8.7.09

Papa quer refundação da ONU e uma autoridade para a globalização

António Marujo, in Jornal de Notícias

Bento XVI diz que o mercado não é "puro", alerta contra "desregulamentação laboral e pede uma "planificação global do desenvolvimento"


Uma autêntica refundação da ONU. Apesar de nunca utilizar a palavra, o Papa Bento XVI, na sua terceira encíclica - a primeira de carácter social -, ontem publicada depois de meses de expectativa, defende a existência de uma autoridade mundial que seja eficaz no "governo da economia". O Papa fala mesmo da "urgência de uma reforma" quer da ONU "quer da arquitectura económica e financeira internacional" - Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização Mundial do Comércio.

No texto da Caritas in Veritate (Caridade na verdade), Bento XVI alerta ainda para a necessidade de os mais pobres não ficarem de fora na globalização, grita que é necessário eliminar a fome para preservar a paz, avisa contra a desregulamentação do mercado de trabalho, diz que o mercado não é puro e defende uma "planificação global do desenvolvimento", pede aos sindicatos que sejam criativos e afrontem a tensão entre a pessoa-trabalhadora e a pessoa-consumidora e diz que a preservação do ambiente deve ter em conta o problema energético.

Muitas das ideias do texto, que tem o subtítulo "Sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade", não são novas no pensamento social católico. Outras, vinham sendo referidas pelo próprio Papa ao longo dos últimos meses e mereceram mesmo referência numa carta aos líderes do G-8 que hoje se reúnem em Itália (ver PÚBLICO de domingo). Mas neste texto os diferentes temas são pela primeira vez sistematizados por Bento XVI, que os actualiza, tendo em conta também a actual crise internacional. E fá-lo com um grande vigor de linguagem.

O Papa Ratzinger aponta as tarefas que deveriam incumbir à autoridade mundial proposta: "Para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise (...), para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios."

Esta autoridade mundial deveria ser também "reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça" e do direito. E deveria "fazer com que as partes respeitem as próprias decisões, bem como as medidas coordenadas e adoptadas nos diversos fóruns internacionais".

Sem defender a substituição da ONU - o Vaticano tem mantido sempre a posição de uma reforma profunda da organização -, o Papa vai ao encontro das posições dos que têm defendido umas Nações Unidas organizadas de forma mais democrática. Ao falar da autoridade mundial, da ONU e da "planificação global do desenvolvimento" (ideia já sugerida por João Paulo II para a era pós-Guerra Fria), Bento XVI está também a pedir uma governação mundial mais democrática - ou seja, o mundo não tem que ser governado por G-8 ou outras instâncias de países mais fortes.

Vários outros temas são trazidos por Bento XVI à encíclica a partir da realidade actual. Desde logo, o papel do mercado, a função da empresa e a desregulação laboral.

O mercado, "em estado puro, não existe", escreve o Papa, que mantém a defesa do mercado livre, feita tradicionalmente pela doutrina social católica. Mas ele pode ser "orientado de modo negativo, não porque isso esteja na sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em tal sentido". E "toma forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam". E acrescenta que a economia pode ser mal usada por quem tiver referências "egoístas".

Novas formas de competição entre Estados foram também trazidas pelo mercado, escreve ainda Ratzinger. O que provocou a "desregulamentação do mercado de trabalho", a fragilização das redes de segurança social e "graves perigos para os direitos dos trabalhadores". A mobilidade laboral é positiva, diz o Papa. Mas "quando se torna endémica a incerteza sobre as condições de trabalho", acabam por se gerar "formas de instabilidade".

Estes mecanismos têm também consequências a nível internacional. Os diferentes papas, recorda Bento XVI, vêm alertando para esse facto, pelo menos desde 1967, quando Paulo VI escreveu a Populorum Progressio (O progresso dos povos) - cujos 40 anos de publicação esta nova encíclica de Ratzinger pretende assinalar, embora com atraso.

O Papa recorda a "insegurança extrema de vida" que deriva da carência alimentar; diz que "a fome ceifa ainda muitas vidas". E não tem dúvidas em dizer que "eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra". Uma frase que recorda a de Paulo VI: "Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência."

Neste capítulo, Bento XVI refere de novo a necessidade de instâncias internacionais que garantam o acesso de todos à alimentação e à água, e que enfrentem as carências de necessidades primárias, bem como a emergência de crises alimentares. E que eliminem as "causas estruturais que o provocam" - enunciando depois um enorme conjunto de tarefas necessárias, entre as quais uma "equitativa reforma agrária".