3.10.14

Por que é que se salvam bancos e não pessoas?

por Carla Caixinha, in RR

Em "Banco Bom, Banco Mau", a jornalista Rute Sousa Vasco descreve uma história de ganância e fraca fiscalização. E com muitos casos de mau comportamento.

"Se as pessoas soubessem como funciona a banca, haveria uma revolução antes da manhã seguinte". Esta frase, atribuída ao empresário Henry Ford, é uma das primeiras citações que podemos ler no livro "Banco Bom, Banco Mau" (editado pela Matéria-Prima), de Rute Sousa Vasco.

A jornalista, directora de conteúdos do Portal Sapo, diz que tem havido "maus comportamentos" da banca. Por isso, está na altura de os cidadãos deixarem de ser meros espectadores e passarem a ser mais interventivos na forma como o seu dinheiro é gerido.

Em Portugal, os depositantes assistiram à nacionalização do BPN, à perda de dinheiro dos clientes do BPP, à queda do BES e à recapitalização de três bancos, o BCP, o BPI e o Banif.

Rute Sousa Vasco fala de uma "tempestade perfeita" em que a banca se tornou numa instituição cada vez menos regulamentada e fiscalizada, perdendo-se da sua missão.

Este livro pretende acordar as pessoas?
O objectivo foi conseguir perceber como nos relacionamos com os bancos e até que ponto a nossa ignorância colectiva da forma como é gerido o dinheiro nos faz muitas vezes não conseguir ser mais do que espectadores dos acontecimentos, que, nos últimos anos, nos acabaram por envolver a todos.

Toda esta crise serve de lição?
Não podemos ficar alheados das decisões que são tomadas, sobretudo por elas nos parecerem complexas. No arranque do livro falo da linguagem financeira, que se tornou hermética e usa termos tão complexos que nos fez pensar que isto é um tema de um conjunto de pessoas com qualificações especiais.

A banca assumiu um discurso difícil, muitas vezes ininteligível – e não foi por acaso. E os políticos também assumiram o mesmo discurso – e não foi por acaso. Em muitas situações foi muito conveniente que a maior parte das pessoas não percebessem.

Os bancos têm um conjunto de activos – dinheiro de pessoas, empresas e instituições – que têm de gerir eticamente, garantindo que estão seguros. Mas eles perverteram esse papel a partir do momento que o dinheiro passou a ser usado apenas para gerar mais dinheiro (em muitos casos fictício) para proveito dos accionistas e de outras partes.

Mas as expressões "banco bom" e "banco mau" não são novas…
O título do livro usa uma expressão que o Verão de 2014 trouxe para o senso comum, com o BES, mas a terminologia é antiga. Já vem dos anos 80. A invenção de bancos bons e bancos maus, como forma de os salvar, não é um processo novo. Só o é em Portugal, mas tem vários anos nos Estados Unidos, onde foi inventada esta forma de conseguir que um banco, com graves problemas financeiros, pudesse ser salvo usando uma moeda que é o tempo.

O fio condutor que também procurei seguir é: por que damos tempo aos bancos para se salvarem e se recuperarem e não fazemos o mesmo com as empresas e as famílias, que têm passado nos últimos anos por problemas complicados?

A banca que retrata é má?
Alguma da banca é má. Recorri a múltiplos exemplos em Portugal e no estrangeiro de comportamentos incorrectos. Na banca, nos últimos anos, tem havido demasiados maus comportamentos. Algo que nos devia fazer pensar. Não precisamos de ser especialistas financeiros para verificarmos que nenhum outro sector teve tantos problemas, tantas fraudes, tantos maus comportamentos do ponto de vista ético.

Como chegou a banca a este estado, o tal "banking disaster", que refere?
A expressão é do "Financial Times" e reúne um conjunto de circunstâncias que não se resumem apenas a um banco ou a uma condição. Os bancos no mercado internacional tornaram-se instituições cada vez menos regulamentadas e fiscalizadas e também cada vez mais gananciosas. Uma ganância que foi permitida por Estados que aprovaram leis que permitiram esse tipo de comportamentos.

Essa "tempestade perfeita" fez com que, desde 2008 para cá, tenhamos assistido a um conjunto de situações que, para quem olha para a história, não aconteceram de um dia para o outro. Foram crescendo ao longo das últimas três décadas.

E em Portugal?
Uma das preocupações que tive foi fazer algum recuo na história e ir buscar momentos que tiveram comportamentos de bons bancos – quando foram um verdadeiro instrumento de modernização do país e democratização do uso do dinheiro. Por exemplo, com a privatização que deu origem ao BPI, até ao nascimento do BCP. Estes acontecimentos nos anos 90 foram absolutamente necessários para que mais pessoas tivessem acesso ao crédito e pudessem usar algo que para nós é tão banal como o cartão de crédito.

Os bancos não são em absoluto bons ou maus. Há uns melhores e outros piores, dependendo dos períodos. Podem tornar-se maus quando toda a sua forma de operar e de se relacionar com os diferentes parceiros é tomada por um espírito de ganhar sem olhar a meios e de tornarem-se num objecto do seu próprio negócio.

Há uma citação do engenheiro Belmiro de Azevedo que uso: "Os bancos têm um papel semelhante ao sangue no corpo humano". Ou seja: distribuir riqueza por toda a economia e sociedade. Quando o banco deixa de olhar para essa sua missão e passa a preocupar-se exclusivamente em como ganhar mais dinheiro, sendo esse o seu único fim, as coisas complicam-se.

