João da Silva, crónica, in Público
O ser humano sente-se poderoso sendo violento, expressando ódio. E isso pega-se.
1
"Os factos não existem, apenas interpretações", proferiu ou escreveu Friedrich Nietzsche a dada altura da sua vida – proferiu ou escreveu? Terá feito ambas as coisas? Qual será a verdade?
Para o filósofo alemão, os seres humanos obedecem às suas próprias interpretações da realidade. No livro Think Straight, Darius Foroux debruça-se sobre o ponto de vista de Nietzsche: "Não há forma de confirmar objetivamente a realidade. Isso não significa que nada seja real e que nós estejamos todos a viver num grande sonho. Só temos de perceber que os factos não são a mesma coisa que verdade. Esse simples pensamento poupa-lhe muita energia porque significa que ninguém pode estar certo ou errado. Não se preocupe em convencer pessoas com opiniões diferentes da verdade. Não é uma coisa prática. Poupe a sua energia para outras coisas mais úteis."
2
Éder acusa Susana Torres de o ter utilizado para se autopromover. Susana Torres acusa Éder de ser mal-agradecido. (Houve mais acusações de parte a parte, mas estas chegam para resumir o tom de novela.)
Miguel Oliveira foi abalroado por Marc Marquéz no Grande Prémio de Portugal. Marc pediu desculpa a Miguel, afirmando que não o tentou ultrapassar e que a colisão se deveu a um problema nos travões. Miguel aceitou as desculpas, mas considerou a manobra de Marc "demasiado ambiciosa", acrescentando que "quando se tem problemas de travões, trava-se antes, não depois, e não tentamos ultrapassar".
Num e noutro caso — Éder e Susana; Miguel e Marc — a verdade de uns não é a verdade de outros. Só os visados saberão as verdadeiras intenções dos seus atos, bem como as justificações para as suas conjeturas.
Não conheço pessoalmente o Éder, a Susana Torres, o Miguel Oliveira ou o Marc Marquéz e muito menos sei o que pensam, pelo que não vou pressupor coisa nenhuma.
3
Interessa-me, isso sim, chamar a atenção para o que estas duas situações suscitaram nas caixas de comentários de jornais online, sites de media e redes sociais: ódio, xenofobia, racismo, calúnia, denegrimento profissional e por aí fora.
Exemplos:
"Se não fosse ela, esse preto nunca tinha ido à seleção."
"Essa gaja há anos que anda a vender a banha da cobra."
"Espanhol bom é espanhol morto."
"Esse Miguel é um mimado, Moto GP é para homens."
Confesso que não fiquei surpreendido. Aliás, fui ler as caixas de comentários exatamente com a intenção de escrever este texto. Porque sei que é permitido escrever o que se quiser nas redes sociais e também nalguns sites de media e jornais online. O princípio da liberdade de expressão serve para todos. E filtro? Acaso terão os responsáveis pela gestão dos comentários nos sites de media e jornais (nas redes sociais, já ninguém tem dúvidas de que vigora a máxima "quanto mais descabido e ofensivo melhor") reparado que hoje em dia qualquer criança pode aceder sem dificuldade a algumas das redes sociais, sites de media e jornais online?
Um dos comentários mais graves que li — "espanhol bom é espanhol morto" — foi escrito na página de um canal de televisão numa rede social por um miúdo de 12 anos (tem a data de nascimento no perfil) a quem, segundo sei, nem é permitido, por conta da idade, ter página na dita rede social. Sim, li o comentário e fui espreitar o perfil. "Espanhol bom é espanhol morto", lia-se junto à foto de Marc Marquéz tombado no chão.
Permitam-me o pressuposto: a ter sido a criança a escrevê-lo (espreitei algumas publicações do dito e atestei que tem uma participação ativa na tal rede social, sobretudo com imagens de jogos), provavelmente ouviu a expressão "espanhol bom é espanhol morto" da boca de um adulto ou leu-a algures e copiou. Isto sou eu a tentar pensar pela cabeça de um miúdo de 12 anos e a achar que não terá sido um pensamento da sua autoria.
Mas a verdade é que já tive 12 anos há muito tempo e que o mundo mudou muito entretanto. Chamem-me ingénuo à vontade, mas ainda prefiro achar que um pensamento como este é da responsabilidade dos adultos que o rodeiam ou dos que escrevem comentários do género em redes sociais, sites de media e jornais online.
4
O dizer mal gratuitamente e ofender sem a mínima noção das consequências a coberto dos ecrãs dos telemóveis, computadores e assento parlamentar é uma pandemia para a qual não existe vacina.
O ser humano sente-se poderoso sendo violento, expressando ódio. E isso pega-se. E só é possível pensar num controlo desta doença (para a cura já perdi a esperança) se se parar de alimentar e promover esta permissividade nos comentários (justificando-a com a liberdade de expressão) com que alguns se comprazem em prol de page views, protegendo assim crianças e jovens de se inspirarem em discursos de ódio e violência.
"Eu já não leio as notícias, gosto é dos comentários." Nos últimos tempos, li vários comentários deste género nas caixas de comentários de alguns jornais. Não é isto preocupante?
O bem e o mal que há no mundo é fruto do que fazemos. Identificar as causas do bem e do mal e compreendê-las é a chave para repetirmos ou sermos coniventes com determinadas ações. Todos somos responsáveis.
