4.5.15

Fugir pela vida não é emigrar. Retratos de fugas pintados a sangue

Joana Azevedo Viana, in iOnline

Ser deslocado ou refugiado é fugir porque não há escolha; é partir para salvar a vida ou morrer a tentá-lo. No último ano quem mais arriscou a travessia do Mediterrâneo veio da Eritreia e da Síria. Mas os conflitos crescentes estão a fazer subir o número de refugiados e deslocados em todo o mundo. Mostramos-lhe quatro lugares de onde partem estas fugas

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Síria Mais de 2,5 milhões de refugiados na Turquia até acabar o ano

O número de sírios refugiados na vizinha Turquia pode ultrapassar o correspondente a um quarto da população portuguesa até ao final do ano. O aviso foi feito pela ONU, cujo alto comissariado para os refugiados, o ACNUR, está a gerir parte dos campos improvisados nesse e noutros países da região desde o início da guerra civil na Síria, em Março de 2011.

“A Turquia é neste momento o país que mais refugiados acolhe em todo o mundo”, declarou Helen Clark, a chefe do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, no final de Abril. A agência prevê que mais de 800 mil sírios fujam do país em 2015, fazendo subir para mais de 2,5 milhões de pessoas o número de refugiados na Turquia, a juntar aos refugiados do Iraque, cerca de 300 mil desde Janeiro.

Os números não incluem os refugiados sírios, iraquianos e de outros países que estão espalhados pela região. E “dentro da Síria”, lembra Clark, “existem mais de 7,5 milhões de pessoas deslocadas. Imagine se essas 7,5 milhões de pessoas quiserem ir para a Turquia ou o Líbano, a Jordânia, o Iraque, o Egipto ou a Europa...

Esta crise é chocante e exige uma solução política, que esperemos que seja baseada nos acordos de Genebra, que alcançámos há vários anos.” Décadas depois da assinatura desses acordos, em 1954, para acabar com a Primeira Guerra da Indochina, a cidade suíça tem sido de novo o palco de negociações entre o regime sírio de Bashar al-Assad, os vários grupos que se lhe opõem e tentam depô-lo desde 2011 e actores internacionais dos dois lados da barricada, entre eles a Rússia e o Irão, grandes aliados do governo Assad.

Na semana passada, a UE dizia que espera que o Irão assuma um “papel importante e positivo” na solução da guerra na Síria, que até meados de 2014 já tinha provocado cerca de 200 mil mortos, um número com tendência para aumentar. Todos os dias há notícias de bombardeamentos de zonas civis pelo regime e por grupos armados opositores, relatos do uso de armas químicas contra centros populacionais, horrores descritos aos magotes que raramente têm resultado em acções directas para acabar com o conflito. É por causa dele que nos últimos anos os sírios têm liderado em número os grupos de deslocados e refugiados que tentam entrar na União Europeia.

Eritreia
Um dos cantos da morte do Corno de África

Há alguns dias o deputado Duarte Marques, do PSD, citava, em críticas às propostas do PS, Pedro Cosme Vieira: segundo esse professor da Faculdade de Economia do Porto, a solução para “os barcos com pretalhada” que atravessam o Mediterrâneo é simples. Devemos afundá-los.

“Em vez de tentar salvar as pessoas que vêm nos barcos precárias, ‘salvá-los’ atropelando-os com navios portugueses e depois, todos os que consigam nadar, meter um tiro em cada um.”

A “pretalhada” que Cosme Vieira refere, e que o social-democrata Duarte Marques cita, que tenta entrar na Europa através do Mediterrâneo é sobretudo oriunda da Eritreia e de outros países do Corno de África, como a Etiópia sem água potável, o Djibouti ou o Sudão do Sul, que está em guerra há vários anos, e onde os líderes e responsáveis, quer políticos quer de guerrilhas armadas, já se encarregam de abater a tiro ou de outras formas os que os criticam.

É o caso da Eritreia, liderada por Isaias Afewerki. Segundo números recentes da ONU, o total de eritreus refugiados noutros países está acima das 321 mil e se, em 2013, 13 mil eritreus pediram asilo em 38 países europeus, nos últimos dez meses de 2014 foram mais de 37 mil os refugiados e asilados na Europa, excluindo os que já fugiram para os países vizinhos.

Na Eritreia está hoje implementada uma das piores ditaduras do mundo, com níveis de repressão da população estrondosos, que a ONU catalogou e descreveu num relatório compilado e apresentado em Março.

São sobretudo os eritreus mais jovens que fogem e as razões citadas pelos que sobrevivem à travessia do Mediterrâneo têm todas a mesma raiz: o regime repressivo de Afewerki, que humilha os opositores, que obriga todos os rapazes a entrar nas forças armadas para serviço militar obrigatório por tempo indefinido, que persegue e ameaça com prisão e tortura todos os que questionam o estado das coisas, seja porque criticam a actuação das forças do regime, seja porque se juntam a movimentos religiosos proibidos (como a igreja protestante neopentecostal).

