18.7.09

Quem sai do bairro de barracas da Quinta da Serra acaba sempre por lá voltar à procura do calor humano e de uma liberdade que não encontra na nova mor

Alexandra Simões de Abreu (texto) e José Ventura (fotos), in Expresso

Lourença, 78 anos, sentada num velho sofá perto da sua barraca, vai mudar-se par um apartamento na Quinta da Fonte, mas já fala em voltar


Como é hábito, a porta está aberta. Tomás e Lourença olham os sacos espalhados pelo chão da sala sem saber por que ponta começar. Ele tem 83 anos, está praticamente cego. Ela 78 e uma diabetes que já se faz notar nos pés, valendo-lhe uma bengala de madeira a que chama "marido". "Depois de Tomás", está claro. Acabaram de 'aterrar' num apartamento de três assoalhadas, na Quinta da Fonte (Apelação), ao abrigo do Plano Especial de Realojamento (PER), criado em 1993, com o objectivo de erradicar as barracas da Área Metropolitana de Lisboa até 2000.

É quinta-feira, 2 de Julho de 2009. "Disseram-me que hoje vinham cá ligar provisoriamente a luz e a água. Devem vir mais logo", assegura Tomás. Lourença não se conforma e contrapõe: "Nós somos pobres, somos pretos, mas não podem fazer pouco da gente. Se não há água, nem luz, não vínhamos. Tens de saber dizer não. Eu sou diabética, tenho de fazer o meu comer, e não há água. Nem a cama deixaram montada. Vou dormir onde? No chão e no escuro? Não posso." Ele abana a cabeça e, resignado, ri-se, confessando-nos que o apartamento é muito mais do que alguma vez pensava vir a ter. Nem sabe quanto vai pagar de renda. Por enquanto, só uma coisa é certa: ambos querem regressar em breve ao bairro de barracas de onde saíram, matar saudades das suas gentes, cuidar das hortas que lá deixaram...

Tomás e Lourença são ambos cabo-verdianos mas viveram grande parte da vida em São Tomé e Príncipe (30 anos) e Portugal. Ele foi o primeiro a chegar, em 1973. Viveu nas Docas, trabalhou nas obras e, em finais de 1988, já reformado, mudou-se para a Quinta da Serra, um bairro de barracas do Prior Velho que ainda hoje acolhe, maioritariamente, africanos de Cabo Verde e da Guiné. Foi no bairro que os conhecemos, uma semana antes da mudança para a Quinta da Fonte (há um ano palco de um violento tiroteio entre africanos e ciganos). Receberam-nos na sua modesta barraca, construída, como todas as outras, com a ajuda de familiares e vizinhos. Primeiro começou por ser de madeira. "Fui a um armazém na Portela. Paguei cinco contos (25 euros) por madeira. Em dois/três meses a casa estava pronta", afirma, orgulhoso. Lourença só chegou em 1989... e não gostou do que viu. Exigiu uma casa em tijolo e cimento, por causa dos ratos. "Disse-lhe que tinha de fazer casa como deve ser e que ia arranjar gato para comer os ratos." Bem dito, bem feito. Apanhou um na rua, ainda pequeno, e trouxe-o para casa. "Era óptimo caçador, não comia os ratos, só os matava. E não comia comida de panela, só comprada... (baixa a cabeça) Morreu há umas semanas. Chorei tanto." Tomás fez-lhe a vontade. Um ano depois, a casa de tijolo e cimento estava de pé. Pintada de azul, composta por uma sala, dois quartos e uma espécie de kitchenette, foi tecto para o casal e alguns dos seus dez filhos - nove rapazes e uma rapariga - durante os últimos 20 anos.

Neste dia, Tomás e Lourença não calculavam que a mudança estivesse para tão perto, apesar de os realojamentos e a demolição das barracas na Quinta da Serra decorrerem agora a bom ritmo, devido à parceria público-privada entre a Câmara Municipal de Loures (CML) e o dono dos terrenos da Quinta da Serra, a Obriverca. Aliás, durante a nossa conversa, mais do que uma vez Tomás manifestou o seu íntimo desejo: "Quero ficar aqui e só sair na minha sepultura. Aqui, eu conheço toda a gente e tudo de bom. Olha, eu sou burro, porque não sei ler, nem escrever, mas viajei por vários países, estive em Angola, São Tomé, etc., etc., portanto sou burro internacional! Mas ando sempre acompanhado pelos sábios e inteligentes. Conhecimento vale mais do que dinheiro. Não quero sair daqui." Entre crioulo e português, Lourença interrompe o discurso do marido para admitir que só sai do bairro "para a Quinta do Mocho, porque tem lá igreja, familiares, amigos e comércio".


