situação não é desejável por ninguém.
Na vida dos reclusos sempre que privamos este processo de entrada de uma realidade que funciona em termos de gratuitidade fazemos decrescer a qualidade da própria vida dentro do estabelecimento prisional. Porque, como sabem, o espaço prisional é um espaço que não se constrói numa base de confiança, pelo contrário, vive assente numa desconfiança permanente, e a presença da Igreja, a presença de realidades associativas naquela comunidade, permite atenuar alguns processos desumanizantes que são normais. Digo ‘normais’, não deveriam ser, mas numa forma prática são normais, porque estamos num contexto em que ninguém quer estar, nem o recluso, nem o guarda, nem quem lá está...
A pergunta ia mais no sentido desta não ter sido uma prioridade na opinião pública...
Obviamente que não foi, mas aqui temos um problema estrutural em termos culturais. Nunca esqueço esta premissa, porque essa é a nossa luta de fundo: o alterar o olhar que a própria sociedade tem sobre o que é a prisão, o seu fenómeno, e depois as suas soluções.
Todos temos o discurso relativamente facilitador de dizer 'bom, os estabelecimentos prisionais, humanisticamente falando, são lugares onde se deve fazer a reintegração', mas efetivamente clamamos e bradamos sempre pelo aumento das penas, acusamos os estabelecimentos prisionais de não serem vindicativos o suficiente, e já estamos aí a bramir outra vez para que haja um aumento de penas para um conjunto de crimes. Crimes graves, com certeza, mas esse aumento vai pôr em causa este princípio: queremos as cadeias apenas para fazer depósito de uma humanidade em que já deixámos de acreditar? Ou queremos, de facto, ter aqui um sistema social que ainda possa oferecer um tempo, que não deixando de ser punição, pretende ser um tempo de purificação ou de transformação? Aliás, o Papa Francisco é muito claro nesse horizonte.
Há uma semana, o nosso convidado (desta entrevista) falava também na reinserção social dos reclusos dizendo que, tal como existe, não previne que reincidam no crime. O que é que em sua opinião seria prioritário em termos de reinserção social dos reclusos?
O que é que se deve ir mudando... Tem de se começar a reintegração social a partir do momento em que o recluso entra no estabelecimento prisional. Não posso dizer que posso trabalhar numa reintegração social no momento em que a porta do estabelecimento prisional se abre para a liberdade do recluso…
Não vos consigo dar números, mas uma maioria apreciável dos nossos reclusos são homens que nunca chegaram a ficar devidamente capacitados para uma vida em sociedade, e a tendência, se estes instrumentos não são adquiridos, é que voltem. Depois temos também uma margem muito grande de reclusos e reclusas que não se conseguem reconciliar com a própria sociedade, e uma entrada não reconciliada será sempre uma entrada violenta e agressiva.
O padre João Gonçalves (anterior coordenador nacional da Pastoral Penitenciária, que faleceu a 8 de dezembro de 2020) dizia sempre que devíamos começar ainda antes de eles entrarem, começar com uma prevenção clara e evidente, sem vergonha nem receio, que as próprias comunidades paroquiais e os movimentos podem interpretar com bastante facilidade, e depois, a partir do momento em que se entra, um trabalho interdisciplinar que tem que envolver os vários intérpretes, particularmente o recluso, quiçá também a própria vítima. Porque não podemos esquecer toda uma lesão que é provocada, e que para termos uma reconciliação é necessário que, de facto, todas estas realidades possam ser envolvidas neste processo.
Há algumas experiências de escolas de reconciliação, mas em larga escala, provavelmente, é mais difícil...
Estes processos não podem ser industrializados.
Falámos ainda há pouco da dimensão 'vingativa' da pena. É preciso sensibilizar a sociedade em geral para a importância da reinserção?
É, muito. Não sei se é pela crise individualista a que as sociedades ocidentais chegaram, e pela sua perda de sentido de bem comum, o facto é que quem prevarica, quem falha, deixa de ter possibilidade de novamente poder ser integrado no conjunto de todos.
