30.1.18

Jorge Sampaio: “A solidariedade coletiva só funciona na tragédia, mas no dia a dia é uns a ver e outros a sofrer”

José Pedro Castanheira, Pedro Santos Guerreiro (texto), António Pedro Ferreira (fotos), in Expresso

Está otimista mas preocupado. Sobretudo com os riscos externos, mas também com a definição do lugar de Portugal no mundo. Elogia o talento de António Costa por “ter percebido que tinha condições para poder liquidar a ideia do arco da governação tradicional”. Mas defende uma maior relação do PS com as empresas. E reformas, sobretudo a do território

Entra de gola alta, sapatos confortáveis e vestindo um sorriso na sala onde passaremos o fim de uma tarde fria de janeiro. Jorge Sampaio, 78 anos, Presidente da República de 1996 a 2006, recebeu o Expresso no seu gabinete, na Casa do Regalo, em Lisboa, cidade de que foi presidente da Câmara a partir de 1989, ano em que foi eleito secretário-geral do Partido Socialista — e uma vintena de anos depois do início da sua carreira política, na candidatura, em 1969, às eleições para a Assembleia Nacional, nas listas da CDE. Uma carreira intensa de intervenção cívica, que mantém.

Como vê hoje o país?
Tenho uma visão otimista. Por uma razão fundamental: quem tinha 34 anos no 25 de Abril, uma vida profissional feita e estava habituado à ditadura, não concebia que passados estes anos pudéssemos estar onde estamos. O que era a mortalidade infantil, a incapacidade de saber ler e escrever, a pobreza generalizada, a agricultura de morte... A minha visão é sempre completada com um olhar para de onde viemos, para onde estamos e para onde precisamos de avançar. O salto que se deu! Eu pertenço a uma das últimas gerações do antes do 25 de Abril, as outras já não estão cá, e isso dá uma perspetiva grande e um redobrado otimismo. E pensar que agora, acabada a descolonização e tendo relações normais com as ex-colónias, fazendo parte da União Europeia e das organizações multilaterais, tendo tido manifestos sucessos internacionais em 2017 — basta relembrar Guterres e Centeno —, há razões para esse otimismo. Mas há razões para ter moderação nesse otimismo, que resultam da circunstância de o mundo ser profundamente diferente, de os mecanismos da democracia representativa estarem em crise, de os extremismos terem aumentado, da contradição entre uma sociedade internacional multilateralmente organizada e correr-se o risco de passar para zonas de conflito muito determinadas, mesmo dentro do contexto geral de uma paz mais armada; a fome, as alterações climáticas e a sua negação, Donald Trump e o trumpismo, aparentemente florescente, as guerras religiosas, ou não, no Médio Oriente, com o que isso implica para a Europa e para aquela zona do globo tão decisiva para a paz e o desenvolvimento geral do mundo... São motivos de grande e forte preocupação.

O que o preocupa são riscos externos. Significa que considera que somos pequenos para influenciar e vulneráveis para sofrer?
Não. Nós estamos inseridos no mundo, não há soluções taxativamente apenas portuguesas e há riscos internacionais grandes que podem afetar-nos, não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Do ponto de vista interno, preocupa-me saber até onde vai a nossa capacidade reformista e de inserirmos o nosso desenvolvimento económico e social num contexto mais vasto. Qual é o nosso lugar no meio disto tudo? Que reivindicação fazemos em relação ao nosso lugar na Europa? Qual é a nossa posição em relação à ciência? E que capacidade teremos para combater a pobreza? A coisa que mais me aflige é percebermos que os benefícios da globalização e do crescimento são tão desigualmente distribuídos e que essa desigualdade não vai terminar.

Qual é o nosso caminho?
O desenvolvimento interno é um caminho apertado, dependemos de uma economia que precisa de se transformar, passando da economia das rendas — e já se deu um grande salto nesse sentido — para uma economia de exportações. E sabermos qual é a capacidade de atrairmos capitais estrangeiros, sem prejuízo de conseguirmos — eu volto a este tema que sempre foi um tema meu, não no sentido do isolacionismo, pelo contrário — desenvolver polos de desenvolvimento estratégico nacional, que se insiram num desenvolvimento internacional e que não nos façam perder coisas estrategicamente importantes, como algumas que já foram à vida — o caso mais flagrante é o da REN e dos aeroportos, para não falar noutros, e obviamente a banca.

A banca?
A banca deixou de ser portuguesa para passar a ser internacional. Não vejo nenhum mal nisso, mas há um momento em precisamos de pensar em salvaguardar a nossa capacidade de decisão.
Em suma, faz um balanço que o deixa otimista.
Sim pelas razões que já disse e também porque estamos mais bem preparados do ponto de vista das gerações mais novas.
Que enfrentam uma taxa de desemprego elevada.
Não conseguimos encontrar emprego suficiente para manter a juventude, reter os talentos, como agora se diz, talentos que têm uma boa formação, muitos até com doutoramentos. Ao mesmo tempo temos abandono escolar, temos pessoas a menos a terminar o ensino secundário, é uma situação muito contrastante. E por isso é que a minha preocupação fundamental são as questões da educação e da inovação, que são praticamente o começo de tudo.

Diz que os partidos políticos são pouco ativos [ver caixa]. Somos pouco empenhados?
Nós ainda não conseguimos encontrar uma maneira de defender a democracia representativa e de a valorizar aos olhos dos cidadãos. A democracia representativa enfrenta sérias crises: de credibilidade, em relação à opinião pública, em relação aos cidadãos, ao afastamento dos cidadãos da política, não podemos ignorar isto. Ainda por cima com os partidos políticos, que são cruciais e indispensáveis, completamente ultrapassados pela rapidez com que as relações culturais e de media funcionam. Refiro-me aos social media. Estamos perante uma contradição que me preocupa todos os dias, que é saber como se pode melhorar a atividade e a comunicação para fora dos partidos políticos, que são algo de pouco representativo. Os membros dos partidos pouco passam os 200 mil. O desinteresse é muitíssimo grande, as novas gerações não discutem política ou discutem pouco.

Como tem acompanhado a polémica em torno do financiamento dos partidos políticos?
Estou perfeitamente à vontade perante esta polémica.

