Leonor Paiva Watson, Alfredo Cunha, in Jornal de Notícias
Cinco histórias revelam um retrato da adopção em Portugal e os tons mais densos de uma realidade onde quase nunca se adopta pela Criança mas por se querer uma criança... que substitua o filho "perfeito" que não se pôde ter.
Pedro, Beatriz e Ana (todos os nomes são fictícios) são irmãos e estão numa instituição com medida de adopção decretada. Triste sorte ninguém os querer. Além de três, os primeiros dois têm o síndroma de hiperactividade. Para os técnicos, levantam-se as perguntas: separam-se os irmãos para dar oportunidade a um deles de ter uma família? Ou não se separam, uma vez que eles já são uma família? "Uma questão dificílima" para os técnicos, mas nem sequer equacionável para a mais nova dos três. Ana não iria a lado algum sem os irmãos. Assim o disse, casualmente, sem saber que tem a espada na cabeça.
Estes três meninos e mais trinta estão na casa "Mãe de Água", em Valongo. Ali, entre tons de rosa e azul, registam-se histórias de abuso sexual, abandono, negligência, total ausência de competência parental, enfim, as mesmas histórias que se ouvem em qualquer outra instituição de acolhimento de menores em risco.
Os três irmãos foram ali parar por abandono total e negligência grosseira. A mãe deixava-os constantemente sozinhos em casa, prostituía-se, não tratava deles e mesmo depois de terem sido institucionalizados só muito raramente os visitou. O pai entendia que deveria visitar os filhos porque um dia seria velho e iria precisar deles... E a Justiça entendeu que isto não é ser pai... que nada disto tem que ver com parentalidade.
Pedro, com nove anos, entenderá tudo e compreenderá pouco sobre o que lhe aconteceu. Aparece com uma expressão séria, de sobrolho carregado, colocando os demais à distância porque não querer que saibam da sua vida, que é como quem diz, da profundidade da sua dor. Mas devagarinho vai falando do computador, o pequeno "Magalhães" que tem no colo. Entretém-se com os jogos e, de vez em quando, observa quem o observa.
Desaparece depois por longos períodos, se se sente ameaçado. Não quer perguntas. Ninguém, obviamente, lhas faz. Então, vai-se chegando, devagarinho. Fala disto, mostra aquilo, brinca com aquilo. Mas as regras ficaram tacitamente bem definidas: não há inquirições, porque isso magoa. Muito. A olho nu nunca ninguém diria que é hiperactivo. É medicado e está controlado. O nosso dia acabou com o Pedro a brincar numa feira improvisada. "Menina jornalista, ajudas-me a pendurar esta boneca?"
Beatriz, a irmã do meio que também tem síndroma de hiperactividade, é uma excelente aluna. Menina bonita, de ar altivo. Manobra o seu "magalhães" com uma destreza impressionante. "Olha, olha para mim a ganhar. Estás a ver? É assim que se joga o 'Super Tux.'. Ele tem que ter cuidado com estas bolas brancas, estas mais brilhantes, porque o podem matar", conta.
Pedro e Beatriz dificilmente serão adoptados "porque não há ninguém que queira adoptar um menino com hiperactividade, mas Ana, a irmã pequenina, "teria todas as hipóteses de ter uma família", conta Cecília Jorge, directora e assistente social da Mãe de Água. O dilema moral entranha-se-nos na pele. "É um horror. É a decisão mais difícil que já tive que tomar. Preciso de ajuda. Não a consigo tomar sozinha. Aliás, dentro de dias vou reunir com o serviço de adopções do Porto", diz.
Pedro, Beatriz e Ana nada sabem sobre isto. "Não sabem que poderiam ser adoptados. Não se lhes pode criar expectativas para não ficarem eternamente à espera", explica Cecília Jorge.