Penso às vezes que as nossas cadeias funcionam quase como interpelações profundas dos insucessos sociais enquanto sociedade e realidade, e enquanto não conseguirmos valorizar um bem comum, um bem que é de todos, particularmente a dignidade humana, vamos olhar sempre para as prisões esperando vingança, mas uma vingança para consolar corações, perdas, e não propriamente com este princípio que é 'não fica ninguém para trás', e esse é de matriz cristã.
Obviamente o processo mais ou menos sociológico de descristianização vai-se começar a verificar nestas realidades, onde os que não estão integrados, as margens, começarão a transformar-se em realidades invisíveis, ou só serão notícia quando se confirmar a necessidade dessa invisibilidade. Um bocadinho como nas cadeias, só somos notícia quando um recluso foge, ou uma coisa dessas…
"Um homem que não tem um projeto, que não tem uma ocupação, um desafio, definha-se”
Falou no Papa Francisco. De que forma é que as imagens das visitas a prisões, em viagens internacionais, ou do lava-pés a reclusos, ajudam a dar visibilidade a essa realidade?
O Papa Francisco tem lutado, neste seu pontificado, por trazer a periferia para o centro. Naquilo que é a sua capacidade real de influenciar as consciências e os corações, ele tem procurado fazê-lo e temos sentido essa mesma realidade: se há uns tempos, o visitador era alguém que surgia do quadro relacional do capelão, hoje em dia temos pessoas que, sem nenhuma relação com a Capelania ou com o capelão, vem procurar informação à Pastoral Penitenciária, quer fazer, sente-se motivado, inclinado a servir esta causa, de alguma forma. Nesse aspeto, é um Papa cinco estrelas.
Voltando à realidade da pandemia: sabemos que a vacinação nas prisões começou por abranger os guardas prisionais e os reclusos mais idosos, mas só está a avançar agora para os restantes. Em Lisboa serão vacinados este domingo, 4 de junho, e no Porto dia 7. Não devia ter sido prioritária e ter começado mais cedo, dado o perigo de contágio devido à partilha de celas e balneários?
Na minha opinião, seria, com certeza, mas tenho sempre algum receio, porque eu não conheço a equação toda, não tenho acesso à informação que os decisores tiveram. Estranhei um pouco não se seguir a mesma lógica seguida na realidade civil, porque há idosos nos estabelecimentos prisionais, com 70, 80 anos, e foi estranho não os ver vacinados quando os outros idosos estavam a ser vacinados. Houve aqui uma dificuldade de dar transversalidade deste direito aos reclusos. Mas, como disse, não parece que tenha sido intencional ou uma realização maquiavélica, da parte dos decisores. É difícil integrar mentalmente o espaço prisional no nosso espaço normal e habitual.
Foi nomeado coordenador nacional da Pastoral Penitenciária já em 2021, num momento particularmente difícil como este da pandemia. Quais são as prioridades da sua equipa?
Nós pegámos nesta matéria a partir do momento em que nos foi comunicada a necessidade de substituir a tarefa do padre João Gonçalves, que estava muito limitado pela doença. A equipa transitou quase toda da equipa anterior, tivemos de escolher mais um ou dois nomes, porque o ‘know how”’ que foi realizado é admirável e é valioso.
Nos primeiros encontros que temos tido, as linhas prioritárias que o padre João tinha definido estão a manter-se, portanto, vamos procurar fazer com que os nossos voluntários e colaboradores continuem em processo de formação. A realidade da Pastoral Penitenciária não pode viver só de uma entrega genuína, por parte dos voluntários, tem de haver aqui alguma formação específica – seja no ordenamento jurídico, seja também algumas competências de caráter psíquico, e até na leitura do próprio perfil. Posso querer muito ajudar, dentro de um estabelecimento prisional, mas posso não ter condições psíquicas, reais, para o fazer. O ambiente é um ambiente que é trabalhado na desconfiança. Há corações bons, lá dentro, mas às vezes pode demorar algum tempo até lá chegar… Por isso, é necessário este trabalho, esta intuição que sempre esteve presente, no trabalho do padre João Gonçalves, e esta será uma realidade a ser concretizada.
