Ana Cristina Pereira, in Público
Mulheres têm com frequência laços familiares com membros do grupo criminoso e essa é uma das razões pelas quais nele entram. “São muitas vezes utilizadas para camuflar a actividade criminosa.”
Embora o crime organizado seja um universo masculino, a participação feminina está em crescendo. Amiúde, as mulheres chegam ao crime através de uma relação afectiva com um homem. Esta são duas ideias centrais da tese de doutoramento em criminologia de Ana Guerreiro, professora assistente na Faculdade de Direito da Universidade do Porto e na Universidade da Maia.Não é ciência que se ocupe muito das mulheres, a Criminologia. “As mulheres foram sistematicamente excluídas dos estudos sob pretexto de que tudo o que faziam, pensavam ou diziam não era relevante”, lê-se na tese O crime organizado segundo uma lente de género: estudo exploratório no contexto português, que Ana Guerreiro defendeu na Faculdade de Direito da Universidade do Porto em 2021.
Durante muito tempo, ditava o estereótipo que o crime em geral era coisa de homens, com virilidade, força física. Mais ainda o crime organizado, “fenómeno caracterizado pelas suas acções violentas”. E as estatísticas criminais iam mostrando a preponderância masculina e reforçando a tendência para subvalorizar o papel feminino.
Nas últimas décadas, contudo, a invisibilidade criminal feminina tem vindo a atenuar-se. Tendo em conta as condenações entre 2000 e 2018, as Estatísticas da Justiça indicam um aumento relativo. “O peso das mulheres no efectivo de acusados passou de 11,6% para 17,4% e no efectivo de condenados de 7,6% para 13,6%”, refere. Ao mesmo tempo, tem aumentado a proporção de mulheres presas.
O número de homens julgados e condenados diminuiu naquele período, mas isso não explica tudo. Será a emancipação feminina, com a diminuição da vigilância tradicionalmente exercida sobre as mulheres e a ampliação da sua autonomia? “Este aumento pode ter que ver com isso, mas elas continuam a estar muito ligadas aos homens”, responde Ana Guerreiro. Embora também se movam por lucro, poder e estatuto social, como os homens, há algo que as distingue: “Muitas entraram e mantêm-se nos grupos de crime organizado por uma ligação familiar prévia.”
Tráfico de droga e crimes contra o património
Ana Guerreiro não encontrou consenso na literatura científica sobre o papel das mulheres no crime organizado. A participação depende do tipo de crime e de factores de contexto, como pobreza, escolaridade, antecedentes familiares. Para desocultar essa realidade em Portugal, leu tudo o que se escreveu sobre o assunto, analisou as estatísticas oficiais e desenvolveu dois estudos empíricos.
Poucos estudos abordam o crime organizado em Portugal. A investigadora cita um internacional segundo o qual Portugal tem “um bom posicionamento estratégico, sendo considerado país de trânsito, nomeadamente para o tráfico de droga”. Está, todavia, “mais voltado para crimes tributários, de fraude e corrupção”.
Sobre mulheres apanhadas naquele contexto, em Portugal, apenas algumas referências. Todas muito associadas aos crimes de tráfico de droga (caso dos estudos feitos separadamente por Manuela Inove Cunha, Raquel Matos e Sílvia Gomes nas prisões).
Recolheu 45 decisões sobre associação criminosa proferidas por três tribunais de primeira instância (juízos centrais criminais de Lisboa, Porto e Porto Este). Excluiu oito, que não preenchiam os critérios, e analisou as restantes. Um quinto dos envolvidos era do género feminino.
A seguir, entrevistou 20 operacionais das diversas forças de segurança — PJ, PSP, GNR e SEF. Queria conversar com pessoas reclusas que tivessem integrado grupos de crime organizado, mas foi impedida pelas restrições impostas pela pandemia de covid-19.
Compreendeu que, “não obstante os homens representarem o maior efectivo dos grupos de crime organizado”, as mulheres já “assumem uma presença significativa”. Participam mais no tráfico de estupefacientes, nos crimes contra o património (sobretudo burlas) e nas redes de casamento de conveniência. É raro vê-las nas redes de auxílio à imigração ilegal e de tráfico de pessoas para exploração laboral. Quando aparecem nesses meandros, tendem a responder a uma necessidade concreta do grupo.
Usadas para camuflar crime
As mulheres podem ocupar lugares de liderança, em particular nas redes de tráfico de droga. Por direito próprio ou por delegação de poder. Neste último caso, assumem o lugar do pai ou do companheiro ou do irmão, que morreu, fugiu ou foi preso. O mais comum, quando assumem liderança, é partilharem-na com um homem.
