1.6.07

"Sou o pai da ideia de um tratado simplificado"

José Leite Pereira, Paulo Martins e Célia Marques Azevedo, correspondente em Bruxelas, in Jornal de Notícias

Entrevista» Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia


Durão Barroso senta-se diante de um quadro de Noronha da Costa. Outros nomes das artes portuguesas podem ser vistos no 13º andar do edifício Berlaymont Palolo, Rui Chafes e Menez, entre muitos outros artistas, têm obras, cedidas pela Gulbenkian, no piso onde o presidente da Comissão Europeia tem o seu gabinete. É uma marca portuguesa. Propositadamente. Tudo é amplo e sóbrio. Madeiras claras denunciam a origem nórdica de quem recuperou o edifício. Não é um ambiente muito acolhedor. Estamos em Bruxelas, como podíamos estar noutro sítio sem marca própria. Ao contrário, o gabinete, que Durão nos mostrou no final da entrevista, é bem mais acolhedor: muitos quadros, fotos com personalidades mundiais, a maioria autografadas, assinalam um percurso político já longo e cada vez mais na primeira fila. Um percurso que lhe dá um grande à vontade para abordar qualquer tema e uma enorme descontracção, que perduraria, aliás, ao longo dos 55 minutos de entrevista com o JN.

Jornal de Notícias | Iniciou funções quando 15 estados integravam a União Europeia (UE). Agora são 27. É mais difícil o governo do que quando começou?

Durão Barroso |Chego à conclusão, aparentemente paradoxal, de que a tomada de decisões é mais fácil agora. É claro que isto envolve uma maior disponibilidade para o consenso. Há todo um trabalho, do presidente, do seu gabinete e do secretariado para preparar a montante as decisões. Até hoje, todas as decisões foram tomadas por consenso, não tem havido votações - na comissão anterior houve. Não tenho nada contra o voto, obviamente, mas é significativo que se tenha conseguido, mesmo em questões extremamente complexas, que haja espírito europeu e que comissários de famílias políticas e de países diferentes - e até com experiências culturais diversas - tenham conseguido chegar sempre a acordo.

A ideia de instituir o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros europeu, que acaba de relançar, tem a ver com a necessidade de ganhar alguma maleabilidade?

É o que está no projecto de tratado constitucional. Sou favorável, porque o que se passa hoje é que temos um alto representante para a política externa - o senhor Solana - que responde perante os estados-membros e há a Comissão Europeia que tem competências em matéria de política externa e da dimensão externa de políticas internas. A UE ganhava se juntasse estas duas valências - a dimensão da política externa e de defesa e a dimensão comunitária. O que está no tratado é que haja um ministro dos Negócios Estrangeiros que será, ao mesmo tempo, vice-presidente da Comissão Europeia. Neste momento, há estados-membros a quem não agrada a designação de ministro dos Negócios Estrangeiros, porque dá a ideia de a União ser uma espécie de Estado, mas penso que vai haver consenso para existir a figura, com esse ou outro nome. Se assim for, dará mais coerência à UE na sua relação externa.

Em Abril, dizia que a União estava numa situação de ponto morto institucional e mostrava-se favorável a que o tratado ratificado por 18 países fosse a base do futuro tratado. Hoje defende, ou pelo menos não contraria, um tratado simplificado. É uma evolução para procurar consensos ou estamos a falar da mesma coisa?

É a mesma coisa. Aliás, há dias, na conferência de imprensa do presidente Sarkozy, ele próprio fez uma revelação, a de ter sido eu a sugerir-lhe que abandonasse a designação de "minitratado" e passasse a adoptar a de tratado simplificado. Portanto, de certa forma, eu sou o pai da ideia de tratado simplificado. Mas um tratado simplificado, a partir do projecto de tratado constitucional. Há ainda quem defenda que devíamos começar tudo do zero, porque o tratado, que foi rejeitado em dois países e poderia ser rejeitado noutros, não deveria ser a base. Defendi que a partir desse tratado poderíamos chegar a uma versão mais compacta, não tão extensa.