Tomás e Lourença contam com a ajuda da filha Claudina para arrumar as suas coisas, antes da partida para a casa nova, na Quinta da Fonte. A maior preocupação dos anciãos são os santos que têm pendurados na parede e que fazem questão de levar consigo

Dois dias depois do nosso primeiro encontro, um representante da Câmara Municipal de Loures mostrou-lhes o apartamento da Quinta da Fonte e convenceu-os. Na nossa segunda visita ao bairro, encontrámos Tomás bem-disposto, a fazer as malas, e confrontámo-lo com a mudança de atitude, ao que, sabiamente, respondeu: "Olha, a gente não vai teimar com coisas sérias!" Mas se uma casa decente é um assunto sério, não chega para apagar as saudades do bairro, que se fazem sentir antes e depois da mudança.

Que o diga Natália, nascida há 16 anos na Quinta da Serra e realojada há seis meses na Póvoa de Santa Iria. "Venho cá praticamente todos os dias. Gostava de viver aqui, porque há comunidade, as portas estão sempre abertas, toda a gente se fala. Aqui estão as minhas raízes. Onde moro agora, é muito calmo e mais frio. Ainda nem conheço o meu vizinho da frente", justifica a guineense, estudante do 12º ano. Quase sem se deter, garante que viver num bairro de barracas "não é o que as pessoas pensam", e com isto quer dizer que as condições não são assim tão más. "Nunca senti falta de nada, sempre vivi bem. Tive tanto como os meus colegas da escola", acentua, revelando que tinha computador e televisão no quarto na sua barraca. Mas reconhece que o novo apartamento tem "melhores condições" e que até já faz reciclagem de lixo, algo impensável num bairro, onde há lixeiras a céu aberto. Só que as saudades são tantas que Natália resolveu inscrever-se na Associação Sociocultural da Quinta da Serra, onde um dos seus cinco irmãos, o Bernardo, estudante universitário de Economia, dá apoio escolar aos mais novos.

Aparentemente, e à luz do dia, a vida no bairro é calma. Gente mais velha senta-se à soleira das portas a mirar quem passa, na esperança de ver uma cara conhecida para mais dois dedos de conversa. Os mais novos juntam-se em grupos, com os pequenos a preferirem brincar na rua e os adolescentes recolhidos na intimidade do único bar do bairro. Pelo menos, o único visível com esse nome. Natália diz que antes havia mais, e até restaurantes, mas o bairro mudou e a criminalidade também aqui chegou, "mas só de há um/dois anos para cá", esclarece. "São meia dúzia que optaram por outros caminhos. Não percebo porquê, porque eles nem precisam de roubar", atira na sua ingenuidade, enquanto nos encaminhamos para as Irmãzinhas de Jesus.

Inseridas neste bairro clandestino, foram os próprios moradores a acolher as Irmãzinhas e a construir a casa em que habitam desde 1991. "Os nossos amigos comprometem-se a construir connosco a Fraternidade, aos domingos. Nunca foi necessário combinar quem estaria disponível, ainda que algumas vezes tivéssemos de esperar quase até ao meio-dia para que alguém chegasse. Pois, nestes tempos, os homens trabalhavam dez e mais horas por dia, toda a semana. Nessa altura, ninguém fazia a sua casa sozinho", conta a irmã Mónica, de origem francesa. A sua presença no bairro é bastante respeitada, ou não fossem elementos de "uma Igreja de pedras vivas", mas sobretudo por partilharem a mesma condição social dos que ali vivem, habitando também numa modesta barraca.

Reconhecem que os tempos são outros e que o ambiente do bairro não é o mesmo de há 20 anos. "Antigamente, as pessoas aqui viviam melhor, porque havia trabalho e mais solidariedade. Não tínhamos nenhum medo. Não havia a violência de hoje. Agora, há pessoas de fora que vêm esconder os seus tráficos aqui, estamos num bairro degradado e é fácil carregarmos com a culpa", garante, sem adiantar mais explicações. Sobre as sucessivas demolições no bairro, as irmãs confessam estar mais preocupadas com os casos daqueles que não estão incluídos no PER, porque chegaram ao bairro já depois de 1993 e, não fazendo parte do recenseamento, não têm direito ao realojamento com apoio da Câmara Municipal de Loures.


