25.1.10

De mil euros de salário 900 são para pagar dívidas

Alexandra Figueira, in Jornal de Notícias

Deco recebeu 2812 pedidos de ajuda no ano passado. Para muitos, o salário não chega nem para as prestações


Quando um sobreendividado chega à Deco, já pouco dinheiro sobra para comer. Por norma, a taxa de esforço ronda os 90%: se ganhar mil euros, pagará dívidas no valor de 900 euros. E quando chega à Defesa do Consumidor já tem mensalidades em atraso.

Vão sendo comuns histórias como a da reformada que foi acumulando empréstimos pequenos. A reforma de 1500 euros permitia-lhe algum desafogo, mas um dia constatou nem poder pagá-los, nem sequer conseguir novos créditos para saldar os mais antigos. Fez as contas, viu que os muitos e pequenos empréstimos somavam 2000 euros em prestações - mais do que o valor da reforma. Ou de outra pessoa, de 71 anos, que fez muitos pequenos créditos, de cinco ou dez mil cada e, quando se apercebeu, já devia 150 mil euros.

Natália Nunes, do gabinete de apoio ao sobreendividado, recorda estas e outras histórias. "Não são a maioria, felizmente". Por norma, quem pede ajuda à Deco tem uma taxa de esforço de 90%, ou seja, ainda ganha mais do que paga em prestações. Ainda assim, se tiver um salário de 1000 euros, entregará às financeiras 900 euros, todos os meses.

Deco reparte culpas

A Deco recomenda uma taxa de esforço de 40%. "Os juros podem subir, os rendimentos podem baixar", disse. Hoje, os 40% são usada pela Banca para autorizar créditos à habitação, mas, há anos, era aceitável uma taxa de 65%. E as empresas de crédito ao consumo nem essa conta fazem, garante Natália Nunes. "Só vêem se a pessoa está reportada junto do Banco de Portugal e pedem um comprovativo de rendimento".

Pensa, por isso, que a responsabilidade pelo sobreendividamento e o crédito malparado deve ser dividida entre as pessoas, "que deviam fazer mais contas à vida", e as entidades financeiras, que "deviam ser mais cautelosas".

Tanto que, por norma, o sobreendividado não é pessoa de baixos recursos ou sem instrução: tem o ensino secundário ou superior, mas não sabe nada de finanças pessoais, tem entre 35 e 45 anos de idade e uma família com, pelo menos, uma criança. Estão longe da ideia pré-concebida do devedor sem instrução e de baixos recursos. "É constrangedor receber pedidos de ajuda de pessoas que trabalham na Banca", exemplifica.

Nos últimos dois anos, os avisos da Deco transformaram-se em realidade. Em 2008, os juros ficaram bem mais altos do que, na altura, era habitual; e 2009 viu o desemprego disparar. Natália Nunes diz, mesmo, que o ano passado se distinguiu por, pela primeira vez, a falta de trabalho ter sido a principal causa de sobreendividamento. "Dantes era o divórcio, agora é o desemprego", disse.

Deco admite que situação piore

E surgiu um outro factor, até agora pouco notado: a "diminuição drástica" das horas extraordinárias, quer das trabalhadas mas que ficam por pagar, quer das cortadas pelas empresas, por não haver trabalho que as justifique. "Ainda há dias falei com uma pessoa que, há um ano, ganhava 1500 euros e agora só ganha 800, porque lhe cortaram as horas extraordinárias e os prémios", disse Natália Nunes. Este género de pagamentos, além do salário base, "é mais importante do que se poderia pensar à partida", garantiu.

A crise, o desemprego e a redução de trabalho somaram-se às outras causas de sobreendividamento e fizeram de 2009 o ano em que a Deco mais processos de apoio abriu: 2812, mais 40% do que os iniciados no ano anterior.

Para 2010, a perspectiva é desanimadora. Ainda que a economia comece a recuperar, o desemprego deve continuar a subir. "Antecipamos a entrada de ainda mais pedidos de ajuda", disse.