E onde estavam os reguladores? Foi uma distracção colectiva?
Não elegemos banqueiros, elegemos políticos que nos representam e quando lhes damos o nosso voto estamos a depositar confiança política (da mesma maneira que quando depositamos dinheiro no banco estamos a depositar confiança na sua capacidade de gerir bem o nosso dinheiro e não o perder).

Aos políticos temos de exigir que façam leis que sirvam de facto a sociedade e que tornem a banca num sector que serve a sociedade como um todo e não a sociedade como um agregado ao serviço dos bancos. E isso correu mal nos últimos anos.

Por um lado, a proximidade, tantas vezes excessiva, entre a banca e os Estados fez com que um conjunto de leis fossem anuladas – a mais falada tem a ver com a separação da banca de investimentos e a da banca comercial.

E ainda tem a ver com a forma como os Estados foram protegendo a banca de um colapso para o qual não protegeram sectores inteiros e indústrias inteiras.

Diz que os Estados protegeram a banca em detrimento das famílias e de outros sectores. Porquê insistir neste tratamento desigual?
Tem tudo a ver com um círculo de poder em que um conjunto de pessoas acaba por se perpetuar em determinadas funções – não no mesmo sítio, mas em lugares de decisão.

A protecção dos cidadãos e de empresas não financeiras "versus" o próprio Estado e os bancos tem pecado sempre por escassa e tardia. Há, de facto, uma decisão, que não acho que seja inconsciente, de proteger um determinado sector da economia e quem decide nas sociedades. Por que são os banqueiros tão influentes? Uma das razões é porque, antes ou depois de estarem na banca, a maior parte deles estiveram também em lugares onde puderam influenciar os destinos dos países.

Que parte do livro lhe deu mais prazer escrever?
É aquela em que falo sobre a ganância e a forma como um sentimento, que todos já experimentamos, conduziu a banca e os banqueiros e todo o universo que está em redor deste sector a situações extremas que nos poderiam parecer absolutamente impensáveis.

Temos um histórico de pensar que o dinheiro nos faz mal, que faz de nós más pessoas. Mas não é forçoso que seja assim.

Até a biologia nos mostra que o dinheiro afecta a nossa capacidade de pensar, as reacções mais básicas do nosso cérebro, de uma maneira comparável à adição às drogas. Deve-nos obrigar a criar regras que nos limitem.

No retrato da banca que fez no livro houve algo que a tenha surpreendido?
Um dos relatos que cito é extraído do blogue de João Rendeiro, um banqueiro que marcou os últimos 30 anos de banca e de 1995 para cá, com o BPP, o fez de forma clara. Ao ler o texto dele, é impressionante como alguém informado e com visão – se nos esquecermos que também foi parte desta história – consegue ilustrar tão bem tudo o que correu mal. Ele tem uma visão muito crítica da supervisão e passa a mensagem: se isto aconteceu foi porque deixaram. Ou seja, tanto os EUA, como a Europa, atiraram achas para a fogueira quando criaram condições para ser tão barato comprar dinheiro. No fundo, criaram o clima perfeito para aguçar a ganância. Surpreendeu-me como é que alguém com essa consciência foi convivendo com todo o processo, sendo parte do que estava a acontecer.

Por que razão considera a detenção de Ricardo Salgado "o 'ground zero' da banca portuguesa"?
Todo o protagonismo do Ricardo Salgado ao longo dos últimos anos tornou-o no símbolo da banca e do poder em Portugal. No dia em que assistimos a uma das pessoas mais poderosas, um ícone daquilo que é o poder financeiro e até político, a ser detida tivemos, de alguma forma, a consciência que era o fim de uma era. De um tempo em que algumas instituições, empresas, alguns bancos e algumas pessoas estariam acima de qualquer contratempo. Nesse dia tomámos consciência, à escala portuguesa, de que a história dos bancos como a concebíamos acabou ali.

Há uma linha que separa o antes e o depois de 2008?
As coisas não voltarão ser mesmas, apesar de que nesta altura, em rigor, ter mudado muito menos do que devia. Dificilmente voltaremos a um tempo anterior a 2008. Todos, enquanto cidadãos, estamos muito mais atentos e todo o processo é mais escrutinado. Acho que esse é o grande drama da banca: a enorme dificuldade que as pessoas vão voltar a ter em confiar.

O escrutínio tem de ser feito quando escolhemos um banco, mas sobretudo quando estamos a tomar decisões políticas, quanto mais não seja quando elegemos os nossos governos. Porque não há possibilidade de conseguirmos mudar a banca sem mudarmos leis.

Não é um fim de história. No limite, estamos no princípio de uma nova era, que vai ser muito trabalhosa para todos nós. Não é um processo que acaba quando se salvam bancos, pois tudo o que nos trouxe até aqui pode voltar a acontecer.

Aliás, há quem defenda que se este processo acontecer hoje vai ser muito mais grave do que em 2008 porque os bancos que sobreviveram a esta crise são muito maiores.

Sopram ventos de mudança?
No meio de toda esta crise há sinais interessantes de que os bancos e os Estados vão ser obrigados a mudar. Graças à tecnologia estão a surgir possibilidades diferentes. Há novas empresas que estão a oferecer serviços financeiros e que não se configuram como um banco e não têm a mesma lógica de operação financeira – estão a dar serviços mais simples, mais acessíveis e mais baratos.

A geração dos ditos "millennials" vai ser muito mais descomplicada. Vão ter uma visão diferente da relação que esperam ter com um banco. Não vão achar tão complicado, como os nossos pais achariam, não ter uma conta bancária ou relacionar-se com uma entidade que lhes faz chegar dinheiro e lhes permite fazer pagamentos mas não é um banco.