Argumentar é uma coisa, desconversar é outra.
Liberdade de expressão é uma coisa, caluniar e ofender à vontadinha é outra.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990
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31.3.23
25.7.17
Só a educação (e um mundo mais justo) pode salvar-nos
Catarina Pires, in Notícias Magazine
É extraordinário perceber que daqui a nada quem tem de se esconder em armários são aqueles que não entendem o amor e a liberdade e os direitos humanos. E não há nada de injusto nisso. Injusto é aceitar discursos de ódio como liberdade de expressão.
No fim do mês de maio, os alunos de uma escola de Vagos, em Aveiro, manifestaram-se contra aquilo que consideraram uma atitude homofóbica por parte da direção da escola em relação a duas raparigas, namoradas, que não escondiam o namoro. A «chamada de atenção» por parte do diretor, nas suas palavras «no sentido de as proteger», foi encarada, e bem, como discriminatória pelos miúdos. Ainda que se tratasse disso, de protegê-las, não sendo adotado o mesmo procedimento relativamente a namorados de sexo diferente, implicava um tratamento desigual, um olhar preconceituoso. E eles não ficaram calados. Não foram cúmplices. Não encolheram os ombros. Não acharam normal. Perceberam que era errado e manifestaram-se.
É nestes alunos de Vagos que penso de cada vez que leio (ou oiço) um comentário homofóbico. São eles que me lembram que os Gentis Martins da vida pertencem ao passado. Existem, chateiam, mas já não são deste tempo. Neste tempo e neste país, as pessoas, independentemente do género, podem amar, viver, casar e ter filhos com quem quiserem.
Aconteceu ontem esta evolução civilizacional e o passado ainda não desapareceu do presente, mas os alunos de Vagos fazem-me acreditar que vai desaparecer, assim como os meus filhos e os amigos dos meus filhos, para quem a homofobia e, já agora, o racismo e o machismo, que também têm estado na ordem do dia, são uma vergonha. E é extraordinário perceber isso, perceber que daqui a nada quem tem de se esconder em armários são aqueles que não entendem o amor e a liberdade e os direitos humanos. E não há nada de injusto nisso. Injusto é aceitar discursos de ódio como liberdade de expressão.
Pareço demasiado otimista? Talvez. Mas, ao contrário de muita gente, tenho grande esperança nas novas gerações. Sim, sei que não podemos baixar a guarda e estou convencida de que a única forma de chegar mais depressa ao futuro é a educação, a aposta e o investimento numa educação para a igualdade, para a cidadania, para os direitos humanos, para a justiça social. Soa a frase batida, não é? Mas é tão importante que seja o ponto de partida de todas as educações: a que se dá em casa, a que se aprende na escola, a que se ganha ao longo da vida, nos vários mundos em que crescemos, nos movimentamos e nos formamos.
Só com uma aposta séria na educação (talvez devesse pôr um E maiúsculo, mas enervam-me as maiúsculas) é que chegamos a um país mais justo, com menos guetos e menos pobres (ia escrever sem guetos e sem pobres, mas esse futuro, que defendo, já não será no tempo da minha vida), e consequentemente a um país onde dizer «paneleiro» e «fufa» e «preto, vai para a tua terra» e «os ciganos vivem todos do rendimento mínimo» e «os homossexuais são anormais» e «o lugar das mulheres é em casa» e «os pobres não querem é trabalhar» e por aí fora não será só politicamente incorreto. Será impensável.
Esse futuro, espero ainda poder vê-lo. Acredito que sim, que vou vê-lo. Aliás, já o vejo. Nos meus filhos.
É extraordinário perceber que daqui a nada quem tem de se esconder em armários são aqueles que não entendem o amor e a liberdade e os direitos humanos. E não há nada de injusto nisso. Injusto é aceitar discursos de ódio como liberdade de expressão.
No fim do mês de maio, os alunos de uma escola de Vagos, em Aveiro, manifestaram-se contra aquilo que consideraram uma atitude homofóbica por parte da direção da escola em relação a duas raparigas, namoradas, que não escondiam o namoro. A «chamada de atenção» por parte do diretor, nas suas palavras «no sentido de as proteger», foi encarada, e bem, como discriminatória pelos miúdos. Ainda que se tratasse disso, de protegê-las, não sendo adotado o mesmo procedimento relativamente a namorados de sexo diferente, implicava um tratamento desigual, um olhar preconceituoso. E eles não ficaram calados. Não foram cúmplices. Não encolheram os ombros. Não acharam normal. Perceberam que era errado e manifestaram-se.
É nestes alunos de Vagos que penso de cada vez que leio (ou oiço) um comentário homofóbico. São eles que me lembram que os Gentis Martins da vida pertencem ao passado. Existem, chateiam, mas já não são deste tempo. Neste tempo e neste país, as pessoas, independentemente do género, podem amar, viver, casar e ter filhos com quem quiserem.
Aconteceu ontem esta evolução civilizacional e o passado ainda não desapareceu do presente, mas os alunos de Vagos fazem-me acreditar que vai desaparecer, assim como os meus filhos e os amigos dos meus filhos, para quem a homofobia e, já agora, o racismo e o machismo, que também têm estado na ordem do dia, são uma vergonha. E é extraordinário perceber isso, perceber que daqui a nada quem tem de se esconder em armários são aqueles que não entendem o amor e a liberdade e os direitos humanos. E não há nada de injusto nisso. Injusto é aceitar discursos de ódio como liberdade de expressão.
