7.9.23

“Sem vagas.” Há mais lugares gratuitos nas creches, mas muitas famílias continuam sem resposta

Patrícia Carvalho, in Público online

Governo diz que espera ter creche gratuita para 85 mil crianças ainda este ano mas faltam muitos mais lugares para garantir a universalidade da medida. Trabalho das mães é o que mais sofre.

Francyelle Monteiro, de 29 anos, tirou esta terça-feira para calcorrear as ruas, com o marido, de creche em creche, a ver se consegue encontrar uma resposta diferente da que tem ouvido constantemente desde que começou a procurar um lugar numa creche para o filho, de 14 meses: “Sem vagas.” Já ficou sem emprego e a família teve de deixar a casa e ir viver com os pais dela, pela perda de rendimentos. Uma vaga numa creche mudava-lhe de novo a vida. “Preciso de voltar ao mercado de trabalho, tenho oportunidade de trabalho, mas não tenho com quem deixar o meu filho. Isto está a causar-nos bastante transtorno”, diz. É um dos muitos casos a quem a Creche Feliz ainda não bateu à porta.

Antes de o filho nascer, Francyelle trabalhava como auxiliar de laboratório, mas o contrato a prazo não foi renovado assim que foi mãe. De dois salários, o casal passou a um e tudo se complicou. “Tivemos de abrir mão do lugar onde vivíamos e de dividir casa com os meus pais”, conta.

A primeira procura por creches foi ainda antes de o menino nascer, mas disseram-lhe que tinha de esperar, porque, sem registo do bebé, não era possível colocá-lo sequer numa lista de espera. A procura foi retomada “assim que ele nasceu”, recorda, e conseguiu deixar uma inscrição em três creches perto de casa, na altura, na zona de Alverca. A resposta, contudo, foi sempre a mesma: “Sem vagas.” Com a perda de emprego e a mudança de casa, a família passou para São João do Tojal, em Loures, mas os resultados não são melhores. “Não há vagas em nenhum lugar, ficamos sempre em listas de espera. O único sítio onde há vagas são lugares clandestinos, mais complicados”, lamenta.

Nos últimos dois meses, Francyelle colocou o bebé num local “informal”, graças ao apoio da igreja de que faz parte e que garante o pagamento da mensalidade. Mas também isso está a acabar. “Por causa da nossa situação financeira, eles estão a fazer o pagamento, mas só fazem durante três meses. Tenho mais um mês e depois não tenho mais o pagamento deles. Não tenho como mantê-lo nesse local.” A conclusão, por mais voltas que dê, é sempre a mesma: precisa de uma creche gratuita. “Preciso de voltar ao mercado de trabalho urgentemente”, desabafa.

Garantir que as mulheres têm igualdade de direitos no acesso ao mercado de trabalho é, precisamente, um dos objectivos da Creche Feliz, que ainda nesta terça-feira foi recordado ao PÚBLICO pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, após uma visita a uma creche no Montijo em que foi feito um balanço do programa de acesso a creche gratuita.

Os dados do Governo apontam para um aumento de nove mil vagas nos últimos dois meses, graças a uma portaria que simplificou a reconversão de salas vazias de locais já com serviços de apoio às crianças em salas de creche. Este ano, a expectativa da ministra é a de que o programa chegue a 85 mil crianças, um número que deverá aumentar no futuro, ajudado pela criação de mais oferta, incluindo a abertura de 20 mil novos lugares projectados até 2026, ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência e do Pares.

“Temos intensidade máxima, trabalho máximo, para uma medida que gera um aumento da procura”, disse Ana Mendes Godinho, reconhecendo que o programa está longe de chegar a todos — não só não há vagas suficientes, como a procura cresceu muito. “Há famílias que não pensavam pôr as crianças numa creche e que agora assumem isso como prioridade. As pessoas todas querem colocar as crianças na creche, a medida induziu uma procura que só mostra que é acertada. Muitas crianças que não estavam com capacidade de acesso a creche, mais vulneráveis, passaram a estar, porque o custo deixou de ser um factor.”

Quarenta e duas creches contactadas

Tânia Vargas, de 33 anos, tinha essa expectativa de conseguir encontrar uma creche para o mais novo dos seus três filhos. Gabriel tem apenas 20 dias, uma irmã com três anos e um irmão com seis, e 95% de deficiência, de quem a mulher de Amares, Braga cuida diariamente.

Antes do programa Creche Feliz não teve dificuldade em encontrar vaga em creches: inscreveu os filhos mais velhos com antecedência, pagava as mensalidades até as crianças irem efectivamente para a creche, garantindo assim um lugar. Com a gratuitidade, isso deixou de ser possível, assim como fazer uma inscrição antes de o bebé nascer. “Comecei a procurar cedíssimo. O primeiro email que enviei a pedir uma pré-inscrição foi em Janeiro de 2023, estava grávida de seis, oito semanas”, diz.

Ao todo, Tânia Vargas contactou 42 instituições em Amares e em outros três concelhos vizinhos: Vila Verde, Braga e Barcelos. Até agora, não conseguiu uma vaga gratuita. “Já tinha noção de que as coisas estavam complicadas, não sabia é que estavam tão complicadas”, ironiza.

