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18.11.15

Linha SOS-Criança recebeu 298 apelos sobre violência sexual

in Público on-line

Dados do Instituto de Apoio à Criança dizem respeito aos últimos cinco anos. Primeiro Dia Europeu sobre a Protecção de Crianças contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual assinala-se nesta quarta-feira.

O serviço SOS-Criança recebeu quase 300 apelos relacionados com situações de possíveis vítimas de violência sexual. Os dados, relativos aos últimos cinco anos, representam 2,16% do total das chamadas recebidas por esta linha, adiantou o Instituto de Apoio à Criança (IAC).

Apesar do valor global, segundo os dados do IAC, citados pela Lusa, o número de apelos relacionados com este tipo de crimes tem vindo a descer ligeiramente nos últimos cinco anos: 76 em 2010, 74 em 2011, 65 em 2012, 43 em 2013 e 40 em 2014. Assim, entre 2010 e 2014, a linha SOS-Criança Desaparecida e Abusada Sexualmente recebeu um total de 298 apelos relacionados com alegados crimes de violência sexual sobre crianças.

“Desde 1988 que os técnicos do serviço recebem apelos de crianças e jovens que são abusados sexualmente ou que pedem esclarecimentos” sobre o que fazer nestas situações, disse o secretário-geral do IAC, Manuel Coutinho. Lembrando que “a violência sexual contra as crianças é um crime gravíssimo e devastador que tem de ser denunciado”, o psicólogo defendeu a importância de “cada um de nós” diligenciar no sentido de prevenir “todo mal-estar que é causado às crianças”.

“Prevenir é, em primeiro lugar, esclarecer as crianças, dizer-lhes que elas têm o direito sobre o corpo delas e que, por exemplo, debaixo da roupa interior ninguém pode tocar, é uma zona íntima”, explicou o também coordenador do SOS-Criança.

Manuel Coutinho defendeu que, desde muito cedo, as crianças devem ser incentivadas a falar sempre que existam situações que as deixem constrangidas. “As crianças sempre que se sentirem desconfortáveis não devem ter medo de contar a alguém aquilo que se passa, seja ao pai, seja à mãe, ao professor ou ao médico”, frisou.

Fazendo uma análise dos últimos 15 anos, o IAC refere que a o serviço recebeu, neste período, 1095 apelos a denunciarem este tipo de situações. Os anos que registaram o maior número de apelos foram 2004 (146) e 2005 (126), indicam os dados divulgados a propósito do Dia Europeu sobre a Protecção de Crianças contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual, que se assinala pela primeira vez nesta quarta-feira, por iniciativa do Conselho da Europa.

Manuel Coutinho explicou que “há uns anos” houve um “incremento de apelos e preocupações em relação aos abusos sexuais” causado pelo fenómeno Casa Pia, que fez com que “muita gente ficasse alerta” e denunciasse situações de crianças abusadas. Passada esta situação, os casos, “infelizmente, continuam a acontecer”, mas “temos também a percepção que a sociedade está mais consciente, que denuncia mais facilmente as situações e já não silencia”.

“As pessoas passaram a acreditar nas crianças que dizem que estão a passar por uma situação de abuso sexual”, disse o psicólogo, que apelou aos pais, médicos, educadores para estarem atentos a comportamentos que não são habituais na criança. Numa situação de abuso sexual, as crianças não dizem claramente o que lhes aconteceu, mas começam a ter, por exemplo, pesadelos, infecções urinárias, baixo rendimento escolar, choram muito, acrescentou.

Manuel Coutinho destacou a importância da data que se assinala nesta quarta-feira, justificando a prevenção destes crimes também passa pelo conhecimento dos serviços que lutam contra este fenómeno. O IAC foi pioneiro nesta luta ao criar o SOS-Criança, uma linha telefónica gratuita (11611) que funciona 24 horas por dia e 365 dias por ano.

Dados do Conselho da Europa indicam que cerca de uma em cada cinco crianças na Europa é vítima de alguma forma de violência sexual, estimando-se em 70% a 85% dos casos, o abusador é alguém que a criança conhece e em quem confia.

3.7.15

Abandono: Aos 15 anos, Gabriel ficou a cuidar dos três irmãos

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Crianças abandonadas ou entregues a si próprias representam uma minoria no universo das problemáticas que chegam às comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ). Mas todos os anos desde 2010 estas situações ganham expressão. Uma das razões: o trabalho dos pais fora de horas ou no estrangeiro.