Pareço demasiado otimista? Talvez. Mas, ao contrário de muita gente, tenho grande esperança nas novas gerações. Sim, sei que não podemos baixar a guarda e estou convencida de que a única forma de chegar mais depressa ao futuro é a educação, a aposta e o investimento numa educação para a igualdade, para a cidadania, para os direitos humanos, para a justiça social. Soa a frase batida, não é? Mas é tão importante que seja o ponto de partida de todas as educações: a que se dá em casa, a que se aprende na escola, a que se ganha ao longo da vida, nos vários mundos em que crescemos, nos movimentamos e nos formamos.
Só com uma aposta séria na educação (talvez devesse pôr um E maiúsculo, mas enervam-me as maiúsculas) é que chegamos a um país mais justo, com menos guetos e menos pobres (ia escrever sem guetos e sem pobres, mas esse futuro, que defendo, já não será no tempo da minha vida), e consequentemente a um país onde dizer «paneleiro» e «fufa» e «preto, vai para a tua terra» e «os ciganos vivem todos do rendimento mínimo» e «os homossexuais são anormais» e «o lugar das mulheres é em casa» e «os pobres não querem é trabalhar» e por aí fora não será só politicamente incorreto. Será impensável.
Esse futuro, espero ainda poder vê-lo. Acredito que sim, que vou vê-lo. Aliás, já o vejo. Nos meus filhos.
28.4.16
Liberdade de imprensa em 2015 no nível mais baixo dos últimos 12 anos
In "RTP"
A liberdade de imprensa no mundo atingiu em 2015 o nível mais baixo em 12 anos, com retrocessos preocupantes em França, Turquia, Bangladesh, Egito, Equador, México e Nicarágua, indica-se hoje no relatório anual da Freedom House.
De acordo com o documento da organização não-governamental (ONG), só 13 por cento da população mundial vive em países com uma imprensa livre, 41% tem acesso a uma imprensa "parcialmente livre" e 46% não tem imprensa livre.
O relatório avalia o grau da liberdade de imprensa em 199 países e territórios, aos quais atribui uma pontuação entre zero (máxima liberdade) e 100 (mínima), o que serve para determinar se existe uma "imprensa livre" (62 países), "parcialmente livre" (71) ou "não livre" (66).
A nota média global em liberdade de imprensa de 2015 foi 48,90, o nível mais baixo desde 2004, 12 anos ao longo dos quais a situação veio a piorar, com uma ligeira subida em 2011 e 2012, indica o documento, que vai ser apresentado hoje no museu de notícias e jornalismos (Newseum), em Washington.
Os dez países e territórios com menos liberdade de imprensa são a Coreia do Norte (97), Turquemenistão (96), Uzbequistão (95), Crimeia (94), Eritreia (94), Cuba (91), Bielorrússia (91), Guiné Equatorial (91), Irão (90) e Síria (90).
Entre os países que registam um maior retrocesso no ano passado contam-se Bangladesh (menos sete pontos), Turquia (seis), Gâmbia (seis), Burundi (seis), Iémen (cinco), França (cinco), Sérvia (cinco), Egito (quatro), Tunísia (quatro) e Hungria (três).
O relatório mostra uma clara preocupação pela diminuição da liberdade de imprensa no Egito, Equador, França, México, Nicarágua, Sérvia e Turquia durante o ano passado.
França, o único país com "imprensa livre" deste grupo, lidera uma nova tendência na Europa, onde os jornalistas enfrentam "níveis inabituais de pressão por parte de terroristas e, até certo ponto, dos seus próprios governos".
O ataque terrorista à sede parisiense do semanário satírico Charlie Hebdo transformou França no segundo país do mundo com mais jornalistas assassinados (oito) em 2015, logo atrás da Síria (14), e possibilitou a "legislação para vigilância maciça e autocensura para receio de ataques contra a segurança".
O relatório cita a lei de segurança cidadã, aprovada em Espanha, em 2015, que "impõe pesadas multas financeiras a qualquer indivíduo, jornalistas incluídos, que durante um protesto recuse identificar-se perante as autoridades, desobedeça a ordens de dispersão ou difunda imagens não autorizadas das forças de segurança".
A Freedom House considera que este último ponto "ameaça o trabalho dos fotojornalistas e de outros que procuram informar o público sobre abusos policiais".
Espanha mantém a mesma pontuação dos últimos anos, 28, e França passa de 23 para 28, enquanto o Reino Unido, que piora de 24 para 25, é outro país europeu referido no documento por causa do projeto de lei "que obriga as empresas de telecomunicações a reter dados e o historial dos clientes para possível utilização pelas autoridades".
Portugal tem uma "imprensa livre" e uma pontuação de 18.
Na América Latina, um dos paíse que mais preocupa a ONG é o Equador, com uma imprensa "não livre" e uma descida de oito pontos desde 2011 por registar um "claro aumento da censura oficial" e uma crescente concentração da propriedade dos `media`.
O México, com uma imprensa "não livre", viu piorar a sua situação devido à "pobre aplicação de uma lei concebida para proteger os jornalistas" e à "constante impunidade" daqueles que cometem crimes contra a imprensa.