Menos ambicioso?

Não, não. Eu gostaria que não, mas vou ser muito sincero há quem queira que isso aconteça. A Comissão Europeia está do lado da maior ambição, mas precisamos de encontrar um ponto de compromisso, de consenso que reúna todos os estados-membros.

Com uma versão reduzida, concordará que será difícil manter a ambição de incluir algumas políticas?

Para o tratado só irá o que é novo, continuando em vigor os tratados anteriores, Amesterdão e Maastricht. O que estava em cima da mesa era uma versão extensa, um tratado que anulava os anteriores. Esta linha está a ser abandonada. O que se espera é que cheguemos a um mandato durante o Conselho Europeu de Junho, para fixar o quadro e até o calendário da negociação, para uma conferência intergovernamental que decorrerá durante a presidência portuguesa. Pode até suceder que as negociações se concluam durante a presidência portuguesa. Por isso é que a reunião de Sintra foi importante. Ajudou-nos, ainda que informalmente, a centrar as nossas perspectivas.

É favorável, por exemplo, a que mais decisões sejam tomadas por maioria qualificada?

Nesse aspecto, sou favorável ao que está no projecto de tratado dupla maioria, de estados e cidadãos, e um recurso mais frequente à maioria qualificada. Aí sim, pode fazer diferença o número de estados-membros: exigir unanimidade quando somos 27- e mais tarde provavelmente mais - é diferente de quando éramos 12 ou 15. Há três razões fundamentais para um novo tratado. Uma é ganharmos eficácia no processo de decisão; a outra tem a ver com o facto de precisarmos de mais mecanismos de controlo democrático no Parlamento Europeu - e associando de certa forma os parlamentos nacionais; a terceira razão é a que vimos há pouco, a criação da figura do ministro dos Negócios Estrangeiros.

É ao nível externo que se sente a falta de coerência? Internamente, a União funciona, mas, por vezes, não tem uma voz única para o exterior?

A UE não é um Estado. É uma organização sui generis… Não é uma organização internacional, como a ONU, a OTAN ou a OSCE; é muito mais do que isso. Há elementos que nos comparam com as ordens jurídicas nacionais, mas não somos um Estado. Por isso, do ponto de vista da Comissão, é desejável mais coerência em termos de política externa, mas também não podemos viver constantemente desiludidos ou até frustrados quando constatamos que não somos um Estado. Não somos porque os países que compõem a União não estão a pensar nisso. O que é desejável é que os estados aceitem progressivamente uma maior integração das políticas, para fazermos valer mais os nossos interesses.

O que pensa da possibilidade de, como propôs Romano Prodi, a UE evoluir a duas velocidades, com um "pelotão da frente", se não se reunir consenso em torno de um novo tratado?

Tenho dito consistentemente que as cooperações reforçadas - um grupo de países que se põe de acordo para avançar numa determinada área - podem ser úteis em termos de acrescida flexibilidade, mas não podem ser a solução para a questão institucional, se isso significar estratificação. Criar uma União com uma primeira e uma segunda divisões parece-me um erro fundamental. Aliás, no tratado constitucional estão previstas as cooperações reforçadas. Mas cooperações reforçadas casuísticas e não o que às vezes ouço circular como ideia, uma espécie de um círculo da frente, pioneiro, e um grupo de trás. Isto atinge o núcleo de identidade de uma união, pondo em causa a ideia de solidariedade. É uma discriminação e não posso apoiar isso. Vamos ser claros nem há hipóteses de se avançar nesse sentido, porque não há massa crítica suficiente. Os próprios países de maior dimensão recusam isso.

Até onde será possível chegar a flexibilidade? Há dias, na conferência de Imprensa com Nicolas Sarkozy, dizia que não procuravam já o tratado ideal, mas um tratado que pudesse reunir consenso e dar força à UE. Isto não poderá nivelar por baixo?

