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1.2.23

Mulheres em minoria, mas assumem “presença significativa” no crime organizado

Ana Cristina Pereira, in Público

Mulheres têm com frequência laços familiares com membros do grupo criminoso e essa é uma das razões pelas quais nele entram. “São muitas vezes utilizadas para camuflar a actividade criminosa.”

Embora o crime organizado seja um universo masculino, a participação feminina está em crescendo. Amiúde, as mulheres chegam ao crime através de uma relação afectiva com um homem. Esta são duas ideias centrais da tese de doutoramento em criminologia de Ana Guerreiro, professora assistente na Faculdade de Direito da Universidade do Porto e na Universidade da Maia.

Não é ciência que se ocupe muito das mulheres, a Criminologia. “As mulheres foram sistematicamente excluídas dos estudos sob pretexto de que tudo o que faziam, pensavam ou diziam não era relevante”, lê-se na tese O crime organizado segundo uma lente de género: estudo exploratório no contexto português, que Ana Guerreiro defendeu na Faculdade de Direito da Universidade do Porto em 2021.

Durante muito tempo, ditava o estereótipo que o crime em geral era coisa de homens, com virilidade, força física. Mais ainda o crime organizado, “fenómeno caracterizado pelas suas acções violentas”. E as estatísticas criminais iam mostrando a preponderância masculina e reforçando a tendência para subvalorizar o papel feminino.

Nas últimas décadas, contudo, a invisibilidade criminal feminina tem vindo a atenuar-se. Tendo em conta as condenações entre 2000 e 2018, as Estatísticas da Justiça indicam um aumento relativo. “O peso das mulheres no efectivo de acusados passou de 11,6% para 17,4% e no efectivo de condenados de 7,6% para 13,6%”, refere. Ao mesmo tempo, tem aumentado a proporção de mulheres presas.

O número de homens julgados e condenados diminuiu naquele período, mas isso não explica tudo. Será a emancipação feminina, com a diminuição da vigilância tradicionalmente exercida sobre as mulheres e a ampliação da sua autonomia? “Este aumento pode ter que ver com isso, mas elas continuam a estar muito ligadas aos homens”, responde Ana Guerreiro. Embora também se movam por lucro, poder e estatuto social, como os homens, há algo que as distingue: “Muitas entraram e mantêm-se nos grupos de crime organizado por uma ligação familiar prévia.”

Tráfico de droga e crimes contra o património

Ana Guerreiro não encontrou consenso na literatura científica sobre o papel das mulheres no crime organizado. A participação depende do tipo de crime e de factores de contexto, como pobreza, escolaridade, antecedentes familiares. Para desocultar essa realidade em Portugal, leu tudo o que se escreveu sobre o assunto, analisou as estatísticas oficiais e desenvolveu dois estudos empíricos.

Poucos estudos abordam o crime organizado em Portugal. A investigadora cita um internacional segundo o qual Portugal tem “um bom posicionamento estratégico, sendo considerado país de trânsito, nomeadamente para o tráfico de droga”. Está, todavia, “mais voltado para crimes tributários, de fraude e corrupção”.

Sobre mulheres apanhadas naquele contexto, em Portugal, apenas algumas referências. Todas muito associadas aos crimes de tráfico de droga (caso dos estudos feitos separadamente por Manuela Inove Cunha, Raquel Matos e Sílvia Gomes nas prisões).

Recolheu 45 decisões sobre associação criminosa proferidas por três tribunais de primeira instância (juízos centrais criminais de Lisboa, Porto e Porto Este). Excluiu oito, que não preenchiam os critérios, e analisou as restantes. Um quinto dos envolvidos era do género feminino.

A seguir, entrevistou 20 operacionais das diversas forças de segurança — PJ, PSP, GNR e SEF. Queria conversar com pessoas reclusas que tivessem integrado grupos de crime organizado, mas foi impedida pelas restrições impostas pela pandemia de covid-19.

Compreendeu que, “não obstante os homens representarem o maior efectivo dos grupos de crime organizado”, as mulheres já “assumem uma presença significativa”. Participam mais no tráfico de estupefacientes, nos crimes contra o património (sobretudo burlas) e nas redes de casamento de conveniência. É raro vê-las nas redes de auxílio à imigração ilegal e de tráfico de pessoas para exploração laboral. Quando aparecem nesses meandros, tendem a responder a uma necessidade concreta do grupo.

Usadas para camuflar crime

As mulheres podem ocupar lugares de liderança, em particular nas redes de tráfico de droga. Por direito próprio ou por delegação de poder. Neste último caso, assumem o lugar do pai ou do companheiro ou do irmão, que morreu, fugiu ou foi preso. O mais comum, quando assumem liderança, é partilharem-na com um homem.

Apesar de a investigação confirmar que o mais usual é as mulheres ficarem num plano secundário ou mesmo invisível, não as destitui de importância. “Ainda que possam estar posicionadas em lugares de menor destaque, ocupam um lugar determinante no grupo, designadamente na manutenção das actividades criminosas e nas dinâmicas que lhes estão subjacentes.”

Algumas apoiam a gestão da organização criminosa desempenhando funções administrativas. Outras ocupam-se de “funções de recrutamento, transporte, venda, compra e armazenamento de produtos ou bens”. Analisando as redes criminais, a investigadora compreendeu que “detêm graus de centralidade, intermediação e proximidade elevados, muitas vezes superiores aos homens”.

A imagem tradicional das mulheres inocentes e maternais não desapareceu. E há organizações que se aproveitam disso. “São elas que estão muitas vezes nos papéis de vigilância, exactamente porque não chamam tanto a atenção dos órgãos de polícia criminal”, diz Ana Guerreiro. “São muitas vezes utilizadas para camuflar a actividade criminosa do grupo. Os órgãos de polícia criminal têm mais dificuldade ou não conseguem identificar o grupo por isso. Houve um entrevistado que disse: ‘Pois, se calhar a culpa é nossa. Estamos sempre à procura de homens.’”

Relações familiares frequentes

Com efeito, o tradicional papel feminino subsiste nalgumas organizações criminosas. Isso é muito evidente em grupos mafiosos que assentam em estruturas familiares. “São elas que tratam da transmissão dos valores do grupo aos membros mais novos, à descendência.”