Na Nicarágua, com uma imprensa "parcialmente livre", a situação piora devido a "um assédio generalizado e progressivamente sistemático" dos jornalistas e aos efeitos de um "duopólio televisivo em diversidade de conteúdos".
A Freedom House, fundada em 1941 em Nova Iorque e com sede em Washington, é uma ONG internacional que promove a liberdade e a democracia no mundo.
A liberdade de imprensa no mundo atingiu em 2015 o nível mais baixo em 12 anos, com retrocessos preocupantes em França, Turquia, Bangladesh, Egito, Equador, México e Nicarágua, indica-se hoje no relatório anual da Freedom House.
De acordo com o documento da organização não-governamental (ONG), só 13 por cento da população mundial vive em países com uma imprensa livre, 41% tem acesso a uma imprensa "parcialmente livre" e 46% não tem imprensa livre.
O relatório avalia o grau da liberdade de imprensa em 199 países e territórios, aos quais atribui uma pontuação entre zero (máxima liberdade) e 100 (mínima), o que serve para determinar se existe uma "imprensa livre" (62 países), "parcialmente livre" (71) ou "não livre" (66).
A nota média global em liberdade de imprensa de 2015 foi 48,90, o nível mais baixo desde 2004, 12 anos ao longo dos quais a situação veio a piorar, com uma ligeira subida em 2011 e 2012, indica o documento, que vai ser apresentado hoje no museu de notícias e jornalismos (Newseum), em Washington.
Os dez países e territórios com menos liberdade de imprensa são a Coreia do Norte (97), Turquemenistão (96), Uzbequistão (95), Crimeia (94), Eritreia (94), Cuba (91), Bielorrússia (91), Guiné Equatorial (91), Irão (90) e Síria (90).
Entre os países que registam um maior retrocesso no ano passado contam-se Bangladesh (menos sete pontos), Turquia (seis), Gâmbia (seis), Burundi (seis), Iémen (cinco), França (cinco), Sérvia (cinco), Egito (quatro), Tunísia (quatro) e Hungria (três).
O relatório mostra uma clara preocupação pela diminuição da liberdade de imprensa no Egito, Equador, França, México, Nicarágua, Sérvia e Turquia durante o ano passado.
França, o único país com "imprensa livre" deste grupo, lidera uma nova tendência na Europa, onde os jornalistas enfrentam "níveis inabituais de pressão por parte de terroristas e, até certo ponto, dos seus próprios governos".
O ataque terrorista à sede parisiense do semanário satírico Charlie Hebdo transformou França no segundo país do mundo com mais jornalistas assassinados (oito) em 2015, logo atrás da Síria (14), e possibilitou a "legislação para vigilância maciça e autocensura para receio de ataques contra a segurança".
O relatório cita a lei de segurança cidadã, aprovada em Espanha, em 2015, que "impõe pesadas multas financeiras a qualquer indivíduo, jornalistas incluídos, que durante um protesto recuse identificar-se perante as autoridades, desobedeça a ordens de dispersão ou difunda imagens não autorizadas das forças de segurança".
A Freedom House considera que este último ponto "ameaça o trabalho dos fotojornalistas e de outros que procuram informar o público sobre abusos policiais".
Espanha mantém a mesma pontuação dos últimos anos, 28, e França passa de 23 para 28, enquanto o Reino Unido, que piora de 24 para 25, é outro país europeu referido no documento por causa do projeto de lei "que obriga as empresas de telecomunicações a reter dados e o historial dos clientes para possível utilização pelas autoridades".
Portugal tem uma "imprensa livre" e uma pontuação de 18.
Na América Latina, um dos paíse que mais preocupa a ONG é o Equador, com uma imprensa "não livre" e uma descida de oito pontos desde 2011 por registar um "claro aumento da censura oficial" e uma crescente concentração da propriedade dos `media`.
O México, com uma imprensa "não livre", viu piorar a sua situação devido à "pobre aplicação de uma lei concebida para proteger os jornalistas" e à "constante impunidade" daqueles que cometem crimes contra a imprensa.
Na Nicarágua, com uma imprensa "parcialmente livre", a situação piora devido a "um assédio generalizado e progressivamente sistemático" dos jornalistas e aos efeitos de um "duopólio televisivo em diversidade de conteúdos".
A Freedom House, fundada em 1941 em Nova Iorque e com sede em Washington, é uma ONG internacional que promove a liberdade e a democracia no mundo.
24.4.15
Nota editorial. O "lápis azul" ameaça regressar
por Direcção de Informação, in RR
Em 2015, nas vésperas do 25 de Abril, partidos do arco do governo avançarem com uma proposta deste tipo é não entenderem o peso histórico do exame prévio, é não entenderem os valores do papel da imprensa numa sociedade democrática e livre.
O lápis azul ameaça regressar 41 anos depois do 25 de Abril. Quando se esperava que os partidos acordassem numa nova legislação que viesse agilizar e eliminar os constrangimentos recentemente impostos por uma interpretação maximalista de uma lei eleitoral ultrapassada, PS/PSD e CDS surpreendem: acordaram numa versão de projecto lei, de um novo regime de cobertura jornalística, que consegue criar um enquadramento legal ainda pior do que o anterior, recorrendo à figura peregrina do visto prévio.