No dia da mudança, Tomás e Lourença são largados, com os seus pertences, num apartamebto sem água, nem luz, mas com a promessa de que alguém lá iria fazer uma ligação provisória. Sentem-se desamparados e incertos quanto ao futuro próximo

Claudina, cozinheira na "casa quatro" (diz, referindo-se à idade) e mãe de quatro filhos, é um desses exemplos. Está no bairro desde 1996. "Vim para cá procurar vida melhor. Agora estamos à espera para ver o que vai acontecer connosco, que somos não-PER. A gente não quer uma casa de borla, queremos pagar, mas um preço acessível", expressa. A CML ainda não tem respostas concretas para todos estes casos, mas há a possibilidade de algumas famílias poderem receber apoio no arrendamento de casas através do Pró-Habita, que comparticipa rendas durante um a dois anos.

Um dos casos mais preocupantes é o do guineense Indenhe Cá e do seu filho Leontino. Chegaram à Quinta da Serra em 2000, enviados por uma junta médica que detectou em Leontino um grave problema no coração, que poderia ser resolvido em Portugal, ao abrigo de um acordo de cooperação. Segundo Indenhe, nunca receberam apoio monetário da Guiné, vieram apenas com uma mala e estiveram sempre por conta própria. Leontino tinha 12 anos quando aterrou em Lisboa. Não sabia ler, nem escrever. Hoje tem 21 anos, já foi operado ao coração (no Hospital de Santa Marta, onde ainda é acompanhado mensalmente), estuda à noite - passou para o 6º ano do ciclo - e está a tirar um curso de pintura de construção civil. O pai, cego de uma vista devido a um acidente durante a guerra na Guiné, arranjou empregos como segurança e armador de ferro, mas agora está desempregado. "Vivem ambos com os 150 euros do abono de Leontino, mais os 250 euros do curso que o jovem guineense está a tirar e que é pago pela Santa Casa da Misericórdia", afiança a irmã Mónica. À partida, a CML está disposta a 'apoiá-los' se encontrarem uma casa para alugar. "O problema é que não há casas a um preço acessível, a que eles possam chegar", resume.

Leontino confessa ter receio de "não ter um sítio para ficar", nem que seja o quarto pequeno e abafado que agora divide com o pai numa barraca que nem sequer é sua. Sabe que não pode regressar à Guiné, porque ainda tem tratamentos a fazer, e o pai tem de ficar com ele, apesar das saudades da mulher e das filhas, que sustenta a partir de cá. "Falamos com elas quase todas as semanas por telefone, mas ainda não conseguimos voltar lá, nem de férias. Gostava de as trazer", conclui Indenhe, de cabeça baixa.

Regressamos ao bairro da Quinta da Serra no dia da mudança de Tomás e Lourença para a Apelação. Ainda não são 9 horas e a azáfama já é grande dentro e fora de portas. Lourença está cá fora, sentada num banco, a comandar a 'tropa', constituída neste caso por Tomás, dois netos, um dos filhos e alguns vizinhos. De vez em quando, levanta-se para espreitar a horta e o milho que já plantou. "Ainda ontem comi do meu milho. É bom. Tenho de cá voltar para cuidar dele e das minhas cebolas, das couves..." Tomás sai com mais um saco na mão. "Aqui estão os santos. É o mais importante de tudo. Santo tem de ficar pendurado na parede." Lourença aprova, mas lembra-se de outra preciosidade: "Cuidado com os meus copos, que não tenho dinheiro para comprar outros." Nesse instante chega a carrinha da CML que vai fazer o transporte dos bens do casal. Num ápice, o frigorífico, o fogão, a máquina de lavar roupa, os móveis, as malas e os sacos 'saltam' para a carrinha.

E ainda os últimos pertences estavam a sair da barraca, já um homem arrancava as primeiras chapas do telhado. Com a retroescavadora pronta, só faltava Tomás aparecer para ser dada ordem de avanço para a demolição. O homem tinha ido fechar a porta. Foi a última vez que o fez, e ficámos com a sensação de que nem ele nem Lourença se aperceberam de que a sua casa, a sua barraca, estaria reduzida a entulho em menos de 15 minutos.