Alexandra Figueira, in Jornal de Notícias
Nem todos têm o que é preciso para trabalhar por conta própria. Mas mesmo quem tem precisa sempre de ajuda.
Era para ser uma empresa de gestão de condomínios, com pequenas reparações à mistura, e chamar-se D. Branca, nome da ex-secretária, ex-estudante de cursos do Instituto de Emprego e, na altura, desempregada com mais de 35 anos, o habitual limite imposto por quem contrata.
Depois de passar o crivo da Associação do Direito ao Crédito (ANDC), nem o tipo de negócio nem o nome sobreviveram.
Ter sido secretária numa imobiliária, disseram-lhe, não chegava para dominar o impenetrável e concorrido mundo das empresas de condomínio. E baptizar a empresa com o seu nome podia fazer lembrar outra D. Branca, de "honestidade duvidosa", lembra. Acabou por se chamar Resultados Geniais (um bocado por acaso) e fazer só pequenas obras, arte há anos dominada por Antero Magalhães, companheiro de Branca e actual seu empregado.
Numa sala de um edifício de escritórios no Porto que estão a tornar habitável, Branca, Antero e o seu sobrinho dizem não ter mãos a medir. O negócio corre bem, muito por causa da reputação que Antero tinha no meio das pequenas obras. Mas o facto de trabalhar "solto" não o deixava chegar a certo tipo de clientes, como a empresa para a qual está a remodelar o escritório. A Resultados Geniais arrancou em Agosto do ano passado e o dinheiro do empréstimo serviu para comprar o furgão e substituir algumas máquinas mais antigas.
Branca não se tinha imaginado a trabalhar como "moço", mas ganhou-lhe o gosto e, pelo que diz Antero, não faz fraca figura. "A necessidade faz o engenho", responde a empresária.
Que o diga Sandra Costa, terceira filha de uma família de Cucujães, Oliveira de Azeméis, e uma veterana do microcrédito. Não houve intervalo entre o 9.º ano e o trabalho. Não queria vida de fábrica, foi para um cabeleireiro, tinha 14 ou 15 anos, já nem se lembra, do alto dos 28 que tem hoje. Mas ganhava mal e uma reviravolta na vida levou-a a mudar de rumo. "Nasceu a minha filhota e conheci o meu companheiro, que me deu a ideia de abrir um salão". Mudaram-se para Paços de Brandão, onde tinham visto a loja ideal. A confiança no projecto era tal que o arrendaram. "Vai fazer agora quatro anos", lembra.
O pior foi depois. Foi ao banco. "Bati à porta de quase todos. Mas a uma mãe solteira com o salário mínimo, quem é que empresta?" Até o crédito rápido (e juros assustadores) tentou. "Se fosse para ir de férias emprestavam", ri. Falaram-lhe do microcrédito, mas o primeiro contacto foi uma desilusão. "Só me aceitavam se tivesse a loja legal. E só a podia legalizar se fizesse obras. Mas como não tinha dinheiro...".
O círculo vicioso foi quebrado por um tio e um irmão. Entre eles, arranjaram as verbas. Fizeram-se as obras, veio a licença e, com ela, o microcrédito. Pagou a dívida à família e conseguiu outra coisa importante: "Agora tenho as portas do banco abertas, mandam-me cheques para casa e tudo", conta.
Este mês pagará a última prestação, mas continuará a pôr o dinheiro de lado, para quando se mudar para um espaço maior. "É o meu sonho, um salão grande". Para isso, precisa de aprender mais. O nono ano só lhe deu acesso a um curso de ajudante de cabeleireira e esteticista, demasiado curto para os objectivos de Sandra. Está no Novas Oportunidades, a tirar o 12.º.
As frases fortes repetidas ao longo da conversa mostram o treino em marketing dado pelo IPAM de Matosinhos, ao virar da esquina do escritório onde montou a Fora D'Horas. Tinha trabalhado na entrega de refeições ao domicílio, mas só de dia. "Vi a oportunidade e aproveitei-a". Pedro Ribeiro acredita que, eventualmente, "a noite será dia". Por isso, a ideia é: sete dias por semana, das oito da noite às quatro da manhã, no Porto e em Matosinhos, levar a casa ou ao emprego fraldas para bebé, cervejas, snacks, preservativos e um outras coisas que podem fazer falta. Os preços estão no site www.foradhoras.net.