Segundo o texto preliminar, agora conhecido, que se espera que o bom senso remeta à gaveta antes mesmo de chegar formalmente ao Parlamento, é criada uma nova comissão (com elementos da CNE e da ERC) à qual cabe aprovar e depois acompanhar a execução dos planos de cobertura jornalística da campanha eleitoral.
Este ponto é inaceitável. Em 2015, nas vésperas do 25 de Abril, partidos do arco do governo avançarem com uma proposta deste tipo é não entenderem o peso histórico do exame prévio, é não entenderem os valores do papel da imprensa numa sociedade democrática e livre.
Neste momento, os meios de comunicação social respondem perante os respectivos públicos, perante a lei geral e perante as entidades reguladoras do sector que garantem o cumprimento dos princípios constitucionais e o respeito pela liberdade de imprensa.
De uma nova lei de cobertura eleitoral não se esperam novas regras para a actividade jornalística, mas um quadro legislativo que adeque às novas realidades o respeito escrupuloso pelos vários princípios constitucionais.
Se os partidos não o entenderem e continuarem apostados em ignorar o bom senso e os constrangimentos vários da própria actividade jornalística restará sempre em último recurso o apelo ao veto presidencial, mas com isso perder-se-á uma oportunidade de oiro para garantir que não se repetirá o quadro empobrecedor da nossa vida democrática, e que ficou patente nas últimas eleições.
A Direcção de Informação da Renascença faz votos para que a versão final do documento pouco, ou nada, venha a ter com o presente texto de má memória.
Em 2015, nas vésperas do 25 de Abril, partidos do arco do governo avançarem com uma proposta deste tipo é não entenderem o peso histórico do exame prévio, é não entenderem os valores do papel da imprensa numa sociedade democrática e livre.
O lápis azul ameaça regressar 41 anos depois do 25 de Abril. Quando se esperava que os partidos acordassem numa nova legislação que viesse agilizar e eliminar os constrangimentos recentemente impostos por uma interpretação maximalista de uma lei eleitoral ultrapassada, PS/PSD e CDS surpreendem: acordaram numa versão de projecto lei, de um novo regime de cobertura jornalística, que consegue criar um enquadramento legal ainda pior do que o anterior, recorrendo à figura peregrina do visto prévio.
Segundo o texto preliminar, agora conhecido, que se espera que o bom senso remeta à gaveta antes mesmo de chegar formalmente ao Parlamento, é criada uma nova comissão (com elementos da CNE e da ERC) à qual cabe aprovar e depois acompanhar a execução dos planos de cobertura jornalística da campanha eleitoral.
Este ponto é inaceitável. Em 2015, nas vésperas do 25 de Abril, partidos do arco do governo avançarem com uma proposta deste tipo é não entenderem o peso histórico do exame prévio, é não entenderem os valores do papel da imprensa numa sociedade democrática e livre.
Neste momento, os meios de comunicação social respondem perante os respectivos públicos, perante a lei geral e perante as entidades reguladoras do sector que garantem o cumprimento dos princípios constitucionais e o respeito pela liberdade de imprensa.
De uma nova lei de cobertura eleitoral não se esperam novas regras para a actividade jornalística, mas um quadro legislativo que adeque às novas realidades o respeito escrupuloso pelos vários princípios constitucionais.
Se os partidos não o entenderem e continuarem apostados em ignorar o bom senso e os constrangimentos vários da própria actividade jornalística restará sempre em último recurso o apelo ao veto presidencial, mas com isso perder-se-á uma oportunidade de oiro para garantir que não se repetirá o quadro empobrecedor da nossa vida democrática, e que ficou patente nas últimas eleições.
A Direcção de Informação da Renascença faz votos para que a versão final do documento pouco, ou nada, venha a ter com o presente texto de má memória.
16.1.15
Papa defende que liberdade de expressão não permite insultos à fé dos outros
in iOnline
São esperados seis milhões de fiéis
O papa Francisco defendeu hoje que a liberdade de expressão é um direito fundamental, que não permite "insultos à fé dos outros", acrescentando que "matar em nome de Deus" é "uma aberração".
"Não podemos provocar, não podemos insultar a fé dos outros, não podemos ridicularizá-la", disse aos jornalistas a bordo do avião, que levou o papa de Colombo para Manila, quando questionado sobre as caricaturas do semanário satírico francês Charlie Hebdo, alvo de um atentado que causou 12 mortos, na semana passada, em Paris.
A liberdade de expressão deve "exercer-se sem ofender", disse, sublinhando que expressar-se era um "direito fundamental".
"Todos têm não apenas a liberdade, o direito, como também a obrigação de dizer o que pensam para ajudar o bem comum. É legítimo usar esta liberdade, mas sem ofender", insistiu, pedindo verdade, principalmente na atividade política.
O papa sublinhou que a liberdade de religião e a liberdade de expressão era "ambas direitos humanos fundamentais".
Francisco condenou também os assassínios cometidos em nome da religião.
"Não podemos ofender, ou fazer a guerra, ou matar em nome da própria religião, em nome de Deus", afirmou. Matar em nome de Deus "é uma aberração" e "é preciso ter fé com liberdade, sem ofender, sem impor, nem matar", frisou.
"O que se passa atualmente (com os atentados islamitas) choca-nos, mas pensemos na nossa Igreja: quantas guerras religiosas tivemos, pensemos na noite de São Bartolomeu (massacre desencadeado pelos católicos contra os protestantes franceses e que marcou o início, no século XVII, das guerras religiosas. Também fomos pecadores", lembrou.