Porque sempre defendeu o financiamento público?
Não é isso. Quando foram as eleições de 1991, eu era candidato do PS a primeiro-ministro. Levei um banho de todo o tamanho, com uma maioria absoluta do professor Cavaco Silva. Mas não só fui o único membro da oposição que foi à tomada de posse em Belém — nunca mais me posso esquecer disso e da surpresa que causou eu aparecer em Belém sozinho —, como foi a circunstância de eu ter ido à Assembleia da República no dia em que o Governo se apresentou, com uns papéis na mão, e ter dito: “Meus senhores, eu venho aqui dizer que violámos a lei, eu vou dar ao senhor Presidente as contas da campanha eleitoral do PS, que ficaram acima do limite legal. Tome lá, Vossa Excelência, para os efeitos que tiver por convenientes e, por consequência, convido todos os partidos nesta câmara a apresentar as suas contas.” Disse isto com o professor Cavaco a ouvir.
Só que ninguém o acompanhou.

Zero. A única coisa que houve foi uma multa, irrisória, e que o já secretário-geral, António Guterres, mandou pagar. Portanto, posso falar francamente sobre o que se passou agora. Não quero entrar em pormenores, mas foi um período muito infeliz, para dizer o mínimo, para a Assembleia da República, mas também muito infeliz em geral, porque houve dezenas de ocasiões para abordar este problema e ninguém quis falar dele. Eu, como líder parlamentar, fui abordado por vários partidos no hemiciclo, sugerindo que se podia fazer uma proposta de lei para aumentar os vencimentos dos deputados, e eu disse “façam vocês e eu apoio” — foi o fazes.
Aumentar os vencimentos será sempre impopular.
Há na sociedade portuguesa a ideia de que na política estão uns malandros que não devem ganhar coisa nenhuma, que se ganharem o salário mínimo nacional já chega. Mas a verdade é que se se quer uma democracia com gente capaz, é preciso oferecer condições. Não se vai tirar um economista de um sítio qualquer e pô-lo na Assembleia da República com um vencimento mínimo, ninguém aceita. Quando se olha para a Assembleia da República, percebe-se que as capacidades e as competências nem sempre estão ao nível desejado e desejável. Nós precisamos de gente muito competente na política. Mas para isso temos de criar condições. Pensar que as pessoas muito competentes, e que ganham a sua vida bem, vão para a política sujeitar-se à devassa, seja ela qual for — se você me oferecer um chá perguntam logo qual foi a moeda de troca. É ilusório, ninguém está disponível para isso. Temos de saber o que queremos, ter coragem para valorizar a política, os partidos, os cargos políticos — do Presidente da República aos primeiros-ministros, deputados, autarcas, e por aí fora. Esperemos que este triste episódio se não repita, sob pena de aquilo que já é muito profundamente negativo se afundar ainda mais. Eu sou muito crítico do que aconteceu, sou muito crítico dos arrependimentos que rapidamente todos manifestaram, e ainda bem, mas isto só faz sentido se agora der azo a uma política positiva de trabalho de fundo e a sério. Está tudo estudado, é uma questão de escolha.

Trabalho. O antigo Presidente da República na Casa do Regalo, em Lisboa, onde tem o seu gabinete

Mas é preciso melhorar a relação dos partidos com os cidadãos.
A tentativa de aproveitar o que de bom existe no lado dos social media é crucial, porque os ritmos a que as coisas se processam são totalmente diferentes. O ritmo de vida politico-parlamentar tradicional parece vindo da Idade Média perante o ritmo da idade contemporânea em que vivem as sociedades. Do lado político, ficamos sempre em défice completo e total. Temos de aproximar os ritmos e tentar andar ao mesmo compasso.

Como é que isso se faz?
É um trabalho paciente, passa pela educação, educação cívica, educação de responsabilidade. Preocupamo-nos mais com o êxito individual do que com o êxito coletivo, e isso é o resultado de determinadas políticas económicas e de um modelo de sociedade em que a solidariedade coletiva só funciona em momentos de tragédia, mas no dia a dia é uns a ver e outros a sofrer.
Está a pensar nos incêndios de 2017.

A compartimentação na sociedade portuguesa é das coisas mais trágicas. Eu presenciei muitas épocas de incêndios como Presidente da República e sempre me fez a maior impressão haver o público que vai para a praia e o público que sofre os incêndios. É a prova da dualidade que existe no nosso país de uma forma dramática. Embora no interior do país haja um certo abandono, é certo, também não é o deserto absoluto. Mas a velhice, a falta de saúde... é terrível. Em 2003, um ano terrível de incêndios, estávamos na inauguração do estádio do Sporting, havia um alarido brutal sobre os incêndios e ao intervalo do jogo cheguei-me ao pé de Durão Barroso e disse-lhe: “Ó senhor primeiro-ministro, faça uma coisa indispensável, vá para os incêndios, apareça.” [Ele perguntou:] “Acha que sim?” “Já! Já! Deixe isto tudo, vá para os incêndios, apareça.”

E ele foi?
Foi. De imediato.

2017 foi pior, os incêndios causaram mais de uma centena de mortos.
Este verão tivemos a terrível consagração dessa tremenda dualidade. Com isto chegamos a um tema muito importante, que é o do território. Se me perguntar quais são as políticas públicas cruciais, com certeza que são a da Justiça, a da Segurança, a da Saúde, a da Educação, a da Defesa... Mas o território é absolutamente crucial. Os fundos estruturais dos anos 80, que eram contraponto às quatro liberdades, não foram, embora gastos, capazes de equilibrar isso. O território tem um desenvolvimento profundamente desigual e precisamos de ter — embora eu deteste a expressão, porque é usada vezes de mais — uma estratégia de médio prazo para este país. Por isso eu dizia: o que é que queremos ser do ponto de vista político, económico e social, em que circuitos nos inscrevemos, o que é ambicionamos? As perspetivas financeiras pós-2020 são cruciais, porque é daí que virá a capacidade para ajudar a minorar as grandes diferenças e contrastes que existem em Portugal.