A presença das ligações familiares, tão comum nos grupos de crime organizado, tem uma razão de ser. “Estão fortemente relacionadas com a manutenção da actividade criminosa, como confiança, lealdade, anonimato, tornando os grupos mais coesos”. Acabam por ser “um preditor de envolvimento criminal de gerações futuras”.

Nos grupos que examinou em detalhe, a investigadora deu por uma elevada presença de relações dessa natureza. Sobressaem “as relações íntimas, as relações entre irmãos/irmãs e as relações de ascendência e descendência, designadamente em grupos que se dedicam ao tráfico de estupefacientes, ao furto qualificado e à fraude fiscal qualificada”.

Comparando, as mulheres têm com mais frequência laços familiares com o grupo criminoso do que os homens. E, como já foi referido, essa é uma das principais razões pelas quais nele entram e permanecem.

Ana Guerreiro não confirmou a teoria de que que as mulheres são mais castigadas pelos tribunais do que os homens, porque transgrediram duplamente (por terem cometido crimes e por serem mulheres). Tão-pouco confirmou a teoria de que são menos castigadas, porque têm de cuidar dos filhos ou dos pais. Simplesmente, não detectou diferenças nas sentenças atribuíveis ao género. A amostra é pequena. E o número de condenações por associação criminosa ainda mais. Os dados apontam, sim, para condenações mais altas entre arguidos mais jovens e com menos escolaridade.

Parece-lhe que ficou clara a necessidade de desenvolver um estudo a partir das próprias pessoas envolvidas. “Queria muito entrar no sistema prisional e desenvolver investigação qualitativa para perceber a perspectiva delas sobre a organização, porque entraram, porque se mantiveram”, diz.

Essa é uma possibilidade de investigação futura. “Gostava de perceber os percursos de mulheres e homens. Se calhar, o próprio contexto socioeconómico tem que ver com a entrada e manutenção no grupo.” Também lhe parece pertinente apurar eventuais experiências de vitimação íntima prévias.

No doutoramento, quis abranger a criminalidade organizada como um todo, não se fechar num tipo de crime. Agora acha “necessário olhar para o crime organizado de forma muito específica”, desenvolver estudos parcelares sobre as organizações criminosas que se dedicam ao tráfico de estupefacientes, ao tráfico de pessoas, aos crimes contra o património, aos crimes fiscais e aduaneiros.

“São contextos diferentes”, sublinha a criminologista de 31 anos, natural de Caminha, residente no Porto. “No crime económico, sobre a presença das mulheres há mesmo muito poucos estudos. A própria visão da participação das mulheres nestes crimes é enviesada. Aliás, são-lhes dados nomes muito particulares, como Louis Vuitton”, uma conhecida marca de luxo. É para aí que Ana Guerreiro quer virar agora a sua atenção, para as “mulheres que participam em crimes fiscais e crimes económicos”.

31.10.18

Aleixo: como é viver no bairro que condenaram à extinção

José Miguel Gaspar, in Jornal de Notícias

É um cúmulo de problemas, uma overdose de perguntas: quando saem os 270 moradores do bairro social do Aleixo, no Porto? E para onde vão? E as três torres que restam, vai haver demolição? E o Fundo Imobiliário, por que não entrega as dezenas de casas que tem de entregar? E os junkies sem-abrigo, para onde é que eles vão? A única pergunta a que todos sabem responder ali é esta: e no Aleixo, há droga?
São os últimos habitantes e ali são todos feitos da mesma substância, carne, osso e ansiedade. Manuel Duarte e a mulher Maria Cândida, ele tem 67, ela 63 e em 2005 atroou-se num AVC, sobem juntos para o 13.º andar da sua casa na Torre 3 e vão demorar 15 minutos a subir porque a Maria Cândida demora mais do que os demais. O elevador avariou. Outra vez. Isto é um dia normal.

Joaquim Ferreira, 70 anos, Torre 2, 12.º andar, mora com a mulher Fernanda e um terrier chamado Torrete. Há três meses a polícia deitou-lhe a porta abaixo, a polícia dos peitos de plástico, assim, subitamente um susto estampido muito alto na manhãzinha, a farejar sabe ele o quê. "Vieram à droga, pois, nada, não havia nada, claro, pediram muita desculpa, paraquedistas, brutos". E a porta ficou abananada da entrada e ele é que teve de a compor. E também foi um dia normal.

Julinho Silva, nome artístico Buster, 26 anos, um rapper a emergir no meio da Torre 1, conseguiu uma coisa praticamente impossível: durante uma tarde inteira de um dia de sol de junho eliminou completamente de ações e sinais de droga o pátio frontal e a entrada da torre da sua casa. Está tudo gravado em vídeo, está no Youtube, nada de droga, parecia outro bairro, todos vestidos de orgulho à frente da torre a cantar e a cabriolar gestos de hip-hop, música e motas de rodas no ar, o orgulho levantado, o Julinho estampado a sorrir. E esse dia foi tudo menos normal.

O cerco imobiliário e a falta de capital
À meia-noite de um dia qualquer ou a qualquer hora do dia é perfeitamente possível e absolutamente seguro atravessar por qualquer uma das três entradas o Bairro do Aleixo, Porto ocidental, foz fluvial, vistas gloriosas de rio, mas quem o fizer deve saber que vai ser abordado pelos homens da oferta. Uma ou várias vezes. Eles são a paisagem oculta sempre lá, eles e os seus junkies consumidores, e nada nos prepara para a violência sensorial do que vamos ver: um parque recreativo de toxicomaníacos de andamento incessante que transfiguraram o bairro num condomínio de chuto a céu aberto, despudorado, sem semelhante na cidade e no país.
Há dez anos debaixo de um plano político especial de investimento público-privado de demolição das cinco torres, evacuação e realocação camarária dos moradores, o processo demora e deixa o bairro vexado num purgatório - um paraíso para quem quer comprar droga ou consumi-la logo ali; um inferno de teatro vivo e putrefação que persiste nos olhos de quem lá mora.
Passaram sete anos desde que Rui Rio, autarca maioritário de então, executou a ordem de demolição com explosivos da primeira torre de 65 casas e 13 andares e cinco anos quando foi arrasada a segunda. Houve alarme, protesto, manifestações, indignação, processos de tentativa de impedimento cautelar, mágoa, resignação e tristeza, foi assim sucessivamente até ao culminar numa memória terrível: o som retumbado de um prédio a partir-se ao meio, degolado por dentro, os olhos dos moradores gelados de horror.