O papa condenou já, em várias ocasiões, os atentados de Paris, que causaram 20 mortos, na semana passada.
Francisco chegou hoje às Filipinas, único país asiático de maioria católica, para uma visita de cinco dias, depois de uma deslocação ao Sri Lanka, de maioria budista.
Os sinos das igrejas saudaram a chegada do papa a Manila, onde centenas de milhares de pessoas se concentraram ao longo do percurso que Francisco realizou entre o aeroporto e a representação do Vaticano, onde vai pernoitar.
O ponto alto da visita será a missa final, no parque Rizal, em Manila, no domingo, para a qual os organizadores esperam seis milhões de fiéis.
Lusa
São esperados seis milhões de fiéis
O papa Francisco defendeu hoje que a liberdade de expressão é um direito fundamental, que não permite "insultos à fé dos outros", acrescentando que "matar em nome de Deus" é "uma aberração".
"Não podemos provocar, não podemos insultar a fé dos outros, não podemos ridicularizá-la", disse aos jornalistas a bordo do avião, que levou o papa de Colombo para Manila, quando questionado sobre as caricaturas do semanário satírico francês Charlie Hebdo, alvo de um atentado que causou 12 mortos, na semana passada, em Paris.
A liberdade de expressão deve "exercer-se sem ofender", disse, sublinhando que expressar-se era um "direito fundamental".
"Todos têm não apenas a liberdade, o direito, como também a obrigação de dizer o que pensam para ajudar o bem comum. É legítimo usar esta liberdade, mas sem ofender", insistiu, pedindo verdade, principalmente na atividade política.
O papa sublinhou que a liberdade de religião e a liberdade de expressão era "ambas direitos humanos fundamentais".
Francisco condenou também os assassínios cometidos em nome da religião.
"Não podemos ofender, ou fazer a guerra, ou matar em nome da própria religião, em nome de Deus", afirmou. Matar em nome de Deus "é uma aberração" e "é preciso ter fé com liberdade, sem ofender, sem impor, nem matar", frisou.
"O que se passa atualmente (com os atentados islamitas) choca-nos, mas pensemos na nossa Igreja: quantas guerras religiosas tivemos, pensemos na noite de São Bartolomeu (massacre desencadeado pelos católicos contra os protestantes franceses e que marcou o início, no século XVII, das guerras religiosas. Também fomos pecadores", lembrou.
O papa condenou já, em várias ocasiões, os atentados de Paris, que causaram 20 mortos, na semana passada.
Francisco chegou hoje às Filipinas, único país asiático de maioria católica, para uma visita de cinco dias, depois de uma deslocação ao Sri Lanka, de maioria budista.
Os sinos das igrejas saudaram a chegada do papa a Manila, onde centenas de milhares de pessoas se concentraram ao longo do percurso que Francisco realizou entre o aeroporto e a representação do Vaticano, onde vai pernoitar.
O ponto alto da visita será a missa final, no parque Rizal, em Manila, no domingo, para a qual os organizadores esperam seis milhões de fiéis.
Lusa
14.1.15
Charlie Hebdo: uma reflexão difícil
Boaventura Sousa Santos, in Público on-line
Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos.
O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartoonistas do Charlie Hebdo torna muito difícil uma análise serena do que está envolvido neste ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as nossas consciências. Eis algumas das pistas para tal análise.
A luta contra o terrorismo, tortura e democracia. Não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus aliados têm vindo a travar desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a extrema agressividade do Ocidente tem causado a morte de muitos milhares de civis inocentes (quase todos muçulmanos) e tem sujeitado a níveis de tortura de uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as suspeitas são meramente especulativas, como consta do recente relatório presente ao Congresso norte-americano. E também é sabido que muitos jovens islâmicos radicais declaram que a sua radicalização nasceu da revolta contra tanta violência impune. Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de violência é continuar a seguir as mesmas políticas que a têm alimentado como é agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não declarado está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e julgados, devem ser abatidos, que este facto não representa aparentemente nenhuma contradição com os valores ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela? Certamente não o partido Podemos em Espanha ou o Syriza na Grécia.
A liberdade de expressão. É um bem precioso mas tem limites, e a verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos por aqueles que defendem a liberdade sem limites sempre que é a "sua" liberdade a sofrê-los. Exemplos de limites são imensos: se em Inglaterra um manifestante disser que David Cameron tem sangue nas mãos, pode ser preso; em Franças, as mulheres islâmicas não podem usar o hijab; em 2008 o cartoonista Maurice Siné foi despedido do Charlie Hebdo por ter escrito uma crónica alegadamente antissemita. Isto significa que os limites existem, mas são diferentes para diferentes grupos de interesse. Por exemplo, na América Latina, os grandes media, controlados por famílias oligárquicas e pelo grande capital, são os que mais clamam pela liberdade de expressão sem limites para insultar os governos progressistas e ocultar tudo o que de bom estes governos têm feito pelo bem-estar dos mais pobres. Aparentemente, o Charlie Hebdo não reconhecia limites para insultar os muçulmanos, mesmo que muitos dos cartoons fossem propaganda racista e alimentassem a onda islamofóbica e anti-imigrante que avassala a França e a Europa em geral. Para além de muitos cartoons com o Profeta em poses pornográficas, um deles, bem aproveitado pela extrema-direita, mostrava um conjunto de mulheres muçulmanas grávidas, apresentadas como escravas sexuais do Boko Haram, que, apontando para a barriga, pediam que não lhes fosse retirado o apoio social à gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o islão, as mulheres e o Estado social. Ao longo dos anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida por esta linha editorial, mas igualmente foi pronta no seu repúdio deste crime bárbaro. Devemos, pois, refletir sobre as contradições e assimetrias na vida vivida dos valores que cremos serem universais.