Mas se é o litoral a ver e o interior a sofrer, não é porque o centro de decisão está no litoral, ou melhor, em Lisboa?
Isso leva-me a outra coisa da maior importância, e de que eu sou um adepto: a descentralização. A regionalização falhou — eu fui a favor, mas não me pronuncio sobre as razões de ter falhado, embora ache que o nacionalismo mais desabrido nuns casos e mais justificável noutros veio ao de cima — e nós também não soubemos aproveitar plenamente as potencialidades das CCDR para a aplicação de fundos estruturais. Por mim, continuo a pensar que precisamos de uma descentralização política, com um combate muito feroz às cacicagens e a gastar dinheiro sem perspetivas, sabendo o que é a responsabilidade da cada um. As autarquias passam a vida a reclamar, e bem, capacidade para assumir um protagonismo diferente, mas quando se começa a falar em devolução de certos poderes, as autarquias recuam de imediato porque dizem que não têm meios e precisam de mais gente. Quando eu digo descentralização, digo descentralização de recursos e de responsabilidades. A descentralização ajuda, mas são precisos instrumentos. Se, por um lado, os órgãos de representatividade se esvaziam e se, por outro lado, os tribunais, os correios, a saúde se retiram fisicamente dos territórios, não há nada por onde começar e, além disso, as próprias pessoas desertam também. O que é que pode atrair pessoas para estes sítios? As vias sozinhas não chegam, os capitais são necessários. Este é um país pequeno para não ser um país solidário, não se pode dar a esse luxo. Que podemos fazer para sermos um país mais solidário? Dando condições de vida a uma parte dos portugueses que as não têm! Não podemos continuar a viver com esta percentagem da população a viver no limiar de pobreza, é incompatível com a ideia de um país inclusivo e de uma Europa desenvolvida.

A ação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa nos incêndios de 2017 foi positiva?
Isso merece um enquadramento mais profundo. Nós, os ex-Presidentes da República, normalmente não falamos sobre os titulares que nos antecederam ou sucederam. Isso tem sido importante para a democracia, para as funções e para a própria estabilidade dos poderes presidenciais, sem prejuízo do estilo de cada um. Há um enorme acervo assumido por todos, ninguém verdadeiramente discute os poderes presidenciais, o que se pode discutir é o estilo que cada um dá e as execuções que tem em relação a esses poderes. É preciso ter a noção clara de que os poderes do Presidente são de arbitragem, de mediador de conflitos, de procura de consensos e de estímulo em relação às preocupações gerais do país. Dito isto, acho que a tragédia foi de tal maneira grande que se percebe, independentemente de quaisquer outras considerações de natureza pessoal, que a atividade do Presidente da República, como também dos outros órgãos de soberania, se justificou. Não estou a falar dos episódios em concreto, pode-se discordar ou não, mas nessa altura as pessoas sentirem que o afago é porventura mais importante, isso é verdade. Agora, não podemos substituir-nos àquilo que é o trabalho do executivo, àquilo que é trabalho da nossa administração. Cada um fez o que pôde, acho que o Presidente respondeu com afago e carinho àquilo que era o desejo de afago e de companhia na tristeza que muitas pessoas tinham.

O Governo esteve à altura?
O Governo fez o que podia fazer e devia fazer. Agora, nos momentos de tragédia é precisa também alguma contenção na mediatização dos acontecimentos, nos comentários. O país ultimamente tem tido centenas de especialistas em gripe, toda a gente sabe de gripe, é uma coisa extraordinária; centenas de especialistas em incêndios; centenas de especialistas em proteção civil...

Está a referir-se aos comentadores?
Estou a referir-me em geral, toda a gente fala em reconstrução de casas, em organização de autarquias, em segurança... Isto não é assim. É preciso ter uma ideia certa sobre o que se pretende e isso leva-nos à reforma do Estado. Ouve falar-se de reformas estruturais, quando não há nada para dizer, lá vêm reformas estruturais. Mas quais? Com que detalhe, com que objetivo? Reformas estruturais, está na moda dizer...

Está na moda há muitos anos.
O que mais me espanta é que me lembro perfeitamente do que se passou em 2003, 2004, 2005 e já na altura o problema era semelhante: a floresta completamente desarticulada, com um regime de propriedade antiquado. OK, agora querem atacar o problema, e ainda bem, estou encantado, mas não é coisa para dois meses, é para 10 ou 20 anos. E com a dor que isso vai representar para muitos portugueses. Os que não estão cá e vão reclamar um sexto, etc.
Está a falar dos direitos de propriedade, que é uma questão constitucional.
Exatamente. Estou a pensar que é preciso um Estado forte, uma política pública forte, tão consensual quanto possível. E não haver ninguém a fugir, a dizer “já não estou nessa”. Não esqueçamos que a dimensão do desafio, é uma zona inteira do país que precisa de uma profundíssima reforma da floresta, o que significa uma reforma do povoamento, da agricultura, da indústria. Isto precisa de um trabalho de política pública assumida por toda a gente.
“Toda a gente” quer dizer de dois terços no Parlamento [necessários a alterações da Constituição]?
Exatamente.

Se fosse na sua presidência falaria de um pacto de coragem, como tantas vezes falou?
Falaria com certeza e com muita mais força porque houve agora coisas mais graves, tantas mortes. E isso faz com que haja um lado de sofrimento humano e de dor muito significativo, só que essa dor e as ações de solidariedade que gera, e bem, não chegam para mudar estruturalmente as coisas. Eu quero manifestar às vítimas e às suas famílias a minha grande tristeza, preocupação e solidariedade. Digo-o com grande pudor porque as palavras podem pouco perante a tragédia sofrida por tantas pessoas, às vezes aldeias inteiras. Nós hoje temos todos de algum modo estas vítimas connosco, mas não chega para reformar políticas. Por isso, quero insistir que temos de estar à altura, tirar as devidas consequências e fazer as reformas políticas necessárias que previnam a repetição destas tragédias.

Estamos num enquadramento político inédito, com uma solução de governo que amarra a esquerda, e temos à direita uma aparente e talvez momentânea orfandade de parte dos eleitores, gerando focos de oposição inorgânica. Concorda?
Não.

Comecemos pela esquerda. Como vê a situação?
Deve-se a António Costa o talento de ter percebido que tinha condições para poder liquidar a ideia do arco da governação tradicional. E de permitir à Assembleia da República desempenhar a sua função essencial, que é a de decidir se o governo e o seu programa passam ou não passam. Se não passam, não há governo. Com a nova fórmula governativa, rompeu-se um tabu e quebrou-se um ciclo. Isso foi muito positivo para a vida portuguesa, independentemente do que acontecer a seguir. E foi positivo, finalmente, depois de tantos anos, o PCP e o Bloco de Esquerda terem chegado a fazer esta coligação de Governo.