É uma regra de qualquer união. Num casal, se me permite a comparação, têm de estar os dois de acordo; não basta um.

Mas neste caso é um casal... de 27.

É mais excitante (risos). Mas se aqui tivermos 12 países de um lado e 15 do outro, não temos uma união, temos os germes de uma divisão. Ora nós queremos uma União Europeia. Dá mais trabalho, é certo, mas a história da construção europeia tem sido sempre essa, de procurar encontrar um equilíbrio entre ambição e realismo. A verdade é que em anteriores alargamentos não diminuiu a sua vontade integradora; pelo contrário. Estamos numa fase de transição. Não vejo, ao contrário do que alguns sugerem, que a ambição europeia tenha diminuído. O que se passa é que, com diferentes sensibilidades, os países têm quase todos interesses positivos, do ponto de vista de maior integração. Às vezes, não são os mesmos dos outros, mas como depois há negociações... Um exemplo concreto conseguimos, no Conselho Europeu de Março, avançar com o pacote da energia e das alterações climáticas. Honestamente, nem todos os países tinham o mesmo entusiasmo com a agenda das alterações climáticas, mas como fizemos um pacote onde estavam várias matérias...

Cada um pôde rever-se um pouco no que foi negociado...

Exactamente. Por exemplo solidariedade energética. Há países que a reclamam e precisam muito dela. Nem sempre são os mais entusiastas por uma política ambiciosa do ponto de vista ambiental, mas aceitaram o pacote porque tiveram a sua parte. Outros são mais entusiastas do mercado interno. Aqui é que está, de facto, o milagre da UE: conseguir acordos em que cada um se revê. São mais difíceis a 27 do que a 12, claro. Mas, por outro lado, não se confirma a ideia de que tenham de ser sempre acordos para baixo. Podem ser acordos para cima. Em que precisamente um diz: "Aceito isso; não é a minha prioridade, mas aceito, visto que aqui há aspectos favoráveis". Mantenho a minha confiança, agora confirmada por esta experiência, de que é possível a UE avançar a 27. Não podemos é ser impacientes; temos de dar algum tempo ao tempo. Passámos um período difícil, com a recusa do Tratado Constitucional, que foi aprovado por todos os países e depois não foi ratificado por todos. Foi uma nuvem que projectou uma sombra sobre a construção europeia, mas estamos a sair dessa fase.

Teve recentemente um encontro com o presidente francês. A ideia que passou para fora foi que correu muito bem...

Já o conheço há algum tempo. Tenho por ele muita estima, que julgo ser recíproca. O presidente Sarkozy é um político com grande energia, grande vontade. Alguém que vai trazer uma contribuição importante. Estou seguro que para a França, do ponto de vista da sua vontade reformadora. Espero que também ponha essa energia ao serviço da Europa. Prefiro um líder político que eventualmente não concorde comigo, mas tenha "input" político, do que alguém que seja burocrático, formal. Julgo que Sarkozy vai trazer mais liderança para o Conselho Europeu, o que me parece positivo. Tenho uma excelente relação com ele. Noto que na conferência de Imprensa após o encontro, surgiu um gesto muito importante pela primeira vez, na fotografia oficial de um presidente francês aparece a bandeira europeia. Foi a primeira vez que um presidente francês veio à Comissão Europeia e logo no início do seu mandato. Não digo que tenhamos de concordar em tudo, mas penso que vai trazer maior liderança ao conjunto da UE.

A irredutibilidade dele em relação à não entrada da Turquia não pode constituir um obstáculo?

Não... O que o presidente Sarkozy disse foi que continua a pensar que a Turquia não deve ser membro da UE, opinião que obviamente temos de respeitar e que foi um compromisso eleitoral. Mas penso que não vai impedir a abertura de mais negociações, dos três capítulos que estão agora em causa. Isso é positivo. De qualquer maneira, também não seria nestes próximos anos que a Turquia entraria. Neste momento, não está preparada para entrar, nem nós preparados para a acolher. Por isso me parece que a atitude mais responsável é continuar as negociações, ajudar ao progresso da Turquia no sentido da modernização, de um estado democrático europeu...