Outra é reforçar e motivar as equipas da Pastoral Penitenciária espalhadas pelas 49 cadeias mais uma – que é a Cadeia Militar, dependente diretamente do Ordinariato Castrense, e que integramos também na nossa realidade -, acompanhar e ver até que ponto esta pastoral consegue reorganizar-se neste novo arquétipo, que já não é o capelão residente, dentro da cadeia, que tinha a obrigação de instruir os reclusos, mas nesta experiência eclesial, em que a comunidade eclesial consegue fazer chegar-se, a ela própria, à realidade das prisões. E depois manter vivo o protocolo que foi assinado com a Cáritas, para a ação sócio-caritativa, nas várias instâncias de que a Pastoral Penitenciária vai necessitar, seja para as famílias dos reclusos, seja a intervenção nos processos de reintegração e a sua transformação, para que eles sejam simples e pequenos o suficiente para serem realizáveis ao nível das comunidades, não em realidades grandes ou institucionalizadas, que depois correm o risco de ser uma continuação do próprio processo de reclusão, que é algo que vai atrasar, em vez de ajudar...
Depois, obviamente, valorizar ao máximo possível o quadro da ação dentro do estabelecimento prisional. Um dos problemas que existe em todos os estabelecimentos prisionais é a inatividade, e ela, no quadro humano, é uma deformação: um homem que não tem um projeto, que não tem uma ocupação, um desafio, definha-se. Definha a sua capacidade humana, a sua capacidade relacional, a sua autoestima. Queremos ver até que ponto conseguimos dinamizar, fazer entrar dentro do estabelecimento prisional, com a delicadeza que a circunstância nos merece sempre. Penso sempre em dois navios enormes, a tentar juntar-se um ao outro, com imensos cuidados, para que não se afundem, permitindo, então, grandes janelas abertas para os reclusos continuarem a olhar a sociedade como o seu espaço próprio, não apenas as grades como a sua natureza.
"A realidade da Pastoral Penitenciária não pode viver só de uma entrega genuína, por parte dos voluntários, tem de haver aqui alguma formação específica"
Há quantos anos se dedica à assistência religiosa nas prisões?
Desde 2001, 2002. Já há alguns anos…
É capelão no Estabelecimento Prisional de Caxias e no Hospital Prisional de São João de Deus...
Sim, comecei pelo Hospital Prisional, na circunstância muito comum de o capelão anterior ter adoecido. Na altura, era pároco em Caxias e o cardeal D. José Policarpo pediu-me para dar uma mãozinha enquanto não se resolvesse nada. Bom, foi resolvido e resolvido está: acompanho aquela casa neste tempo todo, muito particularmente.
Um padre faz diferença numa prisão?
Faz.
É uma presença pedida e procurada?
É. Pelos reclusos, pelos guardas prisionais, pelos funcionários, pela equipa médica. Continua a ser aquilo que é na paróquia, há uma transversalidade. Às vezes falo nisso às pessoas, a realidade é transversal. Não é uma realidade diferenciada.
A 21 de junho, vai decorrer em Fátima o XVI Encontro de Assistentes Espirituais e Religiosos. Será ocasião para falar dos novos desafios e prioridades?
Sim. A ideia surgiu de uma intervenção que o Santo Padre fez às equipas judiciárias que trabalham com os jovens em risco. No conjunto de intenções que lhes entregou, havia uma dirigida aos capelães, em que dizia: “Avançai. Não tenhais medo, olhai para Jesus que também foi para casa de Zaqueu e foi apontado como aquele que foi dormir na casa do pecador”.