Também lhe chama “geringonça”?
Não, não lhe chamo, é brilhante como palavra, mas não se deve aplicar, tem uma conotação depreciativa. Dito isto, o mecanismo parlamentar funciona. Até que ponto é que António Costa e o Governo estarão disponíveis, e o grupo parlamentar do PS, para aguentar determinadas coisas, até que ponto poderão defender o seu programa e a sua liberdade, até que ponto os outros estarão disponíveis a continuar? São questões em aberto. Há um ponto que eu não vejo desenvolvido: normalmente diz-se que isto vai durar enquanto o chamado custo-benefício for positivo, no sentido em que ninguém quer ficar com o ónus de ter de romper e isso é positivo; mas o contrário também, porque o PCP tem a dignidade e a história que tem atrás de si. Eu tive ligações com o PCP na Câmara de Lisboa, conheci muita gente na clandestinidade e da clandestinidade. O que me espanta é que tenham tido a capacidade, por razões de relação com o próprio eleitorado, julgo eu, de terem chegado a esta solução. Mas o limite para esta solução, em meu entender, é saber se querem baixar à wilderness outra vez e ficar de novo de fora, ou não, por isso têm de pensar duas vezes. Penso que o eleitorado jovem não estará muito disponível para voltar para fora dos instrumentos de poder possível. O PCP é um partido de poder quando possível. E, portanto, vai avaliar muito seriamente se quer deixar de o ser e ficar acantonado aos seus 7% ou 8%. O BE é parecido: o que é afinal o BE? É uma força que não tem força eleitoral autárquica, tem um conjunto de gente interessante, a começar pelo seu fundador principal, que é uma figura única, brilhantíssima.

Francisco Louçã.
Sim, brilhantíssimo. Mas o que faz o BE fora do poder? Não chega às autarquias sequer, tem um vereador, por milagre, na Câmara de Lisboa.

O Bloco de Esquerda precisa de poder?
O BE tem de medir seriamente qual é a sua relação com o poder. Uns e outros, BE e PCP, têm de medir que tipo de compromissos têm que fazer para se manterem na posição em que estão; têm de saber digerir aquilo que são os compromissos europeus do PS com os seus compromissos internos.
Está a desafiá-los?
Não, estou a dizer que isto é assim. Alguém pensa que Portugal seria neste momento viável, com as finanças que tem, contestando os compromissos europeus? Estando na União Europeia como está nesse domínio? Sendo o Banco Central Europeu o que é? Não penso que possamos ter essa aventura. Não é possível, mesmo que porventura eu desejasse, o que nem é, claro, o caso!

Ficou espantado com o apoio do PCP ao Governo. Admite espantar-se mais?
O PCP é um grande tático. O dr. Cunhal tinha uma notabilíssima capacidade tática dentro de um contexto estratégico muito idêntico. A maneira como ele, por exemplo, adaptou o partido numa semana à votação no dr. Mário Soares [nas eleições presidenciais de 1986] é absolutamente única, só possível naquele partido. O PCP tem muitas antenas na sociedade e sabe que não pode fazer apenas almoços na Baixa da Banheira, com toda a estima pelos elementos da Baixa da Banheira, porque precisa de chegar ao poder. As autarquias não chegam para os grandes desafios em cima da mesa. Que tipo de desafios está o PCP disposto a admitir? E o BE? Saídas da União Europeia, saídas do euro? Alguém se convence que isso seja possível no contexto da economia portuguesa? Sejamos realistas.

Diz que o PCP tem de decidir “baixar à wilderness”, o que pode ser traduzido de várias maneiras: é voltar ao estado selvagem, ao estado natural?
[risos] É voltar à solidão.

O que se está a passar no BE é comparável com o que aconteceu, há anos, na Alemanha com os Verdes? Uma espécie de rendição...
Não se trata de rendição...
... de pragmatismo perante a necessidade de influenciar...
O concreto da vida política e a necessidade de realizar coisas forçam a um certo pragmatismo, isso é indiscutível. O que acho mal é um pragmatismo sem conteúdo. Mas não há dúvida que a ação política tem necessidade de um pragmatismo. A realidade é que as coisas são muito mais difíceis e muito diferentes.
Foi, aliás, essa tomada de consciência que o levou a aderir ao PS, em 1978.
Sim, sem dúvida.

Defende uma redefinição das funções do Estado?
Não sou a favor do Estado mínimo, há funções que são inalienáveis. Quero que o Estado esteja mais apetrechado para responder com eficácia — e não responder sempre da mesma maneira: que é preciso mais efetivos, estou cansado de ouvir falar disso. A parte da gestão é essencial, mas normalmente não é tocada. Repare que todas as reivindicações são sempre de mais efetivos, sejam polícias, médicos, enfermeiros, sempre mais efetivos. Isso não é possível. Por outro lado, há coisas que podem não ser feitas pelos serviços públicos. Mas há outras que, como disse, são inalienáveis. Gostava de ver uma administração pública em que a gente se revisse. E há serviços que só funcionam porque a dedicação é enorme. Quando percebemos, como eu percebi nos hospitais públicos, que há enfermeiras que trabalham 12 horas e ganham uma miséria, percebe-se que há ali um serviço público que ainda mexe. É necessária uma administração pública que sirva os objetivos gerais do país, uma administração descentralizada, o que se prende muito com a capacidade de a justiça responder em tempo útil às aspirações das pessoas. A morosidade da justiça portuguesa, nomeadamente da justiça económica, é preocupante. É preciso uma regulação eficaz e forte. Não é que eu, de repente, me tenha tornado um liberal, mas a regulação é essencial.

E no plano económico?
A este propósito gostava apenas de sublinhar que é preciso termos uma ligação muito maior e mais estreita entre as universidades e as empresas, com vista à investigação e à qualificação produtiva. A nossa estrutura empresarial é muito pequena (há sobretudo pequenas e médias empresas) e não chega para fazer escala, para a incorporação de know how e da inovação. Por outro lado, temos o problema da nossa administração pública: a reforma do Estado tem de passar necessariamente por uma reforma da administração pública. Uma administração para quê? Qual é o papel dos novos instrumentos de comunicação e das novas tecnologias de informação? É necessário dotar o país de uma capacidade tecnológica nova e quanto mais cedo melhor, mas sem esquecer (e essa é a dificuldade do exercício) os que ficam para trás.
Falemos agora da direita, onde parece haver um vazio, temporário ou não, na capacidade de representação.