A maioria dos eritreus atravessa o Egipto por via terrestre para apanhar um dos botes rumo à Europa. Muitos sonham viver e estudar em paz nos países nórdicos.

Somália
Ali, mais um que não está “acima das fronteiras”

“O meu nome é Ali, venho da Somália e tenho 15 anos.” Assim começa um dos testemunhos recolhidos pela Amnistia Internacional nos últimos meses junto de sobreviventes das mortíferas travessias do Mediterrâneo.

Desde Março que a organização tem em marcha a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras”; Ali é uma de milhares que parecem não estar, a julgar pelo recente plano de acção concertado entre os líderes europeus no Conselho há duas semanas. Quando Ali tinha nove anos foi separado da família e mudou-se para a capital somali, Mogadíscio, onde viveu alguns anos a limpar sapatos de soldados e a aprender a falar inglês. Partiu com um amigo há três meses para Trípoli, de onde apanhou um barco carregado de somalis, líbios e eritreus rumo a Itália.

“O pai [do meu amigo] pagou- -nos a viagem através do deserto, da Somália para a Líbia.” A travessia “foi longa e muito difícil, atravessámos muitos países numa daquelas camionetas de caixa aberta: Etiópia, Sudão, Líbia.” O amigo não conseguiu chegar à Líbia; “caiu da traseira da camioneta, pois os traficantes conduziam a alta velocidade na travessia do deserto do Sara. Enterrámo-lo no deserto. Tinha 19 anos”.

Ali teve de ligar ao pai do amigo para lhe dizer que o filho morrera, teve de pagar 1900 dólares ao homem que tinha o barco que o levaria até Itália. O jovem não tinha dinheiro, nem familiares que pudessem emprestar-lho. Foram outras pessoas da casa enorme onde ficou em Trípoli que o ajudaram a juntar o dinheiro para poder fazer a viagem com elas. Foram 1900 dólares para uma suposta viagem num barco de fibra de vidro que afinal era um bote insuflável, como são a maioria das embarcações que partem carregadas de deslocados e migrantes rumo ao continente europeu.

Eram mais de 70 pessoas no bote, 22 das quais eritreus que ficaram com queimaduras graves quando um fogão a gás explodiu na capital líbia, matando dezenas. “No total éramos uns 45 somalis, 24 eritreus, duas pessoas do Bangladesh e duas do Gana”, contou à Amnistia. Diz que sentiu “que estava a nascer de novo” quando o bote foi resgatado por um barco da Guarda Fiscal italiana. Sonha ir para a Noruega, mas ainda não sabe se não o enviam de volta para o seu país.

Balochistão
Activista morta pelas forças do Paquistão

O homicídio de Sabeen Mahmud em Karachi apontou os holofotes aos abusos que o exército paquistanês tem cometido no Balochistão. À semelhança da perseguição dos uigures ou dos tibetanos pela China, os baloch estão sob directa ameaça das forças do governo paquistanês há décadas mas a situação tem estado a piorar.

Em Fevereiro, o ACNUR noticiou que em 2013 foi abordado por mais de 900 refugiados afegãos que pediram asilo noutro sítio, porque a situação na província onde se foram instalando nas últimas três décadas está insustentável. Com medo de execuções e raptos e das explosões constantes de bombas, a maioria dos afegãos da comunidade xiita Hazara, cerca de 260 mil refugiados afegãos, tem estado a fugir para países como a Austrália por temerem pela vida. A paquistanesa Sabeen Mahmud também temia pela sua, mas escolheu ficar em vez de fugir.

Abriu um café com espaço de debates em Karachi, onde começou a organizar conferências sobre a perseguição ao povo baloch: cerca de 8,8 milhões de pessoas em todo o mundo pertencentes à minoria persa iraniana, metade das quais a viver na província do Balochistão no Paquistão.

Foi à saída do The Second Floor, o bar que Mahmud abriu há oito anos, que na noite de 24 de Abril a activista de 40 anos e a sua mãe foram perseguidas por um grupo de homens armados em motas, que abriram fogo contra o carro em que seguiam. Sabeen morreu com cinco tiros no torso; a mãe continua internada em situação crítica. Apesar de poucas referências merecer nos media, o conflito no Balochistão está a decorrer desde 1948. Entre 1973 e 1977, o exército paquistanês levou a cabo uma operação militar na região, com torturas, homicídios e desaparecimentos de milhares de pessoas.

Apesar de ter ditado o fim dessa operação, o Paquistão continua, até hoje, a violar os direitos dos milhões de baloch na província. O artigo “A vida e a morte de Sabeen Mahmud”, que a “New Yorker” publicou dias depois do homicídio da activista, fala num conflito que é “um assunto controverso”, sobre o qual a maioria dos paquistaneses tem medo de falar. De tal forma que no início de Abril a Universidade de Lahore denunciou pressões do governo que forçaram o cancelamento da conferência “Dar voz ao Balochistão”.