A cruel realidade atrás da adopção
A história dos três irmãos espelha a cruel realidade atrás da adopção. Em Portugal, há 6799 jovens em instituições de acolhimento, além dos 1867 que estão em lares de carácter muito provisório. Destes milhares, 550 com medida de adopção decretada aguardavam candidatos a pais, em Março.
Apenas meio milhar com a oportunidade de nascer outra vez, com melhor sorte. Poucos, portanto, poderão "esquecer" para sempre o que é ser institucionalizado. Mas, só se alguém os quiser.
Indicam os números que a maioria das pessoas quer um bebé até aos três anos, branco e sem qualquer problema de saúde. Às vezes, concedem e levam irmãos.
Sortes muito diferentes
Com a adopção decretada e à espera de uma família estão, igualmente, as irmãs Carlota, Inês e Teresa . "Foram retiradas aos progenitores porque se confirmaram as suspeitas de abuso sexual", conta-nos uma técnica.
Carlota - espevitada, verbo fácil e afiado - mantém uma conversa de dedo em riste e mão na cinta como se fosse um adulto ("Eu agora vou às compras e tu vê lá se arranjas esse cabelo, ouviste?", atira, enquanto conduz um pequeno carro a pedais), mas não é capaz de um desenho próprio para a sua idade. À psicóloga contou episódios de horror. Tem cinco anos, duas irmãs com as mesmas idades e uma pequenina oportunidade de ter uma família.
Muito diferente da história de Alexandra e Anita que saíram de casa tarde demais. A primeira, com onze anos, foi violada pelo pai, e suspeita-se que Anita, com 16 anos, também. Mas Anita não conta nada. "A mais nova chegou a casa com uma hemorragia. A mãe levou-a ao hospital e perceberam logo o que tinha acontecido. Mais tarde, a mãe contou uma história hilariante", revela uma outra técnica.
Para Alexandra e sua irmã não haverá hipótese de adopção, por causa da idade. A solução será "trabalhar a autonomia de vida", explica Cecília Jorge. Parece agradar a Anita, corpo de mulher, cara de menininha. "Estou muito contente. Este ano, vou começar o meu curso de cabeleireira".
Adopção plena e adopção restrita
Ariana e Sofia são gémeas. Iguaizinhas com uma pequena diferença: Ariana está sempre a sorrir e Sofia parece nunca o fazer, franzindo a sobrancelha numa expressão zangada e muito engraçada para quem tem dois anos.
A estas meninas coube-lhes a má sorte de uns pais sem quaisquer competências. Pais que não sabem mudar uma fralda, não sabem cozinhar, dar banho, lavar a roupa, levar ao médico, vacinar, mas, acima de tudo, não sabem dar um beijo, um abraço ou impor limites. Não falham como qualquer ser humano a tarefado com o que implica ser pai e mãe. Não sabem mesmo e não querem saber.
Por isto mesmo, foi proposta a adopção das duas filhas. Não será difícil o tribunal aceder e não será difícil haver uma família que as queira. "São pequeninas e não têm qualquer problema", explicam-nos. E, afinal, parece que a Sofia até sorri. Pelo menos, apanhamos um grande sorriso dirigido à senhora que lhe mudava a fralda. "Seria uma adopção plena", acrescentam.
Mas nem sempre a adopção tem que ser plena. Os três irmãos Paulo, Lucas e Salomão podem vir a ser o exemplo de uma adopção restrita. Alegres e de olho esperto, poderão ser adoptados por uma família que permita a continuação dos laços com a família biológica.
A medida assenta no facto de "os pais biológicos não terem competências parentais logísticas, mas serem muito carinhosos", revelou Cecília Jorge. Os pais "visitam-nos sempre, têm uma relação de amor, mas não sabem viver com crianças porque têm grandes limitações cognitivas", conta.
Falta saber se alguma família aceitará estas três crianças, tendo que dividir o amor delas com os outros pais. "Para já, não temos ninguém preparado para isto", conclui.