Houve aqui uma quebra, também pela morte do padre João Gonçalves, e há necessidade de retomar um élan que já existia. O desafio é avançar, com as propostas que já conhecíamos, mas que precisam de ser assumidas e integradas, e vamos também pedir à Direção-Geral que nos diga, um pouco, no que é que gostaria de contar connosco, o que é que espera de nós, o que é que foi esta experiência. Depois, pedi a um dos nossos capelães, de Bragança, que nos diga também qual seria a reflexão que gostaria que os padres e os diáconos deveriam ter em conta.
Se Deus quiser, em julho, reuniremos também com os nossos colaboradores e com os voluntários. E vamos manter também a nossa peregrinação a Fátima, para oferecer o nosso próximo ano pastoral.
É preciso “mudar o olhar” sobre as prisões, diz o novo coordenador nacional da Pastoral Penitenciária. O padre José Luís Gonçalves da Costa lamenta que na vacinação contra a Covid-19, os reclusos não tenham sido uma prioridade. Restrições da pandemia podem obrigar a mudanças na forma como se presta a assistência espiritual nas cadeias, mas a aposta vai continuar a ser a formação dos voluntários.
Na semana em que os reclusos começaram a ser vacinados contra a Covid-19, o novo coordenador nacional da Pastoral Penitenciária da Igreja católica não esconde a crítica à lentidão do processo.
Capelão há 20 anos no Hospital Prisional de Caxias, José Luís Gonçalves da Costa garante que um padre “faz a diferença” numa prisão, como se provou durante a pandemia: por carta, telefone ou, onde foi possível, por “meios telemáticos”, os casos mais graves e urgentes não deixaram de ser acompanhados. Mas houve marcas profundas que ficaram e, apesar da assistência religiosa já ter sido retomada em maio - só para os capelães, ainda não para os voluntários -, há situações onde o trabalho vai ter de começar “do zero”.
No XVI Encontro de Assistentes Espirituais e Religiosos, marcado para dia 21 de junho, em Fátima, vão debater-se os novos desafios e prioridades desta área pastoral da Igreja, que quer ajudar quem está preso a ter esperança e a ver para lá das grades.
Foi recentemente autorizada a retoma da assistência espiritual e religiosa nas prisões, assim como as atividades de voluntariado. Era um momento muito aguardado?
Era tremendamente aguardado pelos assistentes espirituais religiosos, pelas equipas de colaboradores e voluntários, pelos próprios reclusos, e creio também por grande parte das estruturas ligadas à direção-geral (da reinserção e serviços prisionais).
Durante a pandemia, foi possível aos capelães irem dando resposta às situações mais urgentes e mais graves?
De uma forma ordinária não. Ou seja, o regime de contenção de presenças externas ao ambiente prisional foi levado de uma forma muito estrita, o que é compreensível, porque a qualidade física dos nossos estabelecimentos prisionais é muito limitada, as cadeias não estavam preparadas para esta realidade. Ainda temos celas coletivas, portanto, qualquer realidade externa ao estabelecimento prisional faz perigar, de uma forma muito drástica, a saúde dos reclusos. E temos uma transversalidade muito grande entre os estabelecimentos prisionais, para além dos jovens reclusos também temos os idosos reclusos, e obviamente que esta natureza obrigou a ter esta limitação, que foi custosa para todos, mas particularmente para os reclusos.
"É difícil integrar mentalmente o espaço prisional no nosso espaço normal e habitual”
Mas houve possibilidade de fazer contactos pontuais, por outras vias?
Houve a possibilidade clássica, que habita sempre, que é a carta, a caneta e o papel. O telefone, quando devidamente autorizado, e nalgumas cadeias, onde havia possibilidades telemáticas, também se usaram.
Estamos a falar especificamente do contacto com os capelães. E com os voluntários?
Com os voluntários praticamente nada, a não ser a realidade escrita.