Os vazios preenchem-se, não duram muito tempo. Resta saber como e para quê. As fronteiras políticas, nos últimos anos, estão muito mais diluídas. O espaço político disponível do centro-esquerda para o centro-direita é muito maior do que se pensa. Agora as pessoas entretêm-se, com régua e esquadro, a ver em que bissetriz se encontram — se mais à esquerda ou mais à direita... Ora, não faz grande sentido. Já não há classes sociais como há 50 anos. Os sectores produtivos são diferentes e isso faz com que haja um éclatement das várias componentes sociais disponíveis. As ideologias continuam a ter o seu lugar estruturante no pensamento e na ação, mas é preciso uma espécie de novo sistema de pesos e medidas para avaliar constantemente as políticas propostas, as soluções práticas e as consequências/resultados. Parece continuar a haver uma bifurcação em termos de opções: ou se é mais progressista, e se preocupa mais com a equidade e com a luta contra as desigualdades, ou domina a ‘marketização’.
O próprio PS anda a navegar entre o centro e a esquerda.

Pois, claro que anda. O PS — e posso falar claramente, porque é o meu partido — tem condições únicas para aprofundar até onde pode ir do ponto de vista das suas capacidades políticas, ideológicas e programáticas. Fez-se um esforço grande e muito assinalável — tão destruído e tão criticado! — para pôr de pé um determinado edifício, e agora é preciso nutri-lo todos os dias com as políticas mais díspares. Os temas aumentam sem parar, cada dia que passa há mais um. Esses novos temas requerem um tratamento. E é por via do tipo de tratamento que se faz de cada um deles, que se será aferido do ponto de vista político e social.

Porque é que o PS tem uma oportunidade única?
Porque tem mais condições. Porque está no poder e tem mais informação do que os outros. Tem uma relação internacional muito forte e toda a informação que isso lhe dá. E ao mesmo tempo tem pessoas que deve mobilizar para essa tarefa de conceptualização e de ligação ao sector empresarial. O pouco que se fala sobre o sector empresarial perturba-me muito. Não é apenas o PS. A esquerda associada ao PS não fala em empresas. E elas são cruciais neste país. Sem isso, não teremos emprego. Direi mesmo que o PS está em boas condições para poder liderar uma renovação, não diria da social-democracia — que, lá fora, quer dizer outra coisa — mas, para utilizar o jargão português, do socialismo democrático. Toda a gente percebe que isso é o mesmo que a social-democracia europeia no sentido mais amplo do termo.

Momento. Jorge Sampaio durante a entrevista conduzida por Pedro Santos Guerreiro e José Pedro Castanheira

O antigo Presidente da República na Casa do Regalo, em Lisboa, onde tem o seu gabinete
O país perdeu recentemente um dos seus grandes empregadores e empreendedores...
Sem dúvida.

... Belmiro de Azevedo, com quem teve relações muito dialéticas.
Muito vivas e muito rijas. O que é importante é que no exercício de cargos políticos as pessoas não sejam influenciáveis e que isso fique claro para todos. Não interessa se é o senhor Joaquim, dono de uma retrosaria, ou se é o senhor Fulano, que tem uma multinacional. São iguais e é assim que sempre procurei atuar. E isso dá-me um descanso enorme. Na Câmara de Lisboa, para só falar dela, o convite à valsa pode ser grande. Mas ninguém ousou.

Está a falar de lóbis na política?
Não só. Espero que este período, a caminho de novas eleições — a começar pelas europeias —, sirva para afinar políticas. Precisamos de ser mais concretos, mais rigorosos nas metas, na calendarização, na monitorização. E, sobretudo, é preciso ter uma força política grande. É a única maneira, num país como o nosso, cheio de lóbis, influências e poderes de facto do mais variado tipo, de se conseguir fazer vingar o domínio da política sobre as coisas.

O que é que o PS precisa para isso?
De fazer sentir bem aquilo que representa e aquilo que é capaz de fazer.

A ligação ao BE e ao PCP é um obstáculo?
Os obstáculos pululam. Resta saber como é que se lida com eles e qual é o limite, até onde se pode ir. Não se esqueça que fui Presidente da República sempre com maiorias relativas, com várias saídas pelo meio. A ideia de que é preciso continuidade e estabilidade não é uma ideia oca nem visa limitar alternativas que só em democracia existem. A estabilidade é um elemento indispensável para executar um programa de governo. Para que os intervenientes sintam que aqueles senhores são os que estão a mandar naquele momento. Se não sentem isso, furam tudo por todos os lados.
Entretanto, o senhor entrou na campanha interna do PSD, levado por Santana Lopes.
É natural, mas não tenho nada a comentar. Já está tudo escrito, não vou comentar nada.

E do caso José Sócrates?
É uma matéria que eu não toco.
Falemos das Forças Armadas. Na sua Presidência esteve muito atento a essa problemática.
Sempre dei a maior importância ao cargo de comandante supremo das Forças Armadas. A minha oposição à presença das Forças Armadas na guerra no Iraque foi simbólica e paradigmática. Aí sou como o Presidente Truman em relação ao general MacArthur, o poder civil manda no poder militar. Como se sabe, o general, que fora um grande chefe militar no Pacífico, queria prosseguir para a Manchúria, o Presidente Truman disse que não e aquele velho juiz, que fora eleito Presidente da República, demitiu o general MacArthur de um dia para o outro. As Forças Armadas, cujo prestígio e modernização têm de ser louvados, têm accountability, têm responsabilidade — e isso é com o poder civil. Para mim, isso é um ponto de intransigência total. A partir do momento em que isso é subvertido, a democracia está enfraquecida.

