Por Ana Rita Faria, in Público on-line
Cerca de 600 processos de sobreendividamento deram entrada na Deco até Fevereiro, mais uma centena do que no ano passado
Taxa de desemprego elevada, agravamento da carga fiscal, cortes salariais na função pública, escalada dos preços dos combustíveis e dos alimentos e pressão sobre as taxas de juro. Juntos, estes factores estão a intensificar os receios de recessão na economia e a ter um impacto cada vez maior nas famílias, sobretudo naquelas que estão endividadas.
De acordo com os dados fornecidos ao PÚBLICO pela Associação de Defesa do Consumidor (Deco), foram abertos 612 novos processos de sobreendividamento em Janeiro e Fevereiro. São mais 110 pedidos de ajuda do que em igual período do ano anterior. Todos os dias, cerca de 40 pessoas contactam o Gabinete de Apoio ao Sobreendividado (GAS) da Deco.
O retrato é preocupante e deverá agravar-se ainda mais nos próximos tempos. "Com o actual contexto económico e com a subida das taxas de juro, a nossa perspectiva é que o número de famílias sobreendividadas aumente este ano, e aumente significativamente", alerta Natália Nunes, do GAS da Deco.
Entre Janeiro e Fevereiro, o gabinete da associação já abriu 612 processos de sobreendividamento, mais 110 do que em igual período do ano passado. O desemprego (que, no final de 2010, atingiu 11,1 por cento da população activa) é o motivo apresentado por 33,5 por cento das famílias e indivíduos que recorrem à Deco. Mas também já se começa a notar, por exemplo, o efeito dos cortes de 3,5 a 10 por cento na função pública para os vencimentos acima dos 1500 euros.
Em 2010, de acordo com os dados da Deco, a maioria dos processos (32,7 por cento) era de pessoas com rendimentos entre os 500 e os 1000 euros. Mas, este ano, embora ainda não haja dados estatísticos, têm aparecido cada vez mais casos de funcionários públicos atingidos pelos cortes salariais e, portanto, com rendimentos acima dos 1500 euros.
Ao desemprego e à austeridade soma-se o aumento das taxas de juro. A Euribor, à qual está indexada a maioria dos empréstimos à habitação, tem estado a subir desde o final do ano passado e deverá subir ainda mais se o Banco Central Europeu (BCE) aumentar, no próximo mês, as suas taxas de referência. A autoridade monetária está a ser confrontada com a escalada dos preços das matérias-primas energéticas e alimentares, o que poderá levá-la a aumentar os juros para travar a inflação. De acordo com o BPI, uma subida das taxas do BCE dos actuais 1 por cento para 1,75 até ao final do ano pode traduzir-se num agravamento de 50 a 200 euros nas prestações mensais do crédito à habitação.
Para João Calado, que dirige o gabinete de orientação ao endividamento dos consumidores do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), a subida dos juros vai agravar os casos de endividamento já existentes. Só em Janeiro, o gabinete do ISEG abriu 90 processos.
"É quase inevitável", considera Catarina Frade, que investiga o fenómeno do sobreendividamento no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. "As taxas de juro vão começar a subir antes do ciclo económico se inverter e isso vai atrasar a recuperação das famílias, esgotar a capacidade de poupança e aumentar as situações de sobreendividamento", resume. Isto sem falar do incumprimento.
Os últimos dados do Banco de Portugal mostram já, em Janeiro, um agravamento do peso do crédito malparado sobre o total de empréstimos concedidos, tanto no crédito à habitação como no consumo. O peso do crédito total de cobrança duvidosa está, neste momento, próximo do máximo histórico atingido em Novembro (três por cento) e, se a situação financeira das famílias se continuar a deteriorar, pode ultrapassá-lo.
Situações de falência
De acordo com o Deco, o facto de a subida das taxas de juro agravar a possibilidade de novos casos de sobreendividamento deve-se à pouca margem de manobra que as famílias endividadas já têm. Em média, os sobreendividados acumulam cinco créditos, onde entra, geralmente, o empréstimo à habitação, crédito para compra de automóvel, créditos pessoais e cartões de crédito.
"A taxa de esforço é elevada - mais de 40 por cento do rendimento é para pagar dívidas - pelo que qualquer alteração do orçamento familiar pode gerar situações de ruptura", salienta Natália Nunes. Além disso, o crédito pessoal tem, frequentemente, um peso tão grande como o crédito à habitação, visto que as famílias tendem a tentar resolver as suas dificuldades de pagamento contraindo novas dívidas. É isto que faz com que a maioria dos casos que chegam à Deco já não possa ser resolvida apenas através de uma reorganização do orçamento familiar.
Em 2010, a Deco abriu 2837 processos de sobreendividamento, mas teve um número de pedidos de informação (quer por via telefónica quer presencial) seis vezes maior, num total de 17 372. Do mesmo modo, apesar de a associação apenas ter iniciado 612 processos nos dois primeiros meses do ano, recebeu 2329 contactos (cerca de 40 por dia), mais 215 que no mesmo período do ano passado.
"As pessoas pedem ajuda numa fase muito tardia e, na maioria dos casos, já não há solução, são situações de falência pessoal", explica Natália Nunes. O último recurso é, então, apresentar um pedido de insolvência de pessoa singular no tribunal, para evitar a penhora total dos bens.