Apesar de a investigação confirmar que o mais usual é as mulheres ficarem num plano secundário ou mesmo invisível, não as destitui de importância. “Ainda que possam estar posicionadas em lugares de menor destaque, ocupam um lugar determinante no grupo, designadamente na manutenção das actividades criminosas e nas dinâmicas que lhes estão subjacentes.”
Algumas apoiam a gestão da organização criminosa desempenhando funções administrativas. Outras ocupam-se de “funções de recrutamento, transporte, venda, compra e armazenamento de produtos ou bens”. Analisando as redes criminais, a investigadora compreendeu que “detêm graus de centralidade, intermediação e proximidade elevados, muitas vezes superiores aos homens”.
A imagem tradicional das mulheres inocentes e maternais não desapareceu. E há organizações que se aproveitam disso. “São elas que estão muitas vezes nos papéis de vigilância, exactamente porque não chamam tanto a atenção dos órgãos de polícia criminal”, diz Ana Guerreiro. “São muitas vezes utilizadas para camuflar a actividade criminosa do grupo. Os órgãos de polícia criminal têm mais dificuldade ou não conseguem identificar o grupo por isso. Houve um entrevistado que disse: ‘Pois, se calhar a culpa é nossa. Estamos sempre à procura de homens.’”
Relações familiares frequentes
Com efeito, o tradicional papel feminino subsiste nalgumas organizações criminosas. Isso é muito evidente em grupos mafiosos que assentam em estruturas familiares. “São elas que tratam da transmissão dos valores do grupo aos membros mais novos, à descendência.”
A presença das ligações familiares, tão comum nos grupos de crime organizado, tem uma razão de ser. “Estão fortemente relacionadas com a manutenção da actividade criminosa, como confiança, lealdade, anonimato, tornando os grupos mais coesos”. Acabam por ser “um preditor de envolvimento criminal de gerações futuras”.
Nos grupos que examinou em detalhe, a investigadora deu por uma elevada presença de relações dessa natureza. Sobressaem “as relações íntimas, as relações entre irmãos/irmãs e as relações de ascendência e descendência, designadamente em grupos que se dedicam ao tráfico de estupefacientes, ao furto qualificado e à fraude fiscal qualificada”.
Comparando, as mulheres têm com mais frequência laços familiares com o grupo criminoso do que os homens. E, como já foi referido, essa é uma das principais razões pelas quais nele entram e permanecem.
Ana Guerreiro não confirmou a teoria de que que as mulheres são mais castigadas pelos tribunais do que os homens, porque transgrediram duplamente (por terem cometido crimes e por serem mulheres). Tão-pouco confirmou a teoria de que são menos castigadas, porque têm de cuidar dos filhos ou dos pais. Simplesmente, não detectou diferenças nas sentenças atribuíveis ao género. A amostra é pequena. E o número de condenações por associação criminosa ainda mais. Os dados apontam, sim, para condenações mais altas entre arguidos mais jovens e com menos escolaridade.
Parece-lhe que ficou clara a necessidade de desenvolver um estudo a partir das próprias pessoas envolvidas. “Queria muito entrar no sistema prisional e desenvolver investigação qualitativa para perceber a perspectiva delas sobre a organização, porque entraram, porque se mantiveram”, diz.
Essa é uma possibilidade de investigação futura. “Gostava de perceber os percursos de mulheres e homens. Se calhar, o próprio contexto socioeconómico tem que ver com a entrada e manutenção no grupo.” Também lhe parece pertinente apurar eventuais experiências de vitimação íntima prévias.
No doutoramento, quis abranger a criminalidade organizada como um todo, não se fechar num tipo de crime. Agora acha “necessário olhar para o crime organizado de forma muito específica”, desenvolver estudos parcelares sobre as organizações criminosas que se dedicam ao tráfico de estupefacientes, ao tráfico de pessoas, aos crimes contra o património, aos crimes fiscais e aduaneiros.
“São contextos diferentes”, sublinha a criminologista de 31 anos, natural de Caminha, residente no Porto. “No crime económico, sobre a presença das mulheres há mesmo muito poucos estudos. A própria visão da participação das mulheres nestes crimes é enviesada. Aliás, são-lhes dados nomes muito particulares, como Louis Vuitton”, uma conhecida marca de luxo. É para aí que Ana Guerreiro quer virar agora a sua atenção, para as “mulheres que participam em crimes fiscais e crimes económicos”.