Como tem acompanhado a trapalhada sobre as armas de Tancos?
Sinto um certo incómodo sobre essa matéria. Impõe-se que haja uma resposta sobre Tancos. O tempo passa, mas não quero ser mais claro. Ninguém fica bem nesta matéria.
Quando deixou de ser Presidente, em 2006, continuou especialmente ativo, mas no plano internacional. Passaram 12 anos…
Não tive propriamente tempo para descansar. Tinha saído em março, e, em abril ou maio, foi com gratificante surpresa que recebo um telefonema de Kofi Annan, estava eu no Palácio de Queluz. Trabalhara com ele em cimeiras das Nações Unidas em Nova Iorque sobre questões de saúde e, por isso, queria saber se eu aceitava ser seu representante pessoal para a luta contra a Tuberculose. Aceitei e desempenhei essas funções até 2012.
Foi uma aposta de Kofi Annan.

Sim. Era um cargo novo ligado à Agenda dos Objetivos do Desenvolvimento do Milénio, muito apadrinhada por Kofi Annan, e aceitei o desafio. Sempre gostei dos problemas da saúde pública, por razões pessoais e familiares. Tive a possibilidade de falar a um público muito mais vasto. Promovi várias coisas, entre as quais a primeira Conferências das Nações Unidas sobre a coinfeção VIH-Tuberculose, com o Presidente Bill Clinton e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

Depois, foi também o alto-representante para a Aliança das Civilizações.
Ban Ki-moon pediu-me para ser o alto-representante para a Aliança das Civilizações, em 2007. Tratava-se de implementar as recomendações de um relatório que pretendia incentivar o diálogo entre as sociedades muçulmanas e as sociedades ditas ocidentais e promover o diálogo e a cooperação interculturais. Acumulei os dois mandatos entre 2007 e 2012, o que significou um trabalho gigantesco. Montei toda a estrutura e o funcionamento da Aliança, desde o plano nacional até aos fora mundiais, passando por estratégias regionais. Percorri o mundo e tudo isto me deu uma enorme satisfação. Era o aproveitamento da experiência de um antigo Presidente. Recordo a ideia de Felipe González, segundo a qual os antigos Presidentes da República são como a louça da China: é uma porcelana muito bonita e antiga, mas ninguém sabe o que fazer com ela. É uma imagem magnífica. [risos]
Depois veio a atribuição do Prémio Mandela, vai fazer três anos.

Foi a primeira vez que o Prémio Mandela das Nações Unidas foi atribuído, a mim e a uma médica oftalmológica da Namíbia, doutora Helena Ndume.
Mais recentemente criou a Plataforma de Apoio aos Estudantes Sírios.

Foi em 2013. Com a ajuda de gente que conheci nos caminhos da vida, em Portugal e no estrangeiro, foi possível criar este programa de bolsas de estudo de emergência para estudantes sírios, que vai agora ser transformada numa iniciativa multilateral de origem portuguesa, com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e que consistirá num mecanismo de resposta rápida para o ensino superior nas emergências. Ou seja, partindo da experiência síria, passamos agora para outro patamar por forma a dar uma resposta sistémica ao problema do grupo específico dos estudantes do ensino superior que sejam apanhados por crises — guerras, desastres naturais ou situações de vulnerabilidade — e que assim recebem proteção e assistência académica. No fundo, é uma espécie de Erasmus, mas para os estudantes em mobilidade forçada. Há universidades e institutos politécnicos interessados; estudantes com estudos interrompidos é o que não falta; agora, é preciso encontrar dinheiro e parceiros. Este mecanismo vai ser lançado numa reunião internacional que estou a preparar, conjuntamente com o Governo, e que terá lugar em Lisboa, no dia 5 de abril.

Os estudantes sírios responderam à altura.
São mais de uma centena em Portugal. Mais de 30 estão já empregados ou em estágios depois de terem concluído os seus mestrados entre nós. Alguns são mesmo excelentes alunos, têm notas muito boas, de 17, 18 e 19; há até um ‘cérebro’ que teve 20 valores num mestrado na Universidade de Coimbra. Este programa tem êxito porque resulta de uma cooperação entre muitos parceiros — com universidade e politécnicos, em primeiro lugar, com empresas, fundações e particulares. Conseguir fundos para isto, é um milagre e tem dado muito trabalho. Mas é também muito gratificante. E através dos estudantes, percebe-se o que tem sido a destruição da Síria, que tem gente muito boa e um ensino universitário (e não só) muito capaz. Hoje, são eles, as vítimas, mas qualquer um de nós podia estar no lugar deles.

No ano passado foram publicadas várias notícias sobre o seu estado de saúde. Quer adiantar alguma coisa?
Não. Felizmente os hospitais foram muito discretos, bem como os jornais. Estou recuperado, como podem ver. Eu não andava, e agora já ando.

Quando lhe pedimos esta entrevista, propusemos-lhe que escolhesse um livro, um texto, um poema ou uma música que, neste momento da sua vida, fosse especialmente importante.

Escolhi música. Tenho um eixo, que começa em Bach e Vivaldi, passa por Mozart, atravessa Beethoven e vai até Brahms e Mahler, ficando por aí. Um eixo em torno destes autores e das suas variações. Eu não sou como o ilustre Stravinsky, que dizia que o Vivaldi escreveu sempre o mesmo concerto. Ainda que, modestamente, não esteja de acordo. Também gosto muito de ópera. Tive a sorte de a minha mãe me levar à ópera desde miúdo.

Qual foi o último concerto a que assistiu?
O “Requiem”, de Mozart, na Gulbenkian. Preciso de orquestra e coros — isso é que me enche as medidas. Lembro-me do maestro Riccardo Muti, que dirigiu recentemente o Concerto de Ano Novo, em Viena. Viu-o em Salzburgo a dirigir o “Requiem”, de Verdi, e foi inesquecível. Mas tenho um defeito grave: não sou capaz de ouvir música e ler ao mesmo tempo. Na leitura estou na obra de Valentim Alexandre, que é absolutamente brutal do ponto de vista da investigação. São três volumes sobre a época colonial. Saiu agora o primeiro: “Contra o Vento. Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)” e merece uma atenção desmedida.