Desde que tudo começou já foram realojadas 300 famílias, mas 270 pessoas permanecem suspensas nos três prédios restantes, cheios de pisos devolutos, de entradas entaipadas, de lares que já não o são, são agora lugar nenhum.

A demora é um problema de capital. O bairro está debaixo da regência especial do Fundo Imobiliário Invesurb, que quer no futuro erguer ali oito blocos de luxo para vender, mas a sociedade gestora, Gesfimo, da órbita do ex-BES, está paralisada e a nova gestão designada, Fund Box, entrada há dois anos com o novo acionista Mota Engil, só este mês obteve garantia bancária e aguarda ainda parecer da CMVM para seguir. Em dez anos, o Fundo falhou com clamor (os outros acionistas são António Oliveira e a própria Câmara, além do ex-BES, dividindo seis milhões de euros de capital) e só conseguiu entregar 23 casas de várias dezenas que tem de reabilitar ou edificar.

Se olharmos para trás vemos que o bairro, inaugurado há 42 anos para realojar habitantes das colmeias do Barredo, na Ribeira do Porto - foi no mesmo ano em que abriu o Brasília, o primeiro Shopping do Porto que exibiu escadas rolantes - é um erro arquitetónico de conflitualidade social em altura, sem varandas nem janelas grandes que virassem os habitantes para o exterior e para o cuidado coletivo do espaço comum. Como o bairro está com ordem de extinção, as torres degradam-se, os elevadores avariam, os moradores assistem há anos ao abandono progressivo do Estado: há muito fechou a escola e o centro de dia, fechou o café do Caetano, esboroam-se os jardins, cresce o lixo daninho por todo o lado, a recolha é disruptiva, os prédios apresentam-se na sua pior condição de sempre, com fachadas em notícia de perigo de ruir.

"O Aleixo é hoje uma tragédia que acontece a céu aberto", repetiu Rui Moreira, o autarca independente que sucedeu ao social-democrata Rui Rio há cinco anos, cinco meses após a última demolição. Moreira, que em tempo recente visitou o bairro sem Imprensa a ver, viu a degradação, a mancha perpétua na saúde dos consumidores e colocou em marcha a saída urgente de moradores até março de 2019. Mas passou já mês e meio e são escassos os contactos da Domus Social, os moradores não sabem se as regras de saída são as mesmas, não sabem se terão três locais à escolha como tiveram os realojados antes deles. Os 270 moradores sairão para casas camarárias que vagam na cidade à média de uma por dia, transpondo na urgência os outros munícipes do Porto cuja lista de espera é superior a mil.
Há duas mudanças recentes a reportar: no último mês o bairro levou uma ceifada nas ervas e no lixo que atapetava as ruas - um mar de corpúsculos de plástico e metal dos kits dos consumidores que largam tudo no chão: seringas, ampolas, tampinhas, toalhetes de desinfetar manchados de sangue que ficam espalhados abertos pelo bairro todo, parecem mapas do mundo disolutos ou mapas de tesouro perdidos que não levam a lado nenhum -, e ergueram-se cercas de arame em estacas de madeira para trajetos seguros à voltas das três torres, "são galinheiros", acusam os moradores, agora realmente cercados.

O problema da saúde pública foi identificado, mas não desaparece só assim, além de que o lixo daninho já está outra vez a medrar. O problema só se resolve quando for arrumado outro maior: o que fazer aos 60 a 80 velhos consumidores duros (cocaína, heroína e crack são as drogas do pódio; o crack, que é base de cocaína ou coca cozida e parece calcário ou açúcar sujo em cristal, é hoje a substância mais preocupante porque está em ascensão) que compram, consomem e ficam por ali no bairro dias inteiros a repetir?
Muitos são sem-abrigo, alguns pernoitam por lá, encolhidos nos cantinhos dos muros desmoronados, parecem desmaiados em cartões a desfazer, como o refluxo de uma maré que se recusa a vazar. O caso já foi superiormente anotado e tem motivado reuniões entre a Câmara e a Autoridade Regional de Saúde do Norte, que trabalham com as entidades no terreno que melhor dominam a situação. Além disso, reativou a discussão sobre a urgência das unidades de consumo assistido, vulgo salas de chuto, com o dossiê a aguardar agora deliberação e parecer da Assembleia Municipal do Porto.

A via-sacra de Maria Cândida é a subir
Mesmo que não queira, Manuel Duarte - que mora no Aleixo desde 1976 vindo da Viela do Buraco, na Ribeira, hoje são três, ele, a mulher Maria Cândida e a filha que mora com eles, mas já foram 11, com mais dois filhos, mais cunhados, mais os sogros e os netos - anda há cinco anos para trás e para a frente aos papéis com a Domus Social, a empresa de habitação municipal do Porto que coordena o processo de evacuação. "Vá descansado para casa que em breve vai ser chamado para sair", é esta a frase que mais vezes ouve do lado de lá do guiché. "Foram tantas que eu há muito que deixei de acreditar. Cinco anos?! Como é possível estar a pedir para sair de casa há cinco anos e ainda aqui estar, tendo eu a mulher como tenho nesta condição?", pergunta Manuel incrédulo a vacilar, a dizer que também já fez dois bypasses ao coração. "Como é que querem que a gente ande aqui para cima e para baixo com 13 andares de escadas cada vez que queremos ir à rua?".

Naquele dia, o elevador da Torre 3 tinha avariado outra vez. É um elevador novo e moderno, é um Schmitt, foi posto no verão, mas está parado no 1.º andar e por agora não se vai mexer. Manuel conta sem se rir o que é que aconteceu. "Às vezes chove aqui dentro", diz ele a ironizar sobre o episódio de terça à tarde quando uma vizinha resolveu lavar o pátio comum de um andar ou dois de cima de forma súbita e obstinadamente e pôs a mangueira a jorrar e a golfar. O Schmitt viu-se aguado, primeiro tremeu, depois tossiu e por fim parou. Chamou-se o técnico, o técnico veio, demorou, viu o chuveiro dentro do elevador, abanou a cabeça, decretou dois dias de repouso ao Schmitt e foi-se embora a dizer que não. "E nós que moramos lá em cima é que temos que alombar", queixa-se o Manuel da desconsideração. No dia a seguir, o Schmitt ainda inerte a secar, a mesma vizinha da aguada passa pelo elevador parado diz um palavrão e depois sai da torre a palavrear. "Parece que estão a gozar connosco. É sempre a mesma merda com estes elevadores", diz Manuel a reproduzir o comentário da vizinha sem uma única vez se rir.