Acha que isso tem acontecido?

Globalmente, sim. A situação na Turquia, comparando com o que se passava há uns anos atrás, é sem dúvida muito melhor.

E quanto aos alargamentos futuros?

É a questão mais difícil. Há de facto problemas na opinião pública europeia, que temos de enfrentar. Quanto à Croácia, estamos a avançar nas negociações. Também já concedemos um estatuto de candidato à Antiga República Jugoslava da Macedónia. E os líderes europeus declararam que os países balcânicos, uma vez resolvidas as suas dificuldades actuais, poderão aspirar um dia a ser membros da UE.

O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado, disse que é uma das prioridades da presidência portuguesa apoiar a possibilidade de adesão da Sérvia. Parece-lhe ser cedo para isso?

A Sérvia deu agora sinais muito positivos de uma verdadeira cooperação com o Tribunal Internacional de Haia, por causa de alguns criminosos de guerra que ainda não foram entregues. Isso é sem dúvida um sinal positivo. E nós estamos a procurar dar à Sérvia uma perspectiva europeia. No âmbito da ex-Jugoslávia, era a região mais próxima da UE - e até das mais avançadas, quer do ponto de vista de desenvolvimento económico, quer de pluralismo na sociedade. Hoje, por uma daquelas ironias históricas, países então mais afastados, como a Roménia ou a Bulgária, já são membros da UE. Os sérvios sentem-se um pouco injustiçados. Isto por causa da política ultranacionalista e criminosa de Milosevic. Estamos a tentar dar aos sérvios uma verdadeira perspectiva europeia...

Mas subsiste a questão do Kosovo...

... É preciso que eles também tenham a coragem de cortar radicalmente com esse passado nacionalista. Nós, Comissão, esperamos que aceitem plenamente as novas realidades, incluindo uma solução, no âmbito das Nações Unidas, para o Kosovo.

A aproximação desse grupo de países cria dificuldades na relação com a Rússia. É isso que mais pesa no dossiê russo?

A questão russa é mais complexa...

Não lhe parece sintomático que Putin tenha dito que é mais difícil lidar agora com a Europa, que se alargou para países sobre os quais a antiga URSS tinha influência, que ele aparentemente quer preservar?

Isso é melhor perguntar ao presidente Putin. Vejo no alargamento da UE uma perspectiva positiva para as relações com a Rússia. Temos vários países que fazem fronteira com a Rússia e só poderão ganhar com o crescimento económico da Rússia, cujo mercado está em grande desenvolvimento. Efectivamente, problemas do passado têm vindo ao de cima, criando alguma crispação. Faço votos para que sejam resolvidos. A nossa mensagem, com os russos, tem sido de empenhamento construtivo, porque podemos ambos ganhar com a relação. Mas esse empenhamento construtivo não exclui, pelo contrário pressupõe, um diálogo franco em matéria de direitos humanos. Precisamente porque consideramos que a Rússia faz parte da civilização europeia, ao mesmo tempo que saudamos os passos que deu no sentido da estabilidade, achamos importante a qualidade da democracia russa. Quanto maior for o progresso nesse plano, maior confiança haverá entre a UE e a Rússia. É aqui que temos tido algumas dificuldades no diálogo, como aconteceu recentemente em Samara. Mas penso que foi positivo. M ais vale falar francamente, reconhecendo as dificuldades com vontade de as ultrapassar, do que pretender que não existem.

Já teve vários encontros com Putin. Sente que tem havido uma evolução positiva ou que se marca muito passo?