No dia em que os pais emigraram para França, Gabriel ficou a cuidar dos três irmãos. Com 15 anos, assegurava em casa aquilo que antes era assegurado pelos pais: comida, trabalhos da escola, roupa lavada. O casal deixara a Gabriel (nome fictício) um cartão multibanco. A todos deixara recomendações que cumpriam de forma organizada.

Os quatro rapazes mantinham na ausência dos pais as rotinas instaladas na presença deles. Ninguém, durante cinco meses, deu sinais de se aperceber da mudança na vida desta família – até chegar uma denúncia do senhorio da casa à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Sintra Oriental, onde a situação de Gabriel não era única e entrou na categoria de abandono ou criança entregue a si própria.

O número de crianças em situação de abandono ou entregues a si próprias representa uma pequena minoria (2%) no mapa de situações de perigo detectadas nas crianças e jovens com processo aberto nas 308 CPCJ de todo o país. Esta problemática é relegada para um plano secundário pela forte presença dos alertas por violência doméstica, exposição a comportamentos que comprometem o desenvolvimento e o bem-estar da criança ou do jovem, negligência ou maus-tratos físicos.

Mas nas estatísticas globais para todo o país, anualmente publicadas nos relatórios da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR), o abandono surge como estando a aumentar, todos os anos, pelo menos desde 2010. Nesse ano, havia 1224 situações de abandono sinalizadas. Em 2014, de acordo com o relatório divulgado no início de Junho, houve 1456 situações por abandono diagnosticadas.

Na CPCJ de Sintra Oriental, em particular, o abandono é actualmente uma das problemáticas que mais preocupam pelo aumento muito acentuado de sinalizações. O alerta deu-se entre 2013 e 2014, quando o número de processos abertos (não apenas porque ambos os pais emigraram) passou de quatro para 28. E mantém-se este ano, com 22 situações por abandono nos primeiros seis meses deste ano, até 30 de Junho, quase atingido o total de todo o ano de 2014 – ou porque há mais casos ou porque há mais denúncias.

Já este ano, a polícia foi chamada porque duas crianças de três e cinco anos estavam sozinhas em casa. As crianças ficavam sozinhas durante a noite, de forma sistemática. A menina de cinco anos cuidava da mais nova: aquecia o leite, dava-lhe o biberão. Nessa madrugada, a mãe chegou já o sol nascera. As crianças foram entregues a uma tia.

Este é um caso extremo. Mas existem “muitos alertas de crianças que estão regularmente em casa sozinhas”, diz Sandra Feliciano, presidente da CPCJ de Sintra Oriental, que conta como um menino de oito anos se regulava pela hora dos desenhos animados para saber a altura de sair para a escola.

Ausência e abandono
O abandono de crianças pode tomar várias formas: ausência temporária ou permanente de apoio (este último pode acontecer quando há abandono efectivo ou entrega a um familiar que não é bom cuidador), ou abandono à nascença ou nos primeiros meses de vida. Esta última tem vindo a perder expressão, no sentido inverso ao dos abandonos porque ambos os pais emigraram.

“São muitos os pais que estão a sair do país. Deixam os filhos com amigos ou familiares mas estes, com o passar do tempo e o crescimento das crianças, esquecem-se de que tinham uma responsabilidade. Deixam de assumir esses cuidados ou de estar atentos”, diz Sandra Feliciano, presidente da CPCJ de Sintra Oriental, que engloba o Cacém, São Marcos, Agualva, Mira Sintra, Queluz, Belas, Massamá, Monte Abraão e Casal de Cambra e está entre as cinco maiores CPCJ do país.

“Estes miúdos, quer estejam em abandono efectivo quer estejam em abandono emocional, não conseguem estar bem na escola. Estão a gerir abandonos. Tudo à sua volta está comprometido. Não se conseguem projectar no futuro. O que lhes adianta terem boas notas se os pais não estão lá?”, questiona.

Mais tarde, é nestas ausências de apoio familiar que surgem os problemas comportamentais ou percursos delinquentes, quando “não deram sinal anterior de serem um abandono”, explica a responsável.
“Muitos destes miúdos ainda nos escapam. Mas sabemos através do trabalho em parceria com as entidades de primeira linha [creches, escolas], que muitas crianças estão a ficar em Portugal quando os pais emigram. Alguns pais estão a informar as escolas e as creches que vão deixar os filhos com um familiar porque vão emigrar”, diz Sandra Feliciano. Por isso, diz, é urgente alertar a comunidade para estar atenta a estas situações “muito presentes e cada vez mais presentes”.

