15.10.09

Sem-abrigo diz que viver na rua "é um enorme vício"

por Bruno Vicente, in Diário de Coimbra

O Dia Internacional Para a Erradicação da Pobreza (celebrado no próximo sábado) já está a ser assinalado na Casa Municipal da Cultura, através de um evento de dois dias que junta peritos que trabalham na área da reinserção social, sem-abrigo, professores e alunos. O discurso que ontem mais mexeu com as cerca de 100 pessoas que estiveram no evento foi da autoria de Daniel Horta Nova, que viveu nas ruas do Porto durante quatro anos, tendo fundado depois uma associação de antigos sem-abrigo que apoia e tira da rua actuais sem-abrigo.

«Ser sem-abrigo é estar no meio da multidão e sentir a exclusão», começou por explicar o orador, que deitou também por terra muitos “mitos” que a sociedade tem em relação às pessoas que não têm tecto.

«É uma pura mentira dizer que só está na rua quem quer, mas eu devo dizer que fui feliz na rua. Nunca tive problemas, vivíamos em comunidade e felizes, não havia ninguém a chatear a cabeça. Eu e os meus colegas da Associação de Apoio aos Sem-Abrigo temos saudades do tempo em que vivemos na rua. Isto é grave: a seguir ao álcool e à droga a rua é o terceiro maior vício do mundo», afirmou Daniel Horta Nova.

Formado em Comunicação Social, o responsável garantiu que «todas as pessoas são candidatas a sem-abrigo». «Eu já tive tudo na vida e de uma noite para a outra caí na rua», acrescentou.

E foi nas ruas do Porto que Daniel Horta Nova descobriu que «o sem-abrigo não é um marginal», mas sim «gente que ainda quer ser gente». Entre as melhores amizades que fez na rua encontram-se «advogados, médicos e pedreiros».

O orador deixou ainda duras críticas a alguns técnicos e associações que prestam apoio aos sem-abrigo. «Há técnicos que não têm a capacidade de chegar ao coração das pessoas e existem instituições que são um negócio. Eu nunca me senti tão pequeno quando bati à porta de certas instituições», recordou Daniel Horta Nova.

No inicio da conferência, o director municipal do desenvolvimento humano e social, Oliveira Alves, afirmou que, muitas vezes, há uma desarticulação entre a vontade dos sem-abrigo e daqueles que prestam apoio. «Nós estamos preocupados com o sem-abrigo durante a noite. E eles estão preocupados com o que vão fazer e para onde vão durante o dia», explicou o responsável. O argumento foi confirmado por Daniel Horta Nova: «O sem-abrigo durante o dia caminha em direcção ao nada. Nós saímos de um albergue e vamos para onde?».

O cidadão apelou à solidariedade “sentimental” das pessoas. «O sorriso é extremamente importante para um sem-abrigo, vale mais que uma moeda», concluiu.
“Europa fracassou na missão de erradicar a pobreza”.

Em 2010 celebra-se o ano europeu para a luta contra a pobreza mas, até agora, os objectivos traçados estão longe de ser alcançados. «A Europa fracassou na missão de erradicar a pobreza», garantiu Paula Bastos, coordenadora do Núcleo Distrital de Coimbra da Rede Europeia Anti-Pobreza (REAPN). A União Europeia tem 78 milhões de pessoas em risco de pobreza, em Portugal são 1,2 milhões de cidadãos nesta situação. São números que mostram que se podia ter feito muito mais», concluiu a responsável.

A pobreza tem uma relação directa com o aumento do número de pessoas que vivem na rua. Teresa Caeiro, responsável do GIMAE (Grupo de implementação, monitorização, avaliação da estratégia nacional para a integração das pessoas sem abrigo), recordou algumas metas que, quando forem atingidas, vão ajudar a combater este fenómeno.

O próximo objectivo está projectado para Janeiro de 2010, quando existirá «um sistema de informação e monitorização na internet, para utilização generalizada das instituições de referência», que funcionará como uma espécie de base de dados.

Susana Marçal, responsável da Associação Integrar, realçou a ideia de que nos últimos anos «a articulação entre as diferentes instituições que trabalham no terreno melhorou, o que é importante para não haver sobreposições a nível de resposta».

O encontro está a ser organizado pela autarquia e pelo núcleo distrital de Coimbra da Rede Europeia Anti-Pobreza - Portugal. Os trabalhos continuam hoje, entre as 14h00 e as 17h00, com o mini-fórum formativo sobre “Economia Doméstica”, uma acção de sensibilização dirigida a pessoas em situação de pobreza e/ou risco social, beneficiárias do Rendimento Social de Inserção.