Tolerância e "valores ocidentais". O contexto em que o crime ocorreu é dominado por duas correntes de opinião, nenhuma delas favorável à construção de uma Europa inclusiva e intercultural. A mais radical é frontalmente islamofóbica e anti-imigrante. É a linha dura da extrema-direita em toda a Europa e da direita, sempre que se vê ameaçada por eleições próximas (o caso de Antonis Samara na Grécia). Para esta corrente, os inimigos da nossa civilização estão entre nós, odeiam-nos, têm os nossos passaportes, e a situação só se resolve vendo-nos nós livres deles. A outra corrente é a da tolerância. Estas populações são muito distintas de nós, são um fardo, mas temos de as "aguentar", até porque nos são úteis; no entanto, só o devemos fazer se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o que são os "valores ocidentais"? Depois de muitos séculos de atrocidades cometidas em nome deles dentro e fora da Europa – da violência colonial às duas guerras mundiais –, exige-se algum cuidado e muita reflexão sobre o que são esses valores e por que razão, consoante os contextos, ora se afirmam uns ora se afirmam outros. Por exemplo, ninguém põe hoje em causa o valor da liberdade, mas já o mesmo não se pode dizer dos valores da igualdade e da fraternidade. Ora, foram estes dois valores que fundaram o Estado social de bem-estar que dominou a Europa democrática depois de Segunda Guerra Mundial. No entanto, nos últimos anos, a proteção social, que garantia níveis mais altos de integração social, começou a ser posta em causa pelos políticos conservadores e é hoje concebida como um luxo inacessível para os partidos do chamado "arco da governabilidade". A crise social causada pela erosão da proteção social e pelo aumento do desemprego, sobretudo entre jovens, não será lenha para o fogo do radicalismo por parte dos jovens que, além do desemprego, sofrem a discriminação étnico-religiosa?
O choque de fanatismos, não de civilizações. Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos. A história mostra como muitos dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses económicos e políticos que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos. Na Europa e suas áreas de influência é o caso das cruzadas, da Inquisição, da evangelização das populações coloniais, das guerras religiosas e da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma religião tão pacífica como o budismo legitimou o massacre de muitos milhares de membros da minoria tamil do Sri Lanka; do mesmo modo, os fundamentalistas hindus massacraram as populações muçulmanas de Gujarat em 2003; é também em nome da religião que Israel continua a impune limpeza étnica da Palestina e que o chamado Emirado Islâmico massacra populações muçulmanas na Síria e no Iraque. Várias perguntas sem resposta por agora. A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo? Os diferentes extremismos opõem-se ou articulam-se? Quais as relações entre os jihadistas e os serviços secretos ocidentais? Por que é que os jihadistas do Emirado Islâmico, que são agora terroristas, eram combatentes de liberdade quando lutavam contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirado Islâmico seja financiado pela Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos aliados do Ocidente? Uma coisa é certa, pelo menos na última década, a esmagadora maioria das vítimas de todos os fanatismos (incluindo o islâmico) são populações muçulmanas não fanáticas.
O valor da vida. A repulsa total que sentimos perante estas mortes deve-nos fazer pensar por que razão não sentimos a mesma repulsa perante um número igual ou muito superior de mortes inocentes em resultado de conflitos que, no fundo, talvez tenham algo a ver com a tragédia do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens foram mortos no Iémen num atentado bombista. No verão passado, a invasão israelita causou a morte de 2000 palestinianos, dos quais cerca de 1500 civis e 500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferença na nossa reação não pode estar baseada na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes noutras religiões. Será então porque estes últimos estão mais longe de nós ou conhecemo-los pior? Será porque os grande media e os líderes políticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de nos fazerem pensar que eles não merecem outra coisa?
Director do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos.
O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartoonistas do Charlie Hebdo torna muito difícil uma análise serena do que está envolvido neste ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as nossas consciências. Eis algumas das pistas para tal análise.
A luta contra o terrorismo, tortura e democracia. Não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus aliados têm vindo a travar desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a extrema agressividade do Ocidente tem causado a morte de muitos milhares de civis inocentes (quase todos muçulmanos) e tem sujeitado a níveis de tortura de uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as suspeitas são meramente especulativas, como consta do recente relatório presente ao Congresso norte-americano. E também é sabido que muitos jovens islâmicos radicais declaram que a sua radicalização nasceu da revolta contra tanta violência impune. Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de violência é continuar a seguir as mesmas políticas que a têm alimentado como é agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não declarado está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e julgados, devem ser abatidos, que este facto não representa aparentemente nenhuma contradição com os valores ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela? Certamente não o partido Podemos em Espanha ou o Syriza na Grécia.