Pelo comportamento “correctíssimo” que assumiam, Gabriel e os irmãos “facilmente escaparam às malhas do sistema” durante meses. A responsável acredita pois que, por cada história de abandono conhecida, haverá pelo menos uma história oculta.

Em Sintra, estas situações acontecem sobretudo em famílias imigrantes que agora regressam aos países de origem já depois de fazerem a vida em Portugal. Partem por razões económicas, com o projecto de voltar a Portugal, mas nem sempre voltam. Deixam os filhos com pessoas que nem sempre assumem o papel de cuidador. Sandra Feliciano descreve o caso de um tio, que ficara responsável pelos três sobrinhos, entre 10 e 15 anos. “Passava dias a fio sem ir ver os miúdos. Eles não estavam bem. Foram sinalizados pela escola.” Os pais não voltaram e as crianças foram acolhidas numa instituição.

"Decisões difíceis"
Não é possível identificar estas situações como estando presentes nas 308 comissões de protecção do país, uma vez que os relatórios nacionais não distinguem este fenómeno de outros, na categoria de abandono. Também não é perceptível um aumento destas situações nos dados tratados pelo Instituto de Apoio à Criança (IAC).

Porém, também Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e coordenador da equipa da linha de atendimento SOS Criança (116 111), acredita que os números conhecidos não revelam a verdadeira dimensão desta problemática. “É um fenómeno que está a aparecer. Em situação de crise, as crianças são as primeiras vítimas a sentirem o fenómeno na pele”, diz o psicólogo.

"Muitas vezes, por falta de recursos, as famílias são forçadas a tomar a difícil decisão de partir para o estrangeiro ou de deixar os filhos sozinhos em casa quando vão trabalhar", acrescenta. E na comunidade “há tendência a compreender a situação dos pais que tomam estas opções". Estas situações não ficam registadas, porque não há conhecimento delas. “Mas existem”, conclui Manuel Coutinho.

A presidente da CPCJ de Vila Nova de Gaia Norte Paula Fernandes diz que as situações de abandono estão agora mais presentes na sua comissão, não tanto por situações de emigração, mas porque têm surgido, com mais frequência, situações de mães que abandonam o lar e deixam os filhos com o pai, não sendo este um bom cuidador (por ser um pai ausente ou alcoólico) ou porque vão trabalhar e deixam as crianças com avós ou outros familiares “num contexto que não é adequado” e onde por vezes também surgem situações de perigo.

Paula Fernandes também relata o caso de crianças acompanhadas por uma pessoa diferente todos os dias porque vivem em famílias monoparentais, e o pai ou a mãe trabalha por turnos: desde madrugada ou pela noite dentro. Na realidade, diz, “estão entregues a si próprias”. E embora o abandono esteja pouco representado na lista de problemáticas da CPCJ de Vila Nova de Gaia Norte, uma das maiores do país, está a aumentar: as cinco situações diagnosticadas em 2011 e 2012 passaram a 12 no ano passado. Só em 2013, surgiu a situação de um rapaz de 15 que ficou a viver sozinho quando a mãe emigrou para França. Quando esta foi contactada, aceitou o acordo de promoção e protecção do filho: a institucionalização.

Também Gabriel e os três irmãos foram acolhidos numa instituição. Uma vez que a mãe começou por estar incontactável, foi necessário accionar o procedimento de urgência de retirada, por situação de perigo iminente, sem o consentimento dos pais. “Os miúdos tinham a preocupação de não ficarem separados”, diz Sandra Feliciano. E não ficaram. A retirada para uma instituição foi imediata, mas foi breve. “Quando devolveu o nosso telefonema, a mãe ficou aflita.” Esta mãe, acredita Sandra Feliciano, saiu de Portugal “por necessidade”. E desde que regressou poucos dias depois, não voltou a emigrar.

3.12.14

A revolução dos Direitos da Criança

Dulce Rocha e A. Reis Monteiro, in Público on-line

Diz-se que a riqueza das nações está no seu povo. Pode-se dizer que o tesouro de um povo está nas suas crianças. As crianças são a utopia da humanidade. O direito à educação é o mapa e a bússola dessa utopia.

A Convenção sobre os Direitos da Criança está a comemorar 25 anos: foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989. Este é o Dia Internacional da Criança, embora, a nível nacional, o Dia da Criança seja comemorado em datas variáveis.