O que gostaria que as pessoas aprendessem da sua vida?
A resiliência. Nunca desistir. Mesmo que se esteja muito em baixo, como aconteceu comigo em agosto, setembro e outubro, tem-se sempre a esperança de que no dia seguinte se está lá outra vez, que a noite não acabou connosco. Quando vinham as enfermeiras fazer a consulta matinal, medir a temperatura e a tensão, eu sentia que estava vivo, estar vivo é porreiro. Com esperança de que irá melhorar. Entre muitos defeitos que conheço em mim mesmo, um deles é ter muita capacidade de luta. Não parece, parece que sou um tipo frágil e que hesita, mas não gosto que me ponham a um canto. Saio de lá ao pontapé se for preciso. Isso tenho verificado ao longo da vida e das coisas mais terríveis: vou-me abaixo mas recupero. Gostaria de ver isso em muitos portugueses. Além disso, gostava de ver uma preocupação que advogo e que o meu pai sempre referia. É aquela máxima de John Kennedy: o que podes fazer de útil pelo teu país? Não é fazer para ti, mas para o teu país. Tenho isso como lema.

“Por amor de Deus, o problema da dívida está a meter-se pelos olhos adentro!”

Portugal tem espaço de afirmação política na Europa?
Não poderemos deixar de ter um caminho próprio e que se insira no quadro europeu. E não podemos dispensar estar à mesa da evolução da Europa e o mais acompanhados possível, por isso as cooperações estruturadas são importantes, como na defesa — nem concebia estarmos fora disso. Estamos na altura de consolidar o pós-crise financeira, é altura de ser demonstrado que é possível ter uma política que não dispense o consumo interno mas que tem de ter cuidado com as contas públicas. Nestes anos próximos, ou a UEM solidifica o crescimento e a capacidade de resposta ou não, e isto acaba por ser um conglomerado, perdendo-se o que melhor nos caracterizou no pós-guerra. Esse pós-guerra, que foi muitíssimo importante para a paz na Europa, começou por ser económico, depois político. É preciso que o ‘Brexit’ não seja banalizado e que não abra a porta para outros casos. Ficamos a 27, ponto, parágrafo. E a 27 temos de nos conseguir solidificar.

Está mais otimista no plano interno do que no externo.

No plano externo não estou otimista, porque há um conjunto de conflitos potenciais muito sérios, além de desafios globais, como a fome, as alterações climáticas, o ‘atentismo’ chinês, a relação da Rússia com a Europa, que está em banho-maria, e gravemente...

O trumpismo, como lhe chama, agudizou a situação.

É imprevisível o que pode acontecer. A verdade é que o senhor Trump traduz aquele conjunto de arrazoados desconexos e ignorantes em frases simples e mobilizadoras, e há uma camada de americanos que continua fiel ao seu candidato vencedor. Isto terá repercussões. Veja-se o que aconteceu no conflito israelo-palestiniano, o que significou lançar-lhes a pedrada, no momento em que também se isola dos aliados europeus e faz uma aliança com a Arábia Saudita contra o Irão.

E há a Coreia do Norte. É um mundo instável.

Não se podem fazer previsões. Sempre achei, de acordo com alguns especialistas americanos, que a posição da Coreia do Norte era para a negociação: “Precisamos de que contem connosco para negociar, temos direito a ter estes mísseis balísticos, mas queremos com isso chegar à mesa. Se não nos deixam, vamos subindo a parada.” Mas esta parada tem um limite, e Donald Trump já percebeu que, se levar à prática aquilo que ameaça, a Coreia do Sul desaparece em dois dias, dada a força terrestre dos norte-coreanos. Os americanos deveriam reconhecer que a Coreia do Norte é uma potência nuclear e conversar. Porque senão tudo abana, os aliados da China, o Japão e seus aliados, abana o espaço vital que existe naqueles confins do mundo. É por isso que vejo a gravidade de Trump, a incapacidade de admitir que o acordo atómico com os iranianos pode ser melhorado mas não pode ser suspenso.
A Europa precisa de saber qual o lugar que ocupa na cena política mundial?
Nós teremos mais força como interlocutor internacional quanto mais desenvolvida for a integração europeia, quanto mais apertados, responsáveis, rápidos forem os mecanismos de resposta da UE às crises e quanto menos parcial for a resposta de alguns dos países em relação a outros, no que concerne à divisão entre Norte e Sul, por exemplo. Isso dá cabo, a prazo, da unidade da União Europeia. Houve progressos, mas do ponto de vista do poder temos muito caminho a percorrer para nos afirmarmos como entidade incontornável à escala internacional.

Que avaliação faz do início de mandato de António Guterres na ONU?
Muito positiva. Quem conhece minimamente as Nações Unidas, como eu, percebe que tudo depende muito em primeira mão do Conselho de Segurança, sobretudo dos países com direito de veto. E, quando se tem um americano que diz o que diz e que ameaça suspender a contribuição dos EUA para 25% do orçamento das Nações Unidas, percebe-se que a vida não será fácil. António Guterres tem feito o melhor possível, com intuitos reformistas significativos. Agora, não podemos atribuir-lhe a capacidade de resolver conflitos que são muito mais profundos e que dependem de outros interesses estratégicos. As Nações Unidas, as agências e os funcionários são absolutamente cruciais e indispensáveis, não concebo o mundo sem isso.

Guterres tem sido devorado pela enorme ‘máquina’?
Não. António Guterres não é ‘devorável’, no bom sentido da expressão.

Crê que a eleição de Mário Centeno para o Eurogrupo vai alterar a política europeia relativamente às finanças de cada país?
A UE está confrontada com a necessidade absoluta de avançar com os instrumentos capazes de solidificar a união bancária, a UEM e o euro. Estou certo de que as pessoas responsáveis por essas matérias farão o que é possível, mas não estão sozinhas. Eu tenho a esperança de que a UE e os seus mecanismos consigam deixar de ter tabus. Começa a haver uma evolução positiva no sentido de alguma flexibilidade, o que dá possibilidades a Portugal. Há uma responsabilidade acrescida, tanto mais que em 2019 há uma grande incerteza com as eleições no Parlamento Europeu e com o que isso representa para a futura Comissão. Ninguém sabe o que vai resultar. Temos, assim, de aproveitar bem o tempo até lá, no qual alguns veem uma janela de oportunidade única para as reformas avançarem na Europa, mesmo que também haja eleições em Itália e que a questão catalã permaneça uma incógnita.