É o meio da tarde, é uma tarde de sol do princípio de outubro e não está ninguém nos bancos de conversação que há nos pequenos pátios à entrada da rua do meio do bairro, um de cada lado de pedra debaixo das sombras estrelares das folhas dos plátanos altivos. Vão encher-se intermitentes de gente ao fim da tarde em conversas de vizinhas, mas são cada vez menos, dantes havia mais, é agora diferente o tom das conversas e Maria Cândida, que voltou da fisioterapia que faz todos os dias desde que teve o AVC, levanta-se lentamente do banco e prepara-se para continuar a ginástica, agora numa via-sacra de escadas sempre a subir.
São 208 degraus e pelo menos o dobro de passos até lá acima para ela e Manuel aflige-se confidencialmente de cara fechada a ver a mulher subir os lanços um passo de cada vez, dois pés em cada degrau, a mão do braço bom do lado do AVC sempre no corrimão, mas o outro braço e a outra perna do mesmo lado parecem esquecidos, o resto do corpo não os compreende, quer avançar, ela não tem culpa, demora-se a subir. E às vezes pára e sorri para a sua situação, mas só brevemente porque depois emudece para continuar a arfar e a escalar.

Manuel Duarte no teatro da degradação
Duarte, que fez sempre vida ali no bairro, trabalha desde os 12 anos, andou em tipografias, estojoarias, construção de expositores, agora é vigilante de sonos noturnos na segurança do Douro Villa, um condomínio vizinho com casas 20 vezes mais caras que a sua, vê todos os dias o teatro da degradação da droga à sua porta. Ele é como os demais, uma pessoa comum obrigada a fazer coisas extraordinárias: ver agulhas e espetados nas escadas logo pela manhã, que ele tem que enxotar; um ou outro junkie fugidiço que se meteu nos andares devolutos de cima do seu prédio para consumir e dormir, e que ele vai deportar dali em voz grossa; às vezes até limpa ele mesmo as pratas e os tarecos de metal e plástico que os viciados deixam no chão, não pode ser, ali há crianças.
Não é coisa que se queira ver, nem de manhã nem à tarde, nem se estiver sol e houver vento maravilhoso entre as árvores de folhas estrelares. Nem sequer à noite, porque os junkies estão sempre por ali, a garatujar, descampados, metidos nas suas tendinhas de cores precárias, obscurecidos, com luzinhas a tremer na cabeça, a vaguear no escuro mar preto interior da noite, e a noite, por acaso, ali nem é demasiado sombria, tem uma luz amável de candeeiros de amarelo sossegador.

Ele reage com perplexidade à pergunta. "Não, não acredito no plano especial que diz que nos tira a todos daqui até março". E depois a perplexidade dá lugar à ansiedade. "Já imaginou o que isto nos faz, estarmos a dias ou semanas de mudar de casa, eu sei lá, e não fazermos a menor ideia onde vamos viver? Imagine lá se puder", e depois a ansiedade dá lugar à melancolia e a cara de Manuel Duarte que é habitualmente muito branca obscurece.
Ali ninguém ignora o estigma e o ignóbil
O orgulho e o valor do orgulho em cada um é um sentimento palpável na postura das pessoas do Aleixo. É um sentimento comum mas exalta-se, não se disfarça, usa-se à mostra por fora do peito. Ninguém ignora o estigma da ignóbil droga, alguns fazem parte dele, muitos mais não, mas todos são levados nessa sombra, ceifados pela base no direito social da presunção da confiabilidade que devemos ter uns perante os outros.
Não é uma coisa de somenos, desconfiar de alguém só porque vem de um certo sítio de difamação, é isso o estigma e isso indigna. E magoa e inflama o orgulho e por isso o orgulho de pertencer ali às vezes é furioso, às vezes ressalta, crava-se na pele e persiste como uma tatuagem das torres enxertada nas costas de alguém. E salta para as paredes dos prédios, por fora e pelo interior recôndito, escadas acima até ao cimo dos 13 andares, todas as paredes estão escritas e rascunhadas com franqueza crua e espichada.

Na Torre 3 há mais declarações de amor, desenhos infantis e paredes beges por grafar; na 2 há muitos tags eriçados sobre o amor postos de outra cor, há mais declarações emendadas a tinta diferente na parede ou riscadas a vermelho zangado; e na Torre 1 é tudo diferente porque as paredes dali estão endemicamente ocupadas por gente ou por vultos que saem ocultos das paredes de gente. São paredes vivas, é neorrealismo encardido, galhardia, prosápia, bazófia, insultos pretos a políticos, à bófia e aos cavicórneos, com choques frontais de cores, amores riscados e aquela exaltação do andamento indestrutível, "Aleixo Sempre", "Aleixo Zone", "Xangai Aleixo", "Cardinal".
Joaquim e o episódio do estrondo da polícia
O bairro já não tem partes bonitas, só memórias e fantasmas de coisas que já não são. Joaquim Ferreira está ali a entardecer a juventude, olha pela janela do seu 12.º andar e vê o mesmo rio em que mergulhava quando era novo. Está agora mais à frente, ele já foi jovem, já foi comando indómito em Angola, já foi mais alto, já foi mais audaz, já saiu de peito feito a escorrer do rio de mão dada com aquela que viria a ser a sua mulher. Ela também se lembra, a Fernanda, tem 67 anos, era quando mergulhava na Ribeira, está agora na sua sala onde entra o sol, ela tem o joelho inchado, dá passinhos pequeninos, senta-se e põe-se a ver desatentamente a novela da SIC "Mar salgado". Também ela está mais à frente na torrente do rio, do outro lado da sua vista é a igreja branca da Afurada, quando anoitecer a igreja vai acender, as luzes vão derreter no rio, rajadas, e depois vê a fileira do casario pitoresco de cores variegadas e azulejos nítidos das casas dos pescadores.