A 9 de Dezembro de 1948, quando o projecto de Declaração Universal dos Direitos Humanos começou a ser debatido no plenário da assembleia geral das Nações Unidas, Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão dos Direitos Humanos que tinha elaborado o projecto durante cerca de dois anos, disse que a Declaração Universal “pode muito bem tornar-se a Magna Carta da humanidade”. Assim aconteceu. Também a Convenção sobre os Direitos da Criança pode ser considerada a Magna Carta da Criança. É o instrumento jurídico internacional mais completo sobre os direitos da criança e único no Direito Internacional dos Direitos Humanos: é o mais extenso tratado sobre direitos humanos, aquele que mais rapidamente entrou em vigor e o mais universal, pois já foi ratificado por 194 Estados (mais do que o número de Estados-membros das Nações Unidas que, nesta data, são 193). A sua aplicação pelos Estados-partes é supervisionada pelo Comité dos Direitos da Criança que, com a adopção (em 2012) e entrada em vigor (em 2014) do Protocolo Adicional à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo a um procedimento de comunicações, ficou também habilitado a receber queixas (“comunicações”) por violação dos direitos da criança.

A Convenção sobre os Direitos da Criança representa um aprofundamento histórico do ideal libertador dos direitos humanos. Tem uma significação revolucionária, reconhecida tanto pelos seus defensores como pelos seus detractores: significa o fim da discriminação das crianças apenas por serem crianças, o fim da sua invisibilidade jurídica. É o reconhecimento de que as crianças são iguais aos adultos em dignidade e direitos, e com mais direitos ainda, dada a sua imaturidade, dependência, vulnerabilidade e necessidades de desenvolvimento. A revolução dos Direitos da Criança resume-se nesta ideia recorrente na jurisprudência internacional e nacional: uma criança não é "objecto" de propriedade de ninguém. Os direitos dos adultos relativamente às crianças são meramente funcionais, isto é, derivam das suas responsabilidades.

A espinha dorsal do corpus da convenção é o primado do interesse superior da criança. É um princípio afirmado por muitas Constituições e leis gerais sobre as crianças e os seus direitos, por vezes em termos mais fortes do que na própria convenção. Esta não o define mas, segundo o Comité dos Direitos da Criança, deve ser interpretado no seu quadro normativo, isto é, sempre de um modo compatível com o respeito da dignidade e direitos da criança. Pode ter, no entanto, um conteúdo metajurídico, cuja determinação requer o contributo de outros saberes profissionais.

O princípio do interesse superior da criança prolonga-se no princípio da prioridade das crianças, proclamado em textos internacionais e nacionais. É um imperativo das necessidades e possibilidades próprias da infância enquanto idade frágil mas crucial para o devir individual e colectivo. Por exemplo, o “plano de acção” adoptado pela Cimeira Mundial para as Crianças que teve lugar na sede das Nações Unidas, em 1990, afirmava: “Nenhuma causa merece mais elevada prioridade do que a protecção e o desenvolvimento das crianças, de que dependem a sobrevivência, a estabilidade e o progresso de todas as nações – e, no fim de contas, da civilização humana”.

Portugal teve uma participação destacada na preparação da Convenção sobre os Direitos da Criança, mas falta uma estratégia nacional global para a sua aplicação e um mecanismo de coordenação das políticas e programas correspondentes. Porque não "ressuscitar" a Comissão Nacional dos Direitos da Criança criada em 1996 e extinta em 1999? Há no mundo mais de 60 instituições nacionais análogas, com denominações e mandatos variáveis. A Assembleia da República atribuiu o seu Prémio Direitos Humanos 2014 ao Instituto de Apoio à Criança.

A revolução dos Direitos da Criança é uma revolução jurídica, com ampla ressonância no Direito da Família e no Direito da Infância, mas é sobretudo uma revolução cultural de grande alcance. Tem as mais profundas implicações no campo da educação, em particular, dada a sua essencialidade humana e centralidade na vida das crianças. Com efeito, o fundamento da dignidade humana é o valor antropológico que reside na perfectibilidade da espécie, a qual requer um aperfeiçoamento que consiste num segundo nascimento para uma segunda natureza – a natureza especificamente humana – através da educação. Um ser humano nasce para renascer. É por isso que pode ascender à sublimidade ou descer a uma crueldade de que mais nenhum animal é capaz.