Acredita na coligação entre a CDU de Merkel e o SPD de Schulz?
Isso pode ser positivo, pode ser que os sociais-democratas, agora um bocado de rastos e chamados in extremis a salvar Angela Merkel, no bom sentido, tragam um sopro do mínimo de flexibilidade e de políticas alternativas. Esta coisa extraordinária, que sempre me pareceu vexatória para nós todos, que é “vocês têm de cumprir isto, mas para cumprir isto têm de crescer”, e não se pode crescer se tudo se mantiver imutável e dogmático, é uma contradição colossal. Não pode haver políticas keynesianas de nenhuma espécie, porque “vocês têm de respeitar isto custe o que custar”, mas fica a faltar o outro lado.

O vexatório aplica-se a Portugal?
À Europa no seu conjunto, como se não estivéssemos todos a perceber que o que aconteceu nestes anos é resultado da maneira como foram aplicados os remédios da troika, que os próprios responsáveis do FMI vieram reconhecer que foram mal aplicados e constituíram um desastre. Temos de ter alguma liberdade para, respeitando os critérios básicos enunciados, podermos fazer um desenvolvimento melhor. Sem tabus. E isso tem que ver com temas como a questão da dívida. A questão da dívida não pode ser eternamente um tabu, porque ela está aí. Ou como a questão do crescimento.

Está a defender a renegociação da dívida?
Não estou a defender nada disso, não vale sequer a pena. Vale a pena é dizer que não é sustentável que ignoremos que o problema existe. Por amor de Deus, ele está a meter-se pelos olhos adentro! Temos 40 anos de pagamento de dívida à nossa frente, no mínimo, e é preciso crescer a 3% ou a 4%, o que nunca aconteceu nos últimos anos. Alguma coisa tem de fazer-se, é preciso um consenso. Não estou a dizer perdões...

O que sugere, então?
Sugiro que se comece a conversar sobre isso a sério, desde os think tanks portugueses, que deviam ser muito mais ativos do que são, até aos partidos políticos, esses então nem se fala. E precisamos de ter uma posição que se discuta. Tabus?! Em democracias representativas e em democracias europeias? Não faz sentido.

Quando Sampaio “deu cabo daquilo”: 22 vetos, nenhum ultrapassado

O acervo das funções presidenciais deu-me a possibilidade de ter uma intervenção no dia a dia, de aconselhamento, de arbitragem, de moderação, em proximidade muito grande aos cidadãos no seu conjunto.
Na política externa, realço a guerra do Iraque. A posição de não envolvimento de Portugal foi um contributo muito importante para a afirmação dos princípios do multilateralismo e da legalidade à escala internacional. Ao mesmo tempo, revelou a importância que Portugal poderia ter nos conflitos europeus, como teve com a presença na Bósnia-Herzegovina.

Outro exemplo que quero assinalar é o da criação do chamado Grupo de Arraiolos, que reúne os vários Presidentes da República da UE sem poderes executivos. Está maior agora do que na altura da criação.
Por último, nunca me ponho em bicos de pé, mas fui (enquanto deputado e não só) um dos permanentes defensores da independência de Timor-Leste — muito antes de ela ter acontecido. E ainda antes de ser eleito Presidente, disse numa entrevista (precisamente ao Expresso) que uma das coisas que mais gostaria de fazer era ser o primeiro Presidente da República de Portugal a visitar Timor independente, o que foi visto como uma “declaração de guerra” muito positiva.

Na política interna, houve duas coisas muito importantes. A primeira foi a visita a todos os concelhos do país, 308 concelhos em dez anos. Visitando atividades, incutindo o debate, dando conselhos vários, etc. Foi muito importante do ponto de vista da coesão. O que me deu mais gosto foi as pessoas perceberem que estava ali um alto magistrado, eleito por sufrágio direto, que não era Governo, mas a quem faziam apelos, mostravam matérias, apresentavam queixas. “Se não fosse o sr. Presidente, esta estrada não se tinha feito”, ouvi dizer muitas vezes (era uma coisa que me irritava profundamente, mas era verdade, faziam a estrada antes de eu chegar). As visitas pelo país foram complementadas com as presidências temáticas. Agora sorrio, e não é de inveja. Fiz um esforço enorme para que se fizesse um congresso da Justiça. O congresso chegou a fazer-se, na Aula Magna, mas pegaram-se todos, como de costume.

A segunda coisa está relacionada com a longa lista dos 22 vetos, que não valem pelo número, mas pelo conteúdo. Vetos sobre leis da Assembleia da República e sobre decretos do Governo. Nenhum destes vetos foi ultrapassado, o que é uma coisa que eu tenho como glória. Nem os vetos de leis, que podiam ser ultrapassados por uma maioria de dois terços da Assembleia da República, nem de decretos do Governo, que poderiam dar origem a um novo projeto de lei do Governo ao Parlamento. Nada disso aconteceu: tive sempre a última palavra, os casos acabaram ali. As portagens do Oeste, a procriação medicamente assistida, a lei da droga… tive um papel muito importante no problema da toxicodependência, trazido constantemente por mim, quer em conferências e colóquios quer na proteção à aplicação da lei da droga. Houve dois vetos que me deram muito gosto: um sobre modificações ao Rendimento Social de Inserção — dei cabo disso e ganhei no Tribunal Constitucional. Relativamente a diplomas do Governo, destaco os vetos sobre universidades privadas — dei cabo, também com gosto, devo dizer, do facilitismo na concessão a interesses locais por via das maiorias políticas. Igualmente significativo foi o veto ao diploma sobre o ato médico. Rebentei com ele. Até hoje. O diploma era uma baralhada infernal, em favor dos médicos, diga-se.

Por último, quero ainda referir que trouxe a inovação para o centro das atenções em Portugal, com a criação da COTEC ; por influência e amizade com o rei de Espanha e do presidente de Itália. E os encontros internacionais da COTEC, que inaugurei, prosseguiram durante os mandatos do prof. Cavaco. Ah, e houve ainda a criação — que gerou uma certa incomodidade no Governo Guterres — do Conselho Económico. Foi uma ideia que fui buscar ao Council of Economic Advisers, dos Estados Unidos. Esse Conselho reunia quem havia de melhor e reunia-se mais ou menos uma vez por mês. Foi uma iniciativa transversal muito importante, promovendo o debate sobre a vida económica e financeira do país.

Depoimentos recolhidos por José Pedro Castanheira e Pedro Santos Guerreiro