Houve um trabalho que acho importante sublinhar, que foi o trabalho de segunda linha que os colaboradores e voluntários foram fazendo, acorrendo a algumas necessidades imediatas, como produtos de limpeza e higiene pessoal, às vezes alguma roupa. E falo disto porquê? Será que nas cadeias não há roupa? As cadeias têm roupa, mas alguns reclusos vêm de meios muito empobrecidos, ou vêm do aeroporto, diretamente, praticamente sem nada, e muitas vezes as próprias estruturas não têm rapidez suficiente para possibilitar, e nesse aspeto recorre-se bastante aos grupos de voluntariado e de ação sócio-caritativa.
E junto das famílias dos reclusos?
Também, mas aí não estamos sujeitos à disciplina prisional, é mais fácil, mesmo tendo em conta a situação que estávamos a viver no país.
Esta experiência da pandemia vai implicar mudanças na forma como se presta assistência religiosa nas prisões?
Creio que sim, algumas mudanças. Em primeiro lugar, porque foram quase dois anos de uma ausência efetiva. As cadeias, na sua generalidade, têm penas longas, mas temos estabelecimentos prisionais de passagem curta, e nesses praticamente vai ter de se fazer tudo a partir do zero. Penso que é aquilo que me vai acontecer quando começar a fazer a visita ao Estabelecimento Prisional de Caxias, onde grande parte dos rapazes já não serão os mesmos, porque é uma cadeia habitualmente de homens preventivos.
Penso que esta situação de ficarmos privados vai-nos obrigar a ter que reorganizar a nossa forma de estar, até com a direção, com as estruturas funcionais dentro do estabelecimento prisional, com outra lógica ou com outros recursos, em particular o recurso telemático.
"A qualidade física dos nossos estabelecimentos prisionais é muito limitada”
Há uma forma tradicional de falar dos voluntários e colaboradores, que são os "visitadores". Ouvi o testemunho de alguém que me dizia que agora estava quase "sem chão", durante mais de 20 anos este foi o seu serviço pastoral, a pastoral penitenciária, e agora ficou sem saber o que fazer. Para quem assegura este tipo de voluntariado, a pandemia também deixou marcas?
Deixou muitas marcas. Nós tínhamos - e temos, espero eu - um conjunto muito grande de voluntários que fizeram da visita aos reclusos a sua causa de vida, e não ter este tempo e este espaço faz passar aqui quase uma ideia de tempo perdido, ou de realidade perdida. Estou em crer que muitos deles retomarão. Obviamente que esta retoma vai ser gradual. O início está a ser feito com muita delicadeza e cuidado, está-se a contar que a vacina resulte em termos comunitários para haver uma normalidade no regresso, mas entretanto todas as estruturas estão inseguras quanto a uma normalização da relação.
Estes voluntários e visitadores em alguns dos estabelecimentos prisionais já estão a começar a ser chamados, convocados pelas equipas. Não podem aparecer no número em que apareciam, vão aparecendo dois, três, particularmente aqueles que já estão vacinados, e começam também, de uma forma muito gradual, a contactar com os reclusos em pequenos grupos, para depois, espero eu, no próximo ano pastoral já estarmos todos em pleno.
A experiência da pandemia foi naturalmente muito marcante para os reclusos. A população prisional esteve esquecida, em sua opinião?
Ela não esteve esquecida... Vamos ver, esquecida por quem? Obviamente que pela Pastoral Prisional não esteve esquecida, pela Igreja não esteve esquecida. Tivemos algumas reuniões com a Direção-Geral (da Reinserção e Serviços Prisionais) para saber como lidar com esta situação, percebemos e acatamos algumas das debilidades e das contingências que os serviços prisionais têm na sua própria estrutura, a situação não é desejável por ninguém.
Na vida dos reclusos sempre que privamos este processo de entrada de uma realidade que funciona em termos de gratuitidade fazemos decrescer a qualidade da própria vida dentro do estabelecimento prisional. Porque, como sabem, o espaço prisional é um espaço que não se constrói numa base de confiança, pelo contrário, vive assente numa desconfiança permanente, e a presença da Igreja, a presença de realidades associativas naquela comunidade, permite atenuar alguns processos desumanizantes que são normais. Digo ‘normais’, não deveriam ser, mas numa forma prática são normais, porque estamos num contexto em que ninguém quer estar, nem o recluso, nem o guarda, nem quem lá está...
