in Jornal Público
Tudo tinha de ser como ele queria. Tudo tinha de ser como ele dizia. E ele dizia que eu tinha toneladas de amantes. Era o homem da luz, era o homem do gás. Não podia desmenti-lo. Batia-me. Gritava: "Confessa!"
Faz este mês 60 anos que nasci. Faz em Fevereiro dois anos que vim para a casa-abrigo. Fui maltratada 40 anos. A primeira vez, casara havia pouco, estava grávida. Estávamos na cama, empurrou-me, caí. Desculpei-o. Quando uma mulher é nova, pensa: "É ciúme. Amanhã, será melhor." Tivesse tido coragem para me libertar mais cedo! É difícil recomeçar a vida nesta idade.
Tinha vergonha. As pessoas que me conheciam sabiam que eu não fazia o que ele dizia. E as outras? Piorou com o casamento dos filhos. Os filhos saíram de casa e eu ainda o aguentei mais oito anos. No fim, já não havia intervalos. Quase todos os dias me batia. No ano em que saí de casa, no espaço de duas horas, deu-me três tareias.
Quando saíamos, ficava atento, como se fosse uma ave de rapina. Olhava para alguém? Alguém olhava para mim? Não era senhora de cruzar a porta de casa. Só podia sair uma vez por mês para ir ao hipermercado - com ele. Isolou-me por completo. Até chegar a nem o telefone me deixar atender. Como nunca saía, as minhas amigas devem ter pensado: "Zangou-se!" Sempre que ele saía de casa, regressava carregado de desconfiança. Punha-se a ver se havia pegadas perto das portas, perto das janelas. Não tinha sossego nem quando ele estava a trabalhar. Ele era estucador. Tinha uma empresa. Como trabalhava por conta própria, vinha a casa quando queria. Tantas vezes me assustou! Ele a chegar a casa, eu na casa de banho, ele a entrar e a afastar a cortina da banheira para ver se havia lá alguém.
Sempre me dera dinheiro para gerir a casa. Deixou de o fazer. Dizia que eu o dava aos amantes. Se quisesse comprar um par de meias, tinha de lhe pedir. Para ir ao médico, os meus filhos tinham de se impor. Controlava as compras. Contava as postas de bacalhau, por exemplo. Dizia que eu não podia dar dinheiro aos amantes, que lhes dava géneros. Chegou a dar um tiro a um primo que entrou lá em casa duas vezes - um rapaz que tem idade para ser meu filho! Eu já tinha saído de casa. Era Dezembro. Ele esteve preso dois dias e foi internado na psiquiatria. Agora, anda no psiquiatra. O médico diz que ele tem uma psicose maníaco-obsessiva.
Os meus filhos querem que eu vá para ao pé deles - na zona de Lisboa e Vale do Tejo. Não posso, enquanto o meu ex-marido for vivo. Nem posso passar lá o Natal. Tenho medo que ele sonhe que estou lá. Se ele sonha que estou lá, não há sossego. Anda sempre a vigiar a casa dos filhos. Tudo isto é sofrimento.
Quando fugi, pedi ajuda à Associação de Apoio à Vítima e não ma quiseram dar por eu não ter apresentado queixa. Refugiei-me em casa dos meus filhos. E comecei a trabalhar num lar de idosos. Nunca tinha trabalhado fora. Ele nunca deixara. Essa nova vida durou pouco tempo. Ele dizia que me matava e que matava filhos e netos se eu não voltasse para casa. Ele disse ao meu filho mais novo: "Ou trazes a tua mãe para casa ou mato-te e mato os teus filhos."
Apresentei queixa. A APAV mandou-me para a Associação de Defesa dos Direitos e dos Interesses das Mulheres. Ao menos, sinto-me segura, tenho o carinho de quem aqui trabalha - voluntárias, todas. As regras não me fazem diferença. Farão às mais novas. Já nem sei quantas passaram por aqui nestes dois anos. As histórias são todas diferentes. A base é a mesma: a mulher encarada como propriedade do homem.
Ele veio ao Porto por causa do divórcio. Já estou divorciada. Decorre o processo de divisão de bens. Ele achava que eu não tinha direito. Não fosse isto, como seria? Ele preso nunca foi. Alguma vez será? Só há cerca de um mês chegou a notificação referente ao processo-crime. A.C.P, a partir de uma conversa com a vítima