A liberdade de expressão. É um bem precioso mas tem limites, e a verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos por aqueles que defendem a liberdade sem limites sempre que é a "sua" liberdade a sofrê-los. Exemplos de limites são imensos: se em Inglaterra um manifestante disser que David Cameron tem sangue nas mãos, pode ser preso; em Franças, as mulheres islâmicas não podem usar o hijab; em 2008 o cartoonista Maurice Siné foi despedido do Charlie Hebdo por ter escrito uma crónica alegadamente antissemita. Isto significa que os limites existem, mas são diferentes para diferentes grupos de interesse. Por exemplo, na América Latina, os grandes media, controlados por famílias oligárquicas e pelo grande capital, são os que mais clamam pela liberdade de expressão sem limites para insultar os governos progressistas e ocultar tudo o que de bom estes governos têm feito pelo bem-estar dos mais pobres. Aparentemente, o Charlie Hebdo não reconhecia limites para insultar os muçulmanos, mesmo que muitos dos cartoons fossem propaganda racista e alimentassem a onda islamofóbica e anti-imigrante que avassala a França e a Europa em geral. Para além de muitos cartoons com o Profeta em poses pornográficas, um deles, bem aproveitado pela extrema-direita, mostrava um conjunto de mulheres muçulmanas grávidas, apresentadas como escravas sexuais do Boko Haram, que, apontando para a barriga, pediam que não lhes fosse retirado o apoio social à gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o islão, as mulheres e o Estado social. Ao longo dos anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida por esta linha editorial, mas igualmente foi pronta no seu repúdio deste crime bárbaro. Devemos, pois, refletir sobre as contradições e assimetrias na vida vivida dos valores que cremos serem universais.
Tolerância e "valores ocidentais". O contexto em que o crime ocorreu é dominado por duas correntes de opinião, nenhuma delas favorável à construção de uma Europa inclusiva e intercultural. A mais radical é frontalmente islamofóbica e anti-imigrante. É a linha dura da extrema-direita em toda a Europa e da direita, sempre que se vê ameaçada por eleições próximas (o caso de Antonis Samara na Grécia). Para esta corrente, os inimigos da nossa civilização estão entre nós, odeiam-nos, têm os nossos passaportes, e a situação só se resolve vendo-nos nós livres deles. A outra corrente é a da tolerância. Estas populações são muito distintas de nós, são um fardo, mas temos de as "aguentar", até porque nos são úteis; no entanto, só o devemos fazer se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o que são os "valores ocidentais"? Depois de muitos séculos de atrocidades cometidas em nome deles dentro e fora da Europa – da violência colonial às duas guerras mundiais –, exige-se algum cuidado e muita reflexão sobre o que são esses valores e por que razão, consoante os contextos, ora se afirmam uns ora se afirmam outros. Por exemplo, ninguém põe hoje em causa o valor da liberdade, mas já o mesmo não se pode dizer dos valores da igualdade e da fraternidade. Ora, foram estes dois valores que fundaram o Estado social de bem-estar que dominou a Europa democrática depois de Segunda Guerra Mundial. No entanto, nos últimos anos, a proteção social, que garantia níveis mais altos de integração social, começou a ser posta em causa pelos políticos conservadores e é hoje concebida como um luxo inacessível para os partidos do chamado "arco da governabilidade". A crise social causada pela erosão da proteção social e pelo aumento do desemprego, sobretudo entre jovens, não será lenha para o fogo do radicalismo por parte dos jovens que, além do desemprego, sofrem a discriminação étnico-religiosa?
O choque de fanatismos, não de civilizações. Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos. A história mostra como muitos dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses económicos e políticos que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos. Na Europa e suas áreas de influência é o caso das cruzadas, da Inquisição, da evangelização das populações coloniais, das guerras religiosas e da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma religião tão pacífica como o budismo legitimou o massacre de muitos milhares de membros da minoria tamil do Sri Lanka; do mesmo modo, os fundamentalistas hindus massacraram as populações muçulmanas de Gujarat em 2003; é também em nome da religião que Israel continua a impune limpeza étnica da Palestina e que o chamado Emirado Islâmico massacra populações muçulmanas na Síria e no Iraque. Várias perguntas sem resposta por agora. A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo? Os diferentes extremismos opõem-se ou articulam-se? Quais as relações entre os jihadistas e os serviços secretos ocidentais? Por que é que os jihadistas do Emirado Islâmico, que são agora terroristas, eram combatentes de liberdade quando lutavam contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirado Islâmico seja financiado pela Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos aliados do Ocidente? Uma coisa é certa, pelo menos na última década, a esmagadora maioria das vítimas de todos os fanatismos (incluindo o islâmico) são populações muçulmanas não fanáticas.
O valor da vida. A repulsa total que sentimos perante estas mortes deve-nos fazer pensar por que razão não sentimos a mesma repulsa perante um número igual ou muito superior de mortes inocentes em resultado de conflitos que, no fundo, talvez tenham algo a ver com a tragédia do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens foram mortos no Iémen num atentado bombista. No verão passado, a invasão israelita causou a morte de 2000 palestinianos, dos quais cerca de 1500 civis e 500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferença na nossa reação não pode estar baseada na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes noutras religiões. Será então porque estes últimos estão mais longe de nós ou conhecemo-los pior? Será porque os grande media e os líderes políticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de nos fazerem pensar que eles não merecem outra coisa?
Director do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
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