A pergunta ia mais no sentido desta não ter sido uma prioridade na opinião pública...
Obviamente que não foi, mas aqui temos um problema estrutural em termos culturais. Nunca esqueço esta premissa, porque essa é a nossa luta de fundo: o alterar o olhar que a própria sociedade tem sobre o que é a prisão, o seu fenómeno, e depois as suas soluções.
Todos temos o discurso relativamente facilitador de dizer 'bom, os estabelecimentos prisionais, humanisticamente falando, são lugares onde se deve fazer a reintegração', mas efetivamente clamamos e bradamos sempre pelo aumento das penas, acusamos os estabelecimentos prisionais de não serem vindicativos o suficiente, e já estamos aí a bramir outra vez para que haja um aumento de penas para um conjunto de crimes. Crimes graves, com certeza, mas esse aumento vai pôr em causa este princípio: queremos as cadeias apenas para fazer depósito de uma humanidade em que já deixámos de acreditar? Ou queremos, de facto, ter aqui um sistema social que ainda possa oferecer um tempo, que não deixando de ser punição, pretende ser um tempo de purificação ou de transformação? Aliás, o Papa Francisco é muito claro nesse horizonte.
Há uma semana, o nosso convidado (desta entrevista) falava também na reinserção social dos reclusos dizendo que, tal como existe, não previne que reincidam no crime. O que é que em sua opinião seria prioritário em termos de reinserção social dos reclusos?
O que é que se deve ir mudando... Tem de se começar a reintegração social a partir do momento em que o recluso entra no estabelecimento prisional. Não posso dizer que posso trabalhar numa reintegração social no momento em que a porta do estabelecimento prisional se abre para a liberdade do recluso…
Não vos consigo dar números, mas uma maioria apreciável dos nossos reclusos são homens que nunca chegaram a ficar devidamente capacitados para uma vida em sociedade, e a tendência, se estes instrumentos não são adquiridos, é que voltem. Depois temos também uma margem muito grande de reclusos e reclusas que não se conseguem reconciliar com a própria sociedade, e uma entrada não reconciliada será sempre uma entrada violenta e agressiva.
O padre João Gonçalves (anterior coordenador nacional da Pastoral Penitenciária, que faleceu a 8 de dezembro de 2020) dizia sempre que devíamos começar ainda antes de eles entrarem, começar com uma prevenção clara e evidente, sem vergonha nem receio, que as próprias comunidades paroquiais e os movimentos podem interpretar com bastante facilidade, e depois, a partir do momento em que se entra, um trabalho interdisciplinar que tem que envolver os vários intérpretes, particularmente o recluso, quiçá também a própria vítima. Porque não podemos esquecer toda uma lesão que é provocada, e que para termos uma reconciliação é necessário que, de facto, todas estas realidades possam ser envolvidas neste processo.
Há algumas experiências de escolas de reconciliação, mas em larga escala, provavelmente, é mais difícil...
Estes processos não podem ser industrializados.
Falámos ainda há pouco da dimensão 'vingativa' da pena. É preciso sensibilizar a sociedade em geral para a importância da reinserção?
É, muito. Não sei se é pela crise individualista a que as sociedades ocidentais chegaram, e pela sua perda de sentido de bem comum, o facto é que quem prevarica, quem falha, deixa de ter possibilidade de novamente poder ser integrado no conjunto de todos.
Penso às vezes que as nossas cadeias funcionam quase como interpelações profundas dos insucessos sociais enquanto sociedade e realidade, e enquanto não conseguirmos valorizar um bem comum, um bem que é de todos, particularmente a dignidade humana, vamos olhar sempre para as prisões esperando vingança, mas uma vingança para consolar corações, perdas, e não propriamente com este princípio que é 'não fica ninguém para trás', e esse é de matriz cristã.
