16.11.09

Cerca de 6,3 por cento dos agregados familiares não têm contas à ordem

Por Luís Villalobos, in Público Última Hora

Mário Coimbra deixou de ter conta no banco "porque não tinha dinheiro"
Há 243 mil famílias em Portugal que não têm nenhuma conta bancária, o que corresponde a 6,3 por cento do total de agregados familiares - são os excluídos do sistema financeiro com impactos sociais. De acordo com o INE, que recolheu estes dados no âmbito de um inquérito sobre as condições de vida e rendimento dos portugueses, 71 por cento destas famílias afirmaram que não tinham contas bancárias por não precisarem, preferindo fazer as suas transacções em dinheiro.

Os restantes 29 por cento estarão assim marginalizados por absoluta falta de capacidade financeira para abrir uma conta à ordem, mas também por estarem impedidos legalmente devido a irregularidades.

No entanto, e ainda de acordo com as informações recolhidas pelo PÚBLICO junto do INE, cerca de 51 por cento dos agregados familiares que não têm conta bancária ganharam, em 2007, 4878 euros (406 euros por mês), valor inferior à linha de pobreza relativa.

Este indicador não surpreende o sociólogo Sérgio Aires, director do Observatório da Luta Contra a Pobreza, pois "traduz a realidade portuguesa, onde a percentagem de pobres é muito elevada". A recolha destes dados foi conduzida pelo INE entre Maio e Julho de 2008, mas estão disponíveis, a nível interno, apenas desde Setembro deste ano. As informações são enviadas para Bruxelas, prevendo-se que os dados relativos a todos os Estados- membros sejam disponibilizados em Dezembro. Esta é a primeira vez que a recolha de dados é efectuada desta forma pelo INE, pelo que não há dados comparativos que permitam perceber se houve ou não um aumento deste indicador. Sandra Lopes, de 30 anos, é uma das muitas pessoas que não têm conta bancária. Mãe de quatro filhos, o último dos quais bebé, está desempregada há dez anos.

Finanças alternativas

Tinha o seu nome numa conta, da qual o marido era o titular. O uso indevido de cheques excluiu temporariamente esta família do sistema bancário, mas apesar de Sandra Lopes já poder abrir uma conta, ainda não o fez. "Tinha que ir à junta de freguesia para ter um documento a confirmar que estou desempregada, e depois tinha de reunir ainda mais papelada. E é preciso bom dinheiro para abrir e ter uma conta", justifica. O marido tem uma ocupação, mas não propriamente um emprego: faz biscates nas obras e recebe os pagamentos em numerário. Rendimento fixo na família só mesmo os 130 euros dos abonos de família, e num mês em que tudo corre bem os seis podem contar com 900 euros para todas as necessidades.

Neste contexto, ter uma conta não é uma prioridade, mas Sandra Lopes sabe que "daria jeito para algumas coisas", como, por exemplo, "comprar a prestações". Para já, recorre à senhoria, a quem endossa o cheque que recebe e que lhe paga o valor em dinheiro, que usa depois para pagar as despesas da família.

Paula Rocha, de 50 anos, também tem o passado a marcar as suas relações com os bancos. O ex-marido passou uma série de cheques sem cobertura e ficou inibida durante oito anos, enquanto co-titular, de voltar a ter uma conta bancária. Só que já passaram mais quatro anos desde o fim da penalização e continua sem ter qualquer tipo de contacto com os bancos. Hoje Paula Rocha vive sozinha e, diz, foi-se habituando a gerir a vida financeira de outra forma, ao ponto de não sentir necessidade de abrir uma conta, excepto quando precisa de pagar algo que não estava programado. Nesses casos, quando o dinheiro falta no bolso, não há cartão Multibanco para resolver o problema.

Falta de rendimentos

Mesmo assim, percebe-se que a opção de Paula Rocha é mais uma reacção defensiva do que uma recusa em aderir ao sistema financeiro, algo que planeia vir a fazer no curto prazo. Ao ganhar a vida a realizar inquéritos para uma empresa de estudos de mercado, Paula Rocha não tem um rendimento fixo mensal e receia eventuais resultados dessa instabilidade. Quanto tiver um salário fixo, aí sim, pensa abrir uma conta. "Talvez no ano que vem", diz.

Há quem tenha razões mais simples de explicar, como Mário Coimbra, de 72 anos, reformado que vive sozinho e que já não tem uma conta bancária "vai para 20 anos": "Não tinha dinheiro." Recebe em cheque a parca pensão e o complemento por dependência, que não chegam a perfazer 400 euros mensais, e tem apenas de se deslocar a um posto dos correios para levantar o dinheiro. Para as poucas despesas que faz, num curto raio de acção, diz que uma conta bancária "não faz falta nenhuma".

Combate mínimo

A existência de 243 mil famílias sem contas bancárias mostra que o uso de numerário ainda é fundamental. Caminhamos para uma sociedade cada vez mais desmaterializada, que recorre aos cartões, Multibanco e Internet, mas o dinheiro continua a ser principal forma de realizar pagamentos de baixo valor. O próprio Estado reconheceu a importância desta questão quando criou, em 2000, os Serviços Mínimos Bancários (SMB). De adesão voluntária por parte dos bancos, os SMB surgiram porque, de acordo com a legislação, a não-detenção de uma conta era um entrave à obtenção de bens e serviços e "factor de exclusão ou estigmatização social". Ao mesmo tempo, constatava que a titularidade de conta bancária à ordem e de cartão de débito eram "necessidades de natureza essencial". Mas, nove anos depois, a sua eficácia é reduzida.

Problema europeu

A questão da exclusão financeira, como sublinha Sérgio Aires, é um tema que tem sido debatido na Europa, afirmando este sociólogo que uma pessoa não pode deixar de ter acesso a uma conta bancária apenas porque não tem um determinado rendimento fixo.

José Centeio, secretário-geral da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ligada ao microcrédito), considera que "a evolução das sociedades introduziu no quotidiano das pessoas comportamentos que conduzem a que aqueles que não tenham acesso aos serviços financeiros, mínimos que sejam, se sintam verdadeiramente excluídos". Ao vedar o acesso, "estamos a impedir essa pessoa ou agregado de aceder a serviços que não são apenas financeiros", diz . E dá o exemplo dos bancos, com "produtos para serem utilizados por crianças e adolescentes e programas que ajudam este público a gerir o seu dinheiro: é algo positivo, mas que introduz logo na escola uma diferenciação". Hoje, conclui, "não ter acesso a uma conta é gerador de exclusão não apenas financeira".