Arrancou na véspera de S. João, um ano depois de ter recusado um emprego "certinho" na empresa do pai e saído à rua como um licenciado, sem bens nem rendimentos, à procura de dinheiro para montar o seu "projecto de vida". Do pai, e do resto da família, recebeu orientação no labirinto burocrático que teria que percorrer. Do microcrédito, dinheiro para o carro, a renda, o frigorífico e a arca e algum stock. "Esta secretária era minha, o computador também, fui às gavetas buscar telemóveis antigos". Gasta-se o menos possível, dá-se "um passo de cada vez", explica.
"Sempre disse que o dia em que abrir será o dia certo". Nem tarde nem cedo. O negócio está agora a começar, mas a ambição nota-se no sorriso. À despedida, desafia ao JN, e a si próprio: "Voltem daqui a uns anos, a parede vai estar coberta de frigoríficos".
Não são frigoríficos que cobrem a parede do Sapateiro do Ilhéu, no Porto, mas uma série de reproduções de quadros. Carlos Rui Lopes gosta de pintura e de fotografia, mas a arte do arranjo de calçado foi a primeira a chegar, aos nove anos, quando teve que fazer pela vida, no Asilo do Terço. Arte porque o que faz é artesanato: no tempo livre, fabrica sapatos, para gente grande (como umas sandálias para a filha) ou em miniatura, porque sim.
Entrou no Terço aos sete anos, saiu aos 19. Fala desse tempo com saudade, mas só a que traz as recordações da juventude. "Era uma vida difícil, um regime quase militar". Os tempos eram outros e aos 13, já aprendida a arte da testeira e do contraforte, das capas e meias-solas, entrou na primeira fábrica. Depois foi para outra, passou para sapateiros grandes, "com seis ou sete a trabalhar". Até dar com um emprego nos Clérigos, onde pagavam "mal e a más horas". Estava vai não vai para fechar e por isso qualificou-se para o microcrédito.
Antes foi ao banco e até lhe emprestava 4300 euros, mas os juros de 14% desanimaram-no. Com a ANDC, a prestação era comportável. Abriu em Janeiro e tem clientela suficiente para pagar as contas, mas pouco mais. "Este ramo dá para uma pessoa só". Ainda assim, Carlos Rui acha que ganha mal. "Já pedi um aumento ao patrão", brinca. E o patrão que disse? "Que a vida tá difícil", responde.
Mas difícil não é impossível. Faz de tudo: "varro o chão, trato das contas, atendo os clientes", é uma banda de um homem só, diferente do tempo em que ia até ao JN, pelo Natal, com um trombone e os outros músicos, agradecer a ajuda do jornal ao Terço.
Música, gastronomia, tradição, cultura. Mais do que uma escola da línguas, Ângela Lopes quer mostrar a um estrangeiro o que é ser lusitano. Chamou-lhe Oficina de Português e propõe-se acolher gente de além fronteiras (como o norte-americano que acabou agora o curso) e dar aulas intensivas da língua e cultura, incluindo visitas às caves de Vinho do Porto, à Ribeira, a cidades como Guimarães ou Coimbra, por exemplo.
Ângela tem 31 anos, é licenciada em Inglês e Alemão. Chegou a dar aulas no público e, depois, num instituto privado. "Nunca tive falta de trabalho, mas a vida de professora não é fácil". Chegou a um ponto em que acreditava não poder continuar. "A perspectiva de trabalhar para mim e não para outros é mais motivadora". E, sem falsa modéstia, admite: "Achei que podia fazer melhor".
Começou a pensar no que fazer e, quando chegou ao microcrédito, só faltava burilar pormenores. Montou o negócio mas manteve as explicações, para ajudar ao orçamento. Admite continuar assim um ano ou dois. "Melhores dias virão e eu vou trabalhar para isso", diz.