Obviamente o processo mais ou menos sociológico de descristianização vai-se começar a verificar nestas realidades, onde os que não estão integrados, as margens, começarão a transformar-se em realidades invisíveis, ou só serão notícia quando se confirmar a necessidade dessa invisibilidade. Um bocadinho como nas cadeias, só somos notícia quando um recluso foge, ou uma coisa dessas…
"Um homem que não tem um projeto, que não tem uma ocupação, um desafio, definha-se”
Falou no Papa Francisco. De que forma é que as imagens das visitas a prisões, em viagens internacionais, ou do lava-pés a reclusos, ajudam a dar visibilidade a essa realidade?
O Papa Francisco tem lutado, neste seu pontificado, por trazer a periferia para o centro. Naquilo que é a sua capacidade real de influenciar as consciências e os corações, ele tem procurado fazê-lo e temos sentido essa mesma realidade: se há uns tempos, o visitador era alguém que surgia do quadro relacional do capelão, hoje em dia temos pessoas que, sem nenhuma relação com a Capelania ou com o capelão, vem procurar informação à Pastoral Penitenciária, quer fazer, sente-se motivado, inclinado a servir esta causa, de alguma forma. Nesse aspeto, é um Papa cinco estrelas.
Voltando à realidade da pandemia: sabemos que a vacinação nas prisões começou por abranger os guardas prisionais e os reclusos mais idosos, mas só está a avançar agora para os restantes. Em Lisboa serão vacinados este domingo, 4 de junho, e no Porto dia 7. Não devia ter sido prioritária e ter começado mais cedo, dado o perigo de contágio devido à partilha de celas e balneários?
Na minha opinião, seria, com certeza, mas tenho sempre algum receio, porque eu não conheço a equação toda, não tenho acesso à informação que os decisores tiveram. Estranhei um pouco não se seguir a mesma lógica seguida na realidade civil, porque há idosos nos estabelecimentos prisionais, com 70, 80 anos, e foi estranho não os ver vacinados quando os outros idosos estavam a ser vacinados. Houve aqui uma dificuldade de dar transversalidade deste direito aos reclusos. Mas, como disse, não parece que tenha sido intencional ou uma realização maquiavélica, da parte dos decisores. É difícil integrar mentalmente o espaço prisional no nosso espaço normal e habitual.
Foi nomeado coordenador nacional da Pastoral Penitenciária já em 2021, num momento particularmente difícil como este da pandemia. Quais são as prioridades da sua equipa?
Nós pegámos nesta matéria a partir do momento em que nos foi comunicada a necessidade de substituir a tarefa do padre João Gonçalves, que estava muito limitado pela doença. A equipa transitou quase toda da equipa anterior, tivemos de escolher mais um ou dois nomes, porque o ‘know how”’ que foi realizado é admirável e é valioso.
Nos primeiros encontros que temos tido, as linhas prioritárias que o padre João tinha definido estão a manter-se, portanto, vamos procurar fazer com que os nossos voluntários e colaboradores continuem em processo de formação. A realidade da Pastoral Penitenciária não pode viver só de uma entrega genuína, por parte dos voluntários, tem de haver aqui alguma formação específica – seja no ordenamento jurídico, seja também algumas competências de caráter psíquico, e até na leitura do próprio perfil. Posso querer muito ajudar, dentro de um estabelecimento prisional, mas posso não ter condições psíquicas, reais, para o fazer. O ambiente é um ambiente que é trabalhado na desconfiança. Há corações bons, lá dentro, mas às vezes pode demorar algum tempo até lá chegar… Por isso, é necessário este trabalho, esta intuição que sempre esteve presente, no trabalho do padre João Gonçalves, e esta será uma realidade a ser concretizada.