Hoje, se olharmos a relação económica, houve progressos. O investimento recíproco e o comércio são melhores agora do que há três anos. Se olharmos também para as perspectivas de mais contactos entre cidadãos, é melhor agora. Entra em vigor a 1 de Junho um acordo para a facilitação de vistos e um acordo para a readmissão. Mas do ponto de vista político surgiram dificuldades, sobretudo em matéria de diálogo sobre direitos humanos. E surgiu este problema recente, que tem contaminado negativamente outras áreas, o das exportações de carne da Polónia para a Rússia.

O Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), pode ser aprovado em Junho?

A negociação está em curso, mas prevemos que será em Junho. Portugal consegue um resultado muito positivo. Muita gente dizia que com o alargamento teria dificuldades, mas o montante de fundos chegará aos 19 mil milhões de euros, praticamente o mesmo do período anterior. Isto só em fundos estruturais. O facto de a Comissão Europeia manter uma posição pró-coesão, a luta que travámos para conseguir fechar as perspectivas financeiras e manter uma política de coesão ambiciosa, foi essencial para que Portugal obtivesse esse volume de fundos. É muito dinheiro; espero que seja bem utilizado por Portugal, de maneira a que se traduza em maior competitividade do país.

Isso remete-nos para o tema da conferência do JN, sexta-feira (hoje), no Porto, sobre "A Europa e as regiões". O país está desequilibrado, profundamente desequilibrado. Como pode a Europa ajudar a fazer correcções?

Há aí dois pontos para esclarecer política regional é uma coisa, regionalização é outra. E há uma parte em que, por respeito pelo princípio da subsidiariedade, não posso entrar. As autoridades portuguesas é que têm de definir o que querem fazer em termos de regionalização. O que nós, aqui na Comissão Europeia, podemos fazer é apoiar o desenvolvimento através de fundos estruturais, regionais e de coesão.

É diferente quando o dinheiro é gerido por uma região eleita ou por um órgão desconcentrado do Estado?

Depende. Isso é uma decisão que tem de ser tomada em função de características nacionais. Nisso, não posso entrar. O que posso dizer é que em Espanha - mas Espanha tem uma dimensão maior - a política de regionalização, do ponto de vista económico, deu resultados evidentes. Isso é inquestionável; é um dado de facto, não uma opinião. Num país como Portugal, mais pequeno e com uma tradição histórica diferente... é um debate em que não devo entrar. Como político nacional, defendi as minhas posições, mas agora não o devo fazer. Compete às autoridades portuguesas julgar. Um ponto, no entanto, posso afirmar, porque não abdico da minha condição de português Portugal continua a ser um país muito centralizado, muito concentrado - é óbvio. Isso põe problemas, até de qualidade de vida nas zonas urbanas e de desertificação de algumas áreas. Há noutros países situações semelhantes e, em alguns casos, piores. Os recursos postos à disposição de Portugal pela UE representam um contributo muito relevante para que esse assunto seja enfrentado.

O presidente da Comissão Europeia pode pronunciar-se sobre o modelo de gestão do QREN adoptado pelo Governo português, que é acusado de ser demasiado centralista, de envolver pouco as autarquias?

Não, não vou entrar na política portuguesa. Qualquer comentário meu a isso poderia correr o risco de ser mal interpretado. Há um problema estrutural português, histórico, de muita centralização. Mas não estou a falar deste ou daquele Governo, nem pretendo fazer uma incursão na política portuguesa. Na UE, não temos de dizer aos países o que devem fazer em termos de descentralização. Não devemos dizê-lo, porque isso seria violar o princípio da subsidiariedade. Se defendemos que as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível dos cidadãos, não vamos ser nós aqui em Bruxelas a decidir o que cada país deve decidir democraticamente. O que fazemos é colocar recursos ao dispor dos países e das regiões mais carenciados, numa lógica de redistribuição. Compete às autoridades portuguesas avaliar o melhor modo de distribuir esses fundos.

Mostrou-se favorável à adopção de medidas de combate às deslocalizações, a propósito do caso da Delphi. Como é que a UE pode intervir a esse nível, uma vez que uma empresa, no interior da UE, pode mudar de país?