Mandou mensagens para a Assembleia da República, ministério, Provedoria de Justiça a expor o seu caso. Sem solução e com o filho mais velho a exigir cuidados permanentes, acabou por encontrar um lugar numa creche privada que não se inclui na rede da Creche Feliz. Um peso financeiro difícil de suportar para um orçamento familiar já muito sobrecarregado com as terapias e todos os tratamentos de que a criança de seis anos precisa.

Mas Tânia Vargas ainda não desistiu. “Estar a pagar mais uma mensalidade quando se tem direito a uma creche gratuita é um bocadinho injusto, um bocadinho desolador. Vamos tentando arranjar solução [gratuita], mas, não havendo, temos esta retaguarda. Estamos a pagar já a mensalidade. Não deveria ser preciso, estando a gratuitidade universalizada, nas IPSS e afins...”, lamenta.

Aos 39 anos, Bianca Ribeiro não tem ideia do que vai ser a sua vida nos próximos tempos, se não conseguir uma creche para a filha, nascida em Abril de 2022. Procurou vagas em seis creches, na área de Belém, em Lisboa, onde vive, e conseguiu ficar em lista de espera, mas sem resultados. “Renovei [pedido], mandei mensagem para todas as creches da minha área, não tinham vaga, continuam não tendo, mesmo com o Governo ampliando [o programa] dentro do sector privado. Não há, pelo menos por aqui”, diz.

Com uma família monoparental — o pai da bebé é inglês e não vive cá —, Bianca Ribeiro, que é brasileira, diz não ter família em Portugal, nem qualquer apoio. E, para piorar tudo, perdeu o emprego de analista administrativa, que tinha há quatro anos. “Sempre trabalhei em teletrabalho, desde a pandemia”, conta, mas “a política da empresa mudou e quem quiser trabalhar tem de ir para o escritório”.

Não adiantou de nada o seu argumento de que não tinha com quem deixar a filha e os pedidos para continuar em teletrabalho. A mulher diz que a empresa lhe começou a marcar faltas sucessivas e que a pressão para que se demitisse foi tanta que acabou por chegar a acordo com eles. Está, desde esta terça-feira, desempregada e com a filha em casa. “Tenho de continuar reconstruindo a vida”, diz.

Marta Esteves é advogada especialistas em questões relacionadas com os direitos da parentalidade e diz que casos relacionados com famílias — “95% são mães” — que a procuram em busca de uma ajuda, por não terem com quem deixar os filhos bebés, como o de Bianca, aumentaram desde o início da Creche Feliz. “As vagas já eram um problema em 2021, mas o problema aumentou, porque elas não aumentaram em proporção ao aumento da procura”, diz. “As mães procuram-me para as ajudar a encontrar soluções, porque têm de regressar ao trabalho e não têm com quem deixar o bebé. A primeira coisa de que se lembram é que têm de se despedir. Mas há outras soluções, e é com isso que as ajudo”, diz a advogada do Porto.

As alternativas são, basicamente três. O teletrabalho, que é permitido para todos os pais de crianças até aos três anos, desde que a actividade seja compatível com essa modalidade e a empresa disponha de meios para o efeito; o pedido de uma licença para assistência ao filho; e a licença de parentalidade alargada, para lá dos 180 dias.

Só que, nas duas últimas soluções, há perda de rendimentos — a licença para assistência aos filhos não é remunerada e a licença alargada, para lá de 180 dias, prevê uma remuneração de apenas 30% do salário ou 40%, se for partilhada por ambos os progenitores. “A vantagem é que permite acompanhar pelo menos o primeiro ano de vida do bebé em casa”, diz a advogada.
Teletrabalho pode ajudar

O teletrabalho aparece assim como a medida mais apetecível, enquanto não aparece um lugar numa creche. Mas nem sempre é fácil. Bianca acabou por “não resistir à pressão” da empresa e ficou desempregada. Sónia X., 32 anos, de São João de Madeira, conseguiu que a empresa o aceitasse, mas não foi fácil.

O filho nasceu em Outubro do ano passado e desde Maio desse ano que ela andou à procura de uma vaga numa creche. “Inscrevi-o em três creches, mas avisaram-me logo que dificilmente iria conseguir uma vaga. Ele devia ter entrado em Março deste ano e como era a meio do ano lectivo deram-me logo a entender que iria ser muito difícil”, conta.

Em Janeiro começou a insistir no pedido, de novo, mas nada mudou. “Chegou a altura de ele entrar na creche e não havia vaga. Não tenho apoio familiar perto, por isso ou fazia prolongamento da licença parental, o que a minha entidade patronal não aceitou, ou ficava em teletrabalho. Acabaram por aceitar esta alternativa, mas não foi muito bem visto”, diz a engenheira química.

Sónia X. (pede para ser identificada apenas assim) esperou alguns meses, mas conseguiu resolver o problema. O filho conseguiu, finalmente, vaga numa creche do sector social. “Entrou hoje [nesta terça-feira] na creche. Estive em casa com ele até agora. Agora vou voltar ao trabalho normalmente.”

A “saga”, como Tânia se refere ao processo de tentar encontrar uma vaga gratuita numa creche, terminou para Sónia. Mas não para muitas outras famílias. Bianca admite mesmo sair de Portugal, se não conseguir “adaptar e mudar” a situação actual, como já fez noutras alturas da vida. “Posso ter de dar início a outros caminhos”, diz. Uma creche gratuita ajudava muito.