Outra é reforçar e motivar as equipas da Pastoral Penitenciária espalhadas pelas 49 cadeias mais uma – que é a Cadeia Militar, dependente diretamente do Ordinariato Castrense, e que integramos também na nossa realidade -, acompanhar e ver até que ponto esta pastoral consegue reorganizar-se neste novo arquétipo, que já não é o capelão residente, dentro da cadeia, que tinha a obrigação de instruir os reclusos, mas nesta experiência eclesial, em que a comunidade eclesial consegue fazer chegar-se, a ela própria, à realidade das prisões. E depois manter vivo o protocolo que foi assinado com a Cáritas, para a ação sócio-caritativa, nas várias instâncias de que a Pastoral Penitenciária vai necessitar, seja para as famílias dos reclusos, seja a intervenção nos processos de reintegração e a sua transformação, para que eles sejam simples e pequenos o suficiente para serem realizáveis ao nível das comunidades, não em realidades grandes ou institucionalizadas, que depois correm o risco de ser uma continuação do próprio processo de reclusão, que é algo que vai atrasar, em vez de ajudar...
Depois, obviamente, valorizar ao máximo possível o quadro da ação dentro do estabelecimento prisional. Um dos problemas que existe em todos os estabelecimentos prisionais é a inatividade, e ela, no quadro humano, é uma deformação: um homem que não tem um projeto, que não tem uma ocupação, um desafio, definha-se. Definha a sua capacidade humana, a sua capacidade relacional, a sua autoestima. Queremos ver até que ponto conseguimos dinamizar, fazer entrar dentro do estabelecimento prisional, com a delicadeza que a circunstância nos merece sempre. Penso sempre em dois navios enormes, a tentar juntar-se um ao outro, com imensos cuidados, para que não se afundem, permitindo, então, grandes janelas abertas para os reclusos continuarem a olhar a sociedade como o seu espaço próprio, não apenas as grades como a sua natureza.
"A realidade da Pastoral Penitenciária não pode viver só de uma entrega genuína, por parte dos voluntários, tem de haver aqui alguma formação específica"
Há quantos anos se dedica à assistência religiosa nas prisões?
Desde 2001, 2002. Já há alguns anos…
É capelão no Estabelecimento Prisional de Caxias e no Hospital Prisional de São João de Deus...
Sim, comecei pelo Hospital Prisional, na circunstância muito comum de o capelão anterior ter adoecido. Na altura, era pároco em Caxias e o cardeal D. José Policarpo pediu-me para dar uma mãozinha enquanto não se resolvesse nada. Bom, foi resolvido e resolvido está: acompanho aquela casa neste tempo todo, muito particularmente.
Um padre faz diferença numa prisão?
Faz.
É uma presença pedida e procurada?
É. Pelos reclusos, pelos guardas prisionais, pelos funcionários, pela equipa médica. Continua a ser aquilo que é na paróquia, há uma transversalidade. Às vezes falo nisso às pessoas, a realidade é transversal. Não é uma realidade diferenciada.
A 21 de junho, vai decorrer em Fátima o XVI Encontro de Assistentes Espirituais e Religiosos. Será ocasião para falar dos novos desafios e prioridades?
Sim. A ideia surgiu de uma intervenção que o Santo Padre fez às equipas judiciárias que trabalham com os jovens em risco. No conjunto de intenções que lhes entregou, havia uma dirigida aos capelães, em que dizia: “Avançai. Não tenhais medo, olhai para Jesus que também foi para casa de Zaqueu e foi apontado como aquele que foi dormir na casa do pecador”.
Houve aqui uma quebra, também pela morte do padre João Gonçalves, e há necessidade de retomar um élan que já existia. O desafio é avançar, com as propostas que já conhecíamos, mas que precisam de ser assumidas e integradas, e vamos também pedir à Direção-Geral que nos diga, um pouco, no que é que gostaria de contar connosco, o que é que espera de nós, o que é que foi esta experiência. Depois, pedi a um dos nossos capelães, de Bragança, que nos diga também qual seria a reflexão que gostaria que os padres e os diáconos deveriam ter em conta.
Se Deus quiser, em julho, reuniremos também com os nossos colaboradores e com os voluntários. E vamos manter também a nossa peregrinação a Fátima, para oferecer o nosso próximo ano pastoral.
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