No interior da UE, há regras quanto a deslocalizações, no caso de estarem em causa fundos comunitários, para evitar a concorrência desleal. Já aumentámos o prazo. Se uma empresa recebe fundos comunitários, não pode usá-los para deslocalizar dentro da UE. Propus - e foi aceite pelos estados-membros, não sem dificuldade - um fundo de ajustamento à globalização, que já está a funcionar e já tem alguns pedidos, que estamos a analisar. Quando se prove que alguns trabalhadores são afectados por reconversões ou reestruturações imputáveis ao fenómeno da globalização, temos uma ajuda especial, nomeadamente em termos de formação, de requalificação, eventualmente subsídio ou apoio. Aos trabalhadores, não às empresas. Não é para manter empresas inviáveis. Portugal pode beneficiar deste fundo. Há trabalhadores portugueses, em determinadas áreas, especialmente expostos. Estou a pensar nos sectores têxtil e do calçado, por exemplo. É uma questão de demonstrar, em cada caso, que se verifica um efeito, um impacto devido a reestruturações originadas pela globalização. No caso concreto da Delphi, há possibilidades, no âmbito do Fundo Social Europeu. Pus a Comissão Europeia ao dispor das autoridades portuguesas e espanholas, para ajudar nessa área. Porque é um drama terrível as pessoas, algumas de idade avançada, perderem o posto de trabalho.

A presidência portuguesa surge num momento crucial para a vida da União Europeia. Qual pode ser, na sua opinião, o contributo de Portugal?

Já se está a notar. Quando a presidência portuguesa coloca como prioridade um maior impulso na relação com África, com a perspectiva de uma cimeira euro-africana em Lisboa, quando a presidência portuguesa - em boa colaboração com a comissão e a actual presidência alemã - mostra vontade de elevar a um novo patamar as relações com o Brasil, já há contribuição. Hoje mesmo (quarta-feira) a Comissão Europeia aprovou uma comunicação que, se for aceite pelos estados-membros, vai permitir que na cimeira de Lisboa com o Brasil, no início de Julho, seja estabelecida uma parceria estratégica UE-Brasil. Espero progressos nestas áreas, mas também onde haverá maior atenção mediática, no dossiê institucional. Seria muito bom que conseguíssemos, durante a presidência portuguesa, o desbloqueamento da questão institucional. Pode ser que aconteça… Não depende só da presidência portuguesa, depende de todos os estados- -membros. E há outras contribuições, no âmbito da Estratégia de Lisboa, em que conto com a tradicional propensão de Portugal para promover consensos. Portugal é hoje um país respeitado por essa capacidade para ver o interesse geral europeu, com sentido de equilíbrio.

A importância que dá à resolução do impasse institucional tem a ver com facto de não poder haver alargamento sem novo modelo?

Já o exprimi, mas de forma positiva precisamos de uma solução institucional para poder avançar. Precisamos de maior eficácia, maior legitimidade democrática e maior coerência no plano externo. Além disso, há uma razão que chamaria política, até psicológica: a credibilidade da União Europeia está em causa quando os governos decidem uma determinada fórmula e, depois, não são capazes de a pôr em prática. Temos dado passos concretos, desde a energia à protecção climática, à reabilitação da Estratégia de Lisboa ou à diminuição do preço do roaming (chamadas feitas para o estrangeiro e a partir do estrangeito) nos telemóveis. São vários os resultados, mas os vossos colegas perguntam: "Então a UE faz isso tudo e não consegue resolver a questão institucional?" Há aqui um problema de credibilidade. Eu até já usei uma expressão de Hitchcock: projecta-se a sombra da dúvida. Enquanto não resolvermos isso, temos sempre a sombra da dúvida. É por isso que trabalhamos muito, discretamente embora, apoiando sem reservas os esforços da presidência alemã. Faremos o mesmo com a portuguesa para que esse assunto seja resolvido.