"Será que vai ser o nosso último Natal aqui?", interroga-se Joaquim a afagar as orelhas do Torrete, o seu cão cordeiro jack russell terrier, "não acredito que a gente saia já, então estamos há tantos anos para sair e não saímos e agora dizem de repente que há casas?". Descrente, Joaquim evoca São Tomé e diz "só acredito quando vir, e digo mais, acredito quando tiver a chave na mão". E depois diz da sua vontade: "Eu não estou à procura de casa, eles é que nos querem tirar daqui. Pois podem querer, mas se quiserem têm primeiro que tratar de nós. E depois", continua ele ligeiramente agitado, o cão escapule-se para o regaço da novela da mulher, "vamos poder escolher para onde queremos ir ou vamos obrigados para algum sítio sem ver? É que se for assim não tem jeito, não tem jeito nenhum".

A morar ali desde o início do bairro, em 1976, "a Torre 1 ainda nem estava completa, era só esqueleto, mas foi ocupada mesmo assim, tomada de assalto pela noite", já passaram por aquela casa quatro filhas e dez netos do casal. Estão agora ali todos na parede, risonhos e a cores, a casa superlotada de retratos dos netos e das mães deles, até num passe-partout digital que passa fotos num mix em permanente aparecer, desaparecer.
E Joaquim recorda aquele encontro vespertino em que acordou com estrondo e a casa estava cheia de polícias peitudos de capacete a querer espiolhar. Ele rediz as perguntas que lhe fez a polícia e repete as respostas que lhes deu: "Droga? Tenho, medicamentos da farmácia. Armas? É, facas da cozinha, estão ali. Dinheiro? Olhe, agora está mesmo a gozar comigo, é?". E Joaquim diz a rir que a coisa não teve piada nenhuma: "É assim a nossa polícia de investigação, uma coboiada, primeiro arrombam a porta, só depois é que fazem as perguntas. É por sermos pobres? Não devia ser assim, pois não?".

Renato, o técnico social, também não sabe o seu destino
Também não sabe para onde vai, Renato Sousa, 48 anos, técnico social há duas décadas ali. Ele tem um olhar que parece permanentemente perplexo ou assombrado, e gere o gabinete de ATL que ocupa ainda 40 crianças no sopé da Torre 3. O jardim de infância há muito que saiu de lá, foi deslocado para o Fluvial quando se abateu a Torre 4, ainda funciona lá. Ali, no ATL, ao todo são seis assistentes pagos pela Segurança Social com apoio logístico da Câmara e nenhum deles sabe também quando sai - nem sequer para onde vai, se é que vai.
"Quando o vereador da Habitação Social [Fernando Paulo] teve a deferência de nos ligar dois dias antes do anúncio da nova evacuação foi uma surpresa. Tinham acabado de meter elevadores novos, gastaram 130 mil euros, pelo que se diz, e nada nos fazia crer que iríamos sair em seis meses".

Resignados, melancólicos, atravessados pela incerteza triste do destino, Renato diz que os moradores duvidam, receiam, desconfiam e fazem-lhe perguntas a que ele não sabe responder. "Nem sequer sei o meu destino... O nosso trabalho deverá continuar a ser desenvolvido na freguesia, mas não sabemos...", e Renato deixa o ar cheio de reticências a ressoar.
Ele está à porta do ATL na Torre 3, aparece Joaquim numa camisola caveada, vem a mulher minutos depois saber dele a seguir, ele saiu de casa sem avisar. "Avisei", diz ele, "tem que avisar", diz ela, "eu sei, avisei", diz ele a insistir, saiu de casa porque precisava do Renato para ver uns papéis e o Renato não atendia o telefone. "Estava ocupado", diz o Renato a mostrar o ecrã do telefone e as chamadas rejeitadas, "eu ajudo com os papeis de todos, vamos lá, volto já, diz ele a sair do pátio da associação do ATL. "Vou e aproveito e colo os papeis nas torres, é a viagem do passeio sénior ao São Bento da Porta Aberta, se calhar ainda vale a pena pedir ao santo", e ele ri-se, "pedir-lhe para não sairmos daqui".

E depois Renato vai lembrar as duas providências cautelares quando tentaram parar o despejo e a demolição, a última metida fora do tempo mas que ainda assim custou aos moradores uns bons milhares de euros, um advogado artolas que se aproveitou da convulsão. Mais tarde concordará com aquilo que todos acham e que ali todos dizem, os moradores foram sendo esquecidos, ficaram para trás dos outros problemas urgentes, problemas policiais, prediais, saúde pública, todas as ondas estendidas no tempo de rusgas, vigilâncias, investigações, prisões e tentativas de cercar e exterminar o negócio que no fim falharam sempre porque o negócio continua lá. Os moradores podem queixar-se, é um facto, eles estão numa sombra de estigmatização e essa sombra nem sequer desaparecerá quando o bairro desaparecer, a primeira memória pública será também a última e a que fica é a de um bairro que viveu 40 anos numa tempestade perfeita de droga.

"O passeio é já no dia 14, é grátis, podem vir", diz o Renato a cortar com os dentes a fita cola grossa transparente para colar o panfleto A4 na parede à saída do elevador da Torre 3, quatro ou cinco tiradas até o impermeabilizar, às vezes chove aqui dentro, e também ele recorda o episódio da chuva dentro do Schmitt e que parou o elevador.

E Renato sorri outra vez porque muitas vezes continua a sorrir de perplexidade, é uma coisa que se nota nos olhos dele, parece que uma parte deles ficou incrédula de olhar para o Aleixo para sempre. "Podem vir todos, é um belo passeio, todos não, só os seniores, é grátis, é dia 14, temos é que levar o tacho para poupar".

Julinho, os políticos e a defraudação
Claro que na noite do dia do videoclipe do Julinho a vida real caiu ali como é normal e todos voltaram aos seus papéis sociais. São papéis de informalidade adestrada, da burocracia da rua que dá saídas e rendimentos reais, conquanto ilegais, a quem quiser ou precisar.
Ele mora no epicentro desse comércio, a Torre 1 que está sempre a chamejar de compradores a entrar, de capeadores, recetores, entregadores e vigias, vozes ocultas com pregões ditos em código no ar - "é branca", "é castanha", "é Holanda", "Maradona", "Bolicao" - e Julinho que é imune, pois não fuma, não bebe, não se droga, não tem vícios invisíveis, diz que nunca quererá sair dali. "Isto é o meu berço e o meu enterro, quem me dera que fosse assim."


