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6.5.20

"Assim que puder procuro emprego." A história de um recluso a quem o vírus deu liberdade

Por Beatriz Morais Martins, in TSF

O testemunho de um recluso que, por causa da pandemia do novo coronavírus, foi libertado sem cumprir a pena completa.

O jovem de 25 anos faz parte do grupo dos dois mil reclusos que o Governo decidiu libertar

O telefone tocou durante algum tempo, mas a chamada não foi em vão. Deu a conhecer a voz, mas não o nome nem o rosto. Também não lhe faremos um batizado fictício.

A voz trémula do outro lado do telefone é de um jovem de 25 anos que faz parte do grupo dos dois mil reclusos que o Governo decidiu libertar, como medida de combate à propagação do novo coronavírus.

Faltava-lhe um ano e meio para cumprir a pena, por isso foi-lhe concedido o perdão para que pudesse sair em liberdade. Um dos requisitos para essa liberdade era ter uma morada, mas a que tinha indicado, não tinha condições para o receber.

Nessa altura, em que lhe faltou teto, surgiu a Associação Confiar. É lá que cumpre o confinamento e cura as feridas nos pés que trouxe da prisão.

"Soube da Covid-19 pela televisão. E estou a proteger-me. Desinfeto bem as mãos, lavo bem as louças da refeição e as mesas. Tem sido sempre assim", garante o jovem.

A tão esperada liberdade surgiu-lhe quando menos esperava, por isso admite estar um pouco desorientado com a situação. Porém, a confusão não lhe tolda a motivação.

"As coisas têm estado paradas, mas assim que puder procuro emprego", garante.

A Covid-19, que obrigou o mundo a confinar-se, foi a oportunidade para começar de novo mais cedo e, desta vez, deu "valor a certas coisas a que antes não dava. Agora é ter força de vontade".

Luís Gagliardini Graça, o presidente da CONFIAR, revela que ao abrigo da lei sobre a Covid-19 esta associação apoia cerca de 25 ex-reclusos. O apoio estende-se às famílias, sendo que objetivo passa pela reinserção, mas também prevenir que as famílias dos ex-reclusos passem dificuldades.

O presidente da associação garante que a aposta na reinserção beneficia todos. "Cada recluso custa, de custos diretos aos impostos de todos nós, 20 mil euros por ano. Portanto todos os reclusos que podermos acompanhar e apoiar na reinserção são menos 20 mil euros por ano que estamos a deixar de gastar", sublinha.

O presidente da CONFIAR estima ainda que o Estado poupe quatro milhões de euros com a libertação dos dois mil reclusos e defende que esse montante seja reinvestido nas organizações e associações que prestam apoio à reintegração de ex-reclusos na sociedade.

As estatísticas revelam que 75% dos ex-reclusos voltam a cometer crimes, por isso, o presidente da CONFIAR entende que esta pandemia da Covid-19 pode servir de oportunidade para repensar o sistema prisional e o trabalho de reinserção social que deve ser feito.

É preciso uma ajuda personalizada. Para tal, "o trabalho em rede é fundamental porque apela à subsidiariedade, ou seja, quem está no terreno tem melhores condições para apoiar os ex-reclusos e as suas famílias do que a segurança social, que trata todos por igual", explica Luís Gagliardini Graça.

O presidente da CONFIAR dá o exemplo da Holanda como aquilo que deve ser feito em Portugal: "Tomaram consciência do problema de forma conjunta. Graças à intervenção das organizações não-governamentais e do Estado, o número de reclusos tem vindo a diminuir."


7.4.20

Um Estado decente não abandona os seus cidadãos, mesmo os presos

Francisca Van Dunem, in DN

Na passada quinta-feira, 2 de abril, o governo aprovou, para submeter ao Parlamento, um conjunto de medidas com vista a prevenir a propagação do covid-19 entre a população prisional. São medidas que conduzirão ao cumprimento de penas em regime de prisão domiciliária, medidas que conduzirão à libertação de condenados por crimes de baixa densidade ou em cumprimento de final de pena e de presos com idade superior a 65 anos, em situação de saúde frágil. Estão excluídos do universo desta intervenção os condenados por crimes hediondos, como homicídios, roubos ou crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual.

São razões de índole humanitária, inscritas no código de honra de qualquer sociedade de homens, que levam a que não se mantenha em situação de sobre-exposição ao risco de epidemia os cidadãos mais frágeis, sobretudo quando estes se encontram à guarda do Estado.

O envelhecimento da população prisional - a de Portugal é a quarta mais idosa da União Europeia -, a elevada prevalência de problemas de saúde, associados ao envelhecimento do edificado prisional e à grande concentração de reclusos em alguns estabelecimentos tornam o ambiente propício a uma catástrofe sanitária em caso de introdução do vírus nas cadeias.

A Organização Mundial da Saúde, num documento recente sobre os riscos do covid-19 nas prisões, intitulado "Preparedness, prevention and control of covid-19 in prisons and other places of detention", sugere uma estratégia de abordagem com três passos essenciais: prevenir a introdução do vírus nos estabelecimentos prisionais, estancar a cadeias de contágio e evitar a propagação na comunidade.

As Nações Unidas vieram, ainda, através da alta-comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, exortar os Estados a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar reclusos particularmente vulneráveis ao covid-19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.

Internamente, a Provedora de Justiça emitiu uma recomendação no sentido da adoção de um regime de flexibilização das licenças de saída, que permita libertar o espaço interno das prisões, favorecendo uma gestão que assegure o distanciamento adequado para evitar a propagação da doença e criar espaços de separação entre os reclusos contaminados ou suspeitos de contaminação e os demais.

Na sociedade ouviram-se múltiplos apelos humanitários formulados por representantes de instituições civis e religiosas.

A adoção de medidas desta natureza implica uma aturada ponderação, de molde a assegurar o equilíbrio entre os deveres de proteção da população reclusa, o respeito pelas vítimas, as exigências de paz pública e de estabilização dos sentimentos de segurança dos cidadãos, tudo funções que compete ao Estado assegurar.

Um conflito de interesses com esta magnitude e este melindre justifica que, no recorte concreto das medidas, se implique todos os órgãos de soberania - para uma melhor garantia da sua adequação e proporcionalidade.

A Itália, a França, a Espanha, a Irlanda, a Alemanha (Renânia do Norte-Vestefália) adotaram medidas de libertação de presos, confrontadas com o risco de propagação do vírus nas cadeias.

As medidas aprovadas pelo governo e que serão avaliadas pelo Parlamento permitem assegurar a proteção dos mais frágeis e a libertação do espaço prisional, sem pôr em risco insuportável a ordem e a tranquilidade públicas.


O que moveu o governo não foi o público clamor nem a mimetização do que aconteceu noutros países. Agimos em nome de uma ideia de decência do Estado.

Um Estado decente trata por igual os seus cidadãos. Protege-os na necessidade, acorre-lhes na desventura, pune-os se infringirem gravemente o pacto que nos une como comunidade. Encarcera-os mas trata-os com dignidade. Um Estado decente não abandona os seus cidadãos, mesmo os presos.

O Estado que arrisca condenar à morte, dizimados por uma epidemia, milhares de cidadãos porque são condenados é um Estado doente. É a insânia institucionalizada.

Ao fazermos esta proposta honramos a tradição humanitária de um país que foi pioneiro na abolição da pena de morte, ao mesmo tempo que reafirmamos a dignidade da pessoa humana como referência central da nossa vida em comunidade.

Ministra da Justiça