É lírico, Julinho, "adoro palavras desde pequeno, são as minhas balas, gosto mesmo é de escrever e disparar", diz ele e essa é a sua forma de resistência e de glorificação. Mas aquilo que ele fez naquela tarde de junho foi glorioso, gravou ali o vídeo de "Aleixo II", o single da sua nova mixtape "Sangue azul", aquela torre vil pareceu um prédio normal, ou quase, a flamejar de juventude a cantar e a dançar, com imagens aéreas solares, fumos festivos no terraço do 13.º andar, cá em baixo coreografias de bboys e gestos da cultura hip-hop cumpridos com grandeza de ânimo, o Julinho a comandar tudo. É uma imagem potente para quem conhece o ambiente habitual daquela torre, a torre do andamento que nunca pára, cheia de gestos furtivos do entra-e-sai, madrugada fora até ao nascente, noite e dia banca aberta, nem no Natal pode fechar.
É esse o poder libertador da música e da cultura, parece querer dizer Julinho Buster - e agora ele aponta a ironia do nome Buster, de Blockbuster, um nome que está em extinção como os blocos da casa dele -, que mora no 7.º andar da Torre 1 desde que nasceu há 26 anos. "É também a minha forma de resistir num bairro, o meu bairro, que sofreu sempre estigmas sociais, sobretudo o estigma da droga", diz ele, como na canção do clipe de três minutos e meio em que faz o relato e louvor do Aleixo e descreve aquilo que está a viver: "A morte respira-me na cara/ enquanto me oferece uma chapada/ mas eu agarro-me à vida/ de cabeça levantada" ou mais à frente "mas eu falo do que eu vivo/ do que eu sinto/ eu não minto/ eu recito sem papas na língua/ sobre línguas depravadas".

É um caso muito singular, Julinho, o rapper, uma flor correta a nascer no cisco, e a sua autenticidade merece singrar; nas suas canções - procurar "Buster" no Youtube - ele relata-se muito para lá daquilo que vê e que vive, abre o peito, confessa-se, diz sem peias que não tem mãe, foi consumida, que o pai nunca lhe liga, que só o vê em videochamada e se por acaso for Natal.

"Não sou seguramente louco por querer transformar o Aleixo em música ou literatura", argumentará Julinho agora de pé à frente do microcafé dos balneários do ringue de futebol do bairro, o único equipamento ainda a funcionar, as mãos metidas nas redes bambas do campo de betão cracado que fica atrás da Torre 1, já não há ali competições organizadas, só espontaneidade, desejo e às vezes desatino. "Eu não manjo nada de política, tás a ver?", diz Julinho a falar como um rapper a argumentar com as mãos, "mas os políticos enganaram-nos, vieram cá com as suas campanhas, diziam que eram por nós, que isto não ia abaixo, mais isto, mais aquilo, eu lembro-me, eu era novo mas eu lembro-me, toda a gente aqui se lembra, e depois quando se apanharam no poleiro, o poleiro do nosso voto, viram-se contra nós e mandam demolir o bairro à traição", diz Julinho, a falar de Rui Rio. "Não sou seguramente louco, mas quero aqui ficar para sempre, cresci aqui, sou daqui, estes são os meus amigos, a minha família é isto aqui", diz Julinho a abrir os braços. Talvez não tenha outro remédio que não seja olhar de frente, sempre de frente, e efabular aquilo, mas dizendo sempre a verdade, talvez não tenha outro remédio que seja não ter medo de abrir os olhos mesmo que à volta dele esteja tudo escuro e a enegrecer.

31.5.16

Consumo de cannabis e ecstasy aumenta entre os jovens europeus

Natália Faria, in Público on-line

Mais de 16,6 milhões de jovens europeus consumiram cannabis no último ano. O ecstasy também está a chegar a uma “uma nova geração de consumidores”. Numa altura em que as drogas ressurgem com níveis de potência inéditos, os opiáceos voltam a matar mais. Eis o Relatório Europeu Sobre Drogas e Toxicodependência.

Um por cento dos europeus adultos consome cannabis diariamente ou quase diariamente. Quer se trate de marijuana ou de haxixe, os níveis de potência daquela substância “são os mais elevados de sempre”, o que agudiza o risco de problemas de saúde agudos ou crónicos entre os consumidores. Aliás, a maioria das pessoas que iniciam um tratamento da toxicodependência, fá-lo devido ao consumo daquela droga. Que, em 2014, representou 78% das apreensões efectuadas na Europa.

Os números presentes no Relatório Europeu Sobre Drogas – 2016, que é apresentado esta terça-feira, fazem soar o alarme: 16,6 milhões de jovens europeus entre os 15 e os 34 anos de idade, ou seja, 13,3% desta faixa etária, terão consumido cannabis nos últimos 12 meses. Na faixa dos adultos (15-64 anos de idade), sobem para os 22,1 milhões os que consumiram aquela droga no último ano.

Os dados disponíveis apontam para um aumento no consumo desta substância na generalidade dos 28 países da União Europeia (EU) e os riscos associados ao consumo surgem potenciados pelo facto de os níveis de potência da resina de cannabis (haxixe) e da cannabis herbácea (marijuana) serem “os mais elevados de sempre”.

Este aumento vê-se à porta dos centros de tratamento. O número de utentes que iniciaram tratamento pela primeira vez devido a problemas relacionados com cannabis aumentou de 45.000 em 2006 para os 69.000 de 2014. O que faz com que a maioria das pessoas que iniciaram pela primeira vez um tratamento da toxicodependência tenha sido empurrada pelo consumo desta droga.

Quanto aos efeitos adversos associados ao consumo crónico de cannabis, o relatório cita o estudo mais recente da Organização Mundial de Saúde, segundo o qual os consumidores regulares e de longo prazo apresentam o dobro do risco de apresentarem sintomas e doenças psicóticas, bem como um risco mais elevado de desenvolverem problemas respiratórios. Os adolescentes que consomem esta substância de modo regular vêem aumentado o risco de esquizofrenia.

E, numa altura em que a produção de cannabis se transformou “numa grande fonte de receitas para o crime organizado”, o OEDT aponta a importância de discutir “os custos e os benefícios das diversas políticas de combate ao consumo de cannabis”, numa alusão indirecta às experiências que estão em curso, por exemplo, no Uruguai (mas também nalguns estados norte-americanos) de criação de circuitos legais para o comércio da cannabis, desde a produção à distribuição e que incluem a criação de dispensários onde os consumidores podem adquirir a substância.
Ecstasy é “nuvem negra”

O aumento das mortes por overdose nalguns países e o contínuo aparecimento de novas substâncias, impulsionado pelos mercados de droga na Internet, destacam-se também na lista de preocupações deste relatório do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), cujos autores reivindicam uma mudança na agenda política europeia de luta contra a droga. “Para abranger um conjunto mais amplo e complexo de questões”, sugerem.

A par do aumento do consumo de cannabis, o MDMA (frequentemente vendida em comprimidos de ecstasy, mas também disponível sob a forma de cristais e pó)) reaparece como uma droga de eleição dos jovens europeus. E não são só os consumidores habituais. O relatório aponta uma “nova geração de jovens consumidores”, especificando que 2,1 milhões de jovens adultos, entre os 15 e os 34 anos, afirmaram ter consumido MDMA/ecstasy no último ano, o que equivale a 1,7% dos europeus naquele grupo etário.

Esta tendência contrasta com o declínio registado entre 2000 e 2005, sendo que o recrudescimento do seu consumo assume algumas nuances: o ecstasy “deixou de ser uma droga limitada só a meios restritos ou subculturais e consumido em discotecas”, associado quase sempre à música electrónica, estando agora a ser consumido “por um leque mais vasto de jovens em ambientes de diversão nocturna comuns, como em bares e festas privadas”.

Estas conclusões não assentam apenas nos consumos reportados. A quantidade de resíduos de MDMA nas águas residuais de várias cidades era maior em 2015 do que em 2011, o que se relaciona não só com um aumento do consumo mas também com uma maior pureza da MDMA. O aumento das mortes associadas a esta droga leva mesmo o OEDT a falar numa “nuvem negra que se avizinha no horizonte”.

Apesar das mudanças, a cocaína continua a ser o estimulante ilícito mais consumido na Europa. Cerca de 2,4 milhões de jovens, entre os 15 e os 34 anos, terão consumido cocaína no último ano. A cocaína foi também referida como a droga principal por 60.000 utentes que iniciaram um tratamento especializado em 2014 e por 27.000 utentes que iniciaram um tratamento pela primeira vez.
Jovens são "cobaias" de novas substâncias

Numa altura em que “o potencial de expansão do fornecimento de drogas online parece considerável”, os autores do relatório apontam o facto de, em 2015, terem sido detectadas 98 novas substâncias psicoactivas (foram 101 em 2014). “Os jovens consumidores podem estar a ser involuntariamente usados como cobaias de substâncias cujos potenciais riscos para a saúde são praticamente desconhecidas”, alerta o relatório.

Por outro lado, a produção de novas substâncias parece estar a direccionar-se para consumidores de droga “mais crónicos e problemáticos”, o que se vê pelo número de novos opiáceos sintéticos detectados, muitos dos quais são “extremamente potentes” e tendem a ser vendidos como heroína a consumidores pouco informados, constituindo assim um elevado risco de overdose. Por exemplo, no ano passado, 32 mortes na Europa foram associadas ao opiáceo sintético acetilfentanil. E, em 2014, 18 países europeus (mais oito do que em 2013) comunicaram que mais de 10% dos consumidores de opiáceos que iniciaram tratamento especializado apresentavam problemas relacionados com outros opiáceos que não a heroína.

Juntos, a heroína e os outros opiáceos terão sido responsáveis por 6800 mortes por overdose, em 2014, no conjunto dos países da União Europeia. Irlanda, Lituânia, Suécia e Reino Unido foram alguns dos países a reportar um “preocupante aumento destas mortes”. E, apesar de as razões subjacentes a estes aumentos de overdoses fatais não serem claras, os autores do relatório insistem que estas mortes se ficaram a dever a uma maior disponibilidade de heroína e ao aumento do seu nível de pureza, mas também à mudança dos padrões de consumo, que passaram a incluir o uso de opiáceos sintéticos e medicamentos. Aliás, em países como a Irlanda, França, Finlândia e Reino Unido, os opiáceos sintéticos (como a metadona e a bruprenorfina, usados no tratamento de substituição) surgem já como a principal droga utilizada pelos consumidores que iniciaram tratamento e estão associados a uma percentagem significativa de mortes relacionadas com a droga.

A par do aumento registado em 2014 da oferta de heroína e cocaína, as autoridades mostram-se assim preocupadas com o crescente desvio de medicamentos substitutos de opiáceos. Em vez de serem, como esperado, utlizados no tratamento da toxicodependência, quantidades crescentes daqueles medicamentos, sujeitos a receita médica, são consumidos para fins não medicinais e postos à venda nos mercados de drogas ilícitas. É por isso urgente minimizar o desvio de tais medicamentos para o mercado negro, sem hipotecar “um bom acesso do paciente aos medicamentos de substituição”, alerta o relatório.

Quanto às soluções, o relatório aponta a formação de pessoal clínico e pacientes, o recurso às caixas electrónicas de medicamentos, testes de toxicidade, contagem de comprimidos e monitorização não anunciada a pacientes. “Em termos de sistema, a regulação pode ocorrer através dos registos das transacções farmacêuticas e da adopção de medidas disciplinares para combater a prescrição indevida de receitas”, sugerem ainda os responsáveis do observatório.

No tocante à prevenção da ocorrência de mortes por overdose, o OEDT aponta os seis países que dispõem de salas de consumo assistido e os oito países que implementaram programas de oferta de naloxona em kits destinados ao consumo domiciliário. Trata-se de um medicamento antagonista dos opiáceos e capaz de reverter uma overdose provocada por aquela substância. Uma avaliação recente na Escócia permitiu concluir que a substância contribuiu para uma redução de 36% da proporção de mortes relacionadas com opiáceos no período de um mês após libertação do regime prisional.

As overdoses afectam mais frequentemente os consumidores de opiáceos mais velhos (entre os 35 e os 50 anos). Mas, em países como a Suécia, regista-se igualmente um aumento de mortes por overdose nos consumidores com menos de 25 anos.

13.3.14

ONU alerta que drogas movem 320 mil milhões de dólares por ano

in iOnline

Na verdade, a quebra do consumo de drogas em algumas regiões foi compensada pelo aumento noutras, lamentou

A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou hoje que as drogas constituem uma ameaça internacional que move pelo menos 320 mil milhões de dólares por ano e cujo mercado se manteve estável nos últimos cinco anos.

“O tráfico de drogas é um negócio multimilionário que alimenta as redes criminais a um nível que ainda hoje não conseguimos perceber bem. As drogas ilegais geram cerca de 320 mil milhões de dólares [230 mil milhões de euros] anuais, e este é um valor calculado por baixo”, declarou hoje em Viena o secretário geral adjunto da ONU Jan Eliasson.

O responsável intervinha na abertura de uma reunião da Comissão de Narcóticos das Nações Unidas, que reúne hoje mais de 120 países para debater o problema mundial das drogas.

Eliasson destacou que o tráfico de drogas mina o primado da lei e gera corrupção, o que por sua vez tem um impacto negativo sobre o desenvolvimento.

“As drogas ilícitas e o narcotráfico afetam de forma desproporcionada os mais pobres e vulneráveis”, sublinhou, defendendo que na luta contra as drogas o respeito dos direitos humanos deve ser um princípio fundamental.

O responsável também indicou que se devem considerar alternativas à prisão dos consumidores de drogas e sustentou que “os verdadeiros criminosos são os traficantes”.

No debate sobre o futuro, “não deve temer-se estudar ideias e perspetivas inovadoras”, defendeu, apesar de considerar que as atuais convenções internacionais devem ser a base de qualquer prática.

Por sua vez, o diretor executivo do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, o russo Yuri Fedotov, referiu que as drogas representam uma grande ameaça para a saúde das pessoas e para o desenvolvimento de vários países.

O responsável reconheceu que “a magnitude geral da procura de drogas não se alterou substancialmente a nível mundial”, o que contrasta com os objetivos fixados em 2009 para eliminá-la ou reduzi-la de forma significativa até 2019.

Na verdade, a quebra do consumo de drogas em algumas regiões foi compensada pelo aumento noutras, lamentou.

Entre os êxitos mais recentes, o responsável do gabinete assegurou que o mercado da cocaína caiu e que as plantações de folha de coca desceram cerca de 26% entre 2007 e 2011.

Já no que diz respeito aos “contratempos”, destacam-se a pioria da situação no Afeganistão, onde no ano passado houve uma colheita recorde de ópio, de 209 mil hectares, e o “dramático” aumento da violência na América Central, uma realidade que exige “uma resposta urgente”, apelou Fedotov.

Tal como Eliasson, o responsável defendeu uma abordagem que encare o problema das drogas como um problema de saúde pública e não simplesmente criminal e sugeriu que sejam procuradas “alternativas à penalização e à prisão”.

Além disso, acrescentou, a pena de morte aplicada em delitos não violentos relacionados com as drogas não está no espírito das normativas internacionais.

31.1.13

Portugal e Espanha são portas de entrada de droga na Europa

in Jornal de Notícias

Portugal e Espanha são dos principais portões de entrada de droga na Europa, segundo um relatório europeu, que caracteriza um mercado de tráfico de estupefacientes em mudança a que as autoridades ainda não conseguem antecipar-se.

No primeiro relatório sobre "Mercados de Droga na União Europeia", da responsabilidade da Europol e do Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência (OEDT), apresentado em Bruxelas, esta quinta-feira, aponta-se o caráter "dinâmico, inovador e rápido" da venda e consumo de drogas ilícitas no continente europeu, atributos que, defende-se nas conclusões, precisam de aplicar-se também à ação das polícias.

A comissária europeia para os Assuntos Internos, Cecilia Malmström, afirmou que os esforços individuais de cada país "simplesmente não chegam" para acompanhar as mudanças.

Por seu turno, o diretor da Europol, Rob Wainwright, declarou que o tráfico de droga é a atividade principal "da maior parte dos grupos de crime organizado", que em alguns casos juntam esforços, mudam métodos de tráfico e rotas para evitarem ser apanhados e se aproveitam de formas legítimas de transporte para mover a droga, desde os contentores aos correios.

Esta adaptabilidade faz com que a droga seja transportada de muitas formas diferentes, o que torna mais difícil a sua deteção, reconheceu o diretor da Europol.

Novas rotas

Portugal e Espanha continuam a ser "os principais pontos de entrada de cocaína na Europa", provenientes de rotas marítimas e aéreas tradicionais, mas também de novas rotas.

Apesar de apreensões recorde em anos recentes (34 toneladas em 2006), Portugal regista uma média anual de 3 a 4 toneladas, destacando-se o facto de serem sempre grandes quantidades apreendidas de cada vez.

As rotas de tráfico da África Ocidental merecem especial atenção, assinala-se no relatório, que indica Cabo Verde, Mali ou Costa do Marfim como Nações em que as autoridades europeias estão atentas, vigiando aeroportos por onde passam cargas de heroína ou cocaína.

"Carregamentos de várias toneladas", provenientes da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela viajam por mar e entram na Europa através da Península Ibérica e, numa escala menor, por portos da Holanda, Bélgica, Alemanha, França, Itália e Reino Unido.

Internet e redes sociais

Quanto ao crime organizado que está por trás do tráfico, no relatório chama-se a atenção para o domínio de "gangues criminosos" baseados no noroeste do continente europeu, que não fazem distinções em relação ao tipo de drogas que negoceiam.

O relatório assinala o impacto que as tecnologias de informação mais prosaicas têm no mercado da droga, desde os telemóveis, que asseguram a possibilidade de contactos sem presença física entre vendedores e compradores, à Internet, como "meio de comunicação relativamente seguro para as pessoas envolvidas em atividades clandestinas".

"As redes sociais online têm um papel cada vez maior na forma como os consumidores descobrem, compram novas drogas e partilham as suas experiências", lê-se no documento, que se refere às novas drogas sintéticas, muitas delas legais, como um desafio crescente ao combate aos estupefacientes na Europa.

As entidades que elaboraram o relatório salientam a necessidade de haver uma "resposta robusta" às relações entre o mercado das novas drogas e o mercado instalado das substâncias controladas.

A tradicional cannabis, a droga mais consumida na Europa, é cada vez mais produzida dentro de portas, o que facilita a vida aos traficantes, que conseguem vender o produto sem ter